segunda-feira, 12 de maio de 2014

A vingança do rentismo




Marcelo Miterhof
Folha de S.Paulo
O recém-lançado livro “Conta de Juros Grande & Favela” (editora COM2B), dos economistas Matías Vernengo e Alcino Camara, é uma leitura valiosa para entender como a racionalidade heterodoxa pode sugerir um caminho distinto para a política econômica no Brasil e no mundo.
Aproveitando a comemoração do 1º de Maio, a coluna de hoje usa o livro para discutir como as ideias de Keynes serviram de base para uma tentativa de “eutanásia do rentismo” no pós-Guerra e como foi a reversão a partir dos anos 1980.
Distintamente do que se costuma supor, Keynes não defendia o uso de deficit públicos indiscriminados para impulsionar a atividade econômica. De fato, recessões tendem a gerar deficit, pois há queda das receitas tributárias e elevação de gastos sociais, como o seguro-desemprego.
Porém tais deficit são o efeito, não a solução de uma recessão. Tentar impedi-los é um erro que agrava o problema, mas a saída é outra. É preciso mitigar o ciclo econômico, estabilizando o investimento. Como o investimento privado é induzido pelas expectativas de demanda, essa tarefa cabe ao investimento público.
Para Keynes, os orçamentos públicos correntes devem ser na média equilibrados enquanto o de investimento seria um instrumento contracíclico. O endividamento causado por deficit nos orçamentos de capital não é problemático se os juros da dívida do Estado puderem ser suportados pelos impostos.
Os juros baixos aumentam a capacidade de endividamento e de investimento do Estado, além de facilitar o financiamento dos investimentos privados.
Para ter a capacidade de fixar seus juros, o governo deve sempre que preciso impor controles de capital, isto é, regras que dificultem por meio de taxações e prazos mínimos de permanência a fuga de capitais em busca de taxas mais altas em outros países. Ademais, deve se preocupar em combater deficit na balança comercial, cujo desequilíbrio prolongado pressiona os juros, que precisam ser elevados para conter a demanda agregada ou atrair capitais.
A “eutanásia do rentismo”, limitando suas possibilidades de ganho, incentiva a produção e o trabalho. Tal estratégia se baseia em profundas mudanças no entendimento econômico, como a causalidade entre investimento e poupança, o papel da moeda fiduciária e a interação entre gastos públicos e privados.
Mas há também uma escolha política a favor da igualdade. Ao facilitar o gasto público e promover o crescimento, as políticas keynesianas tornam o trabalho relativamente escasso, aumentando a participação dos salários no PIB. Paralelamente, a partir dos anos 1930 pesadas elevações de carga tributária permitiram montar o Estado de Bem-Estar.
O baixo desemprego e os direitos sociais fortaleceram o poder dos trabalhadores, fazendo com que no final dos anos 1960 os salários passassem a crescer acima da produtividade. Naturalmente, a inflação decorrente não foi problema para os salários reais. Tampouco existia risco de indexação. Havia apenas um conflito distributivo transitório em razão do aumento da apropriação de renda pelos salários.
A inflação prejudicou mesmo foram os detentores de ativos financeiros: bancos, corporações e os ricos.
O problema foi que nos anos 1970 vieram os choques do petróleo (nos EUA, houve ainda o enfraquecimento do dólar em razão dos deficit externos), que de fato penalizaram os salários. Como são os salários que impulsionam a economia, o choque externo trouxe estagnação junto com a inflação (“estagflação”).
Essa foi a senha para a “vingança do rentismo”. O corte nos impostos ganhou vigoroso apoio. A ideia era que, como o setor privado seria mais eficiente no uso dos recursos, a contração dos gastos públicos expandiria o PIB e, assim, a arrecadação seria até maior do que antes. Isso nunca se verificou, é claro.
Mas o crucial era difundir a crença de que o setor público é sempre ineficiente e deveria se abster de intervir nos mercados.
A liberalização da movimentação de capitais foi chave, sob a crença de que traria mais eficiência aos mercados financeiros. Os BCs, salvo o americano, passaram a ter como único objetivo declarado o controle da inflação.
Na prática, os juros subiram, os impostos ficaram mais regressivos e a desigualdade piorou. A atual crise financeira talvez seja uma nova virada nessa trajetória.
Na semana que vem, o tema é a “vingança do rentismo” no Brasil.
Marcelo Miterhof é economista do BNDES. O artigo não reflete necessariamente a opinião do banco.

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