Marcelo Miterhof
Folha de S.Paulo
O recém-lançado livro “Conta de Juros Grande
& Favela” (editora COM2B), dos economistas Matías Vernengo e Alcino Camara,
é uma leitura valiosa para entender como a racionalidade heterodoxa pode
sugerir um caminho distinto para a política econômica no Brasil e no mundo.
Aproveitando a comemoração do 1º de Maio, a
coluna de hoje usa o livro para discutir como as ideias de Keynes serviram de
base para uma tentativa de “eutanásia do rentismo” no pós-Guerra e como foi a
reversão a partir dos anos 1980.
Distintamente do que se costuma supor, Keynes
não defendia o uso de deficit públicos indiscriminados para impulsionar a
atividade econômica. De fato, recessões tendem a gerar deficit, pois há queda
das receitas tributárias e elevação de gastos sociais, como o
seguro-desemprego.
Porém tais deficit são o efeito, não a
solução de uma recessão. Tentar impedi-los é um erro que agrava o problema, mas
a saída é outra. É preciso mitigar o ciclo econômico, estabilizando o
investimento. Como o investimento privado é induzido pelas expectativas de
demanda, essa tarefa cabe ao investimento público.
Para Keynes, os orçamentos públicos correntes
devem ser na média equilibrados enquanto o de investimento seria um instrumento
contracíclico. O endividamento causado por deficit nos orçamentos de capital
não é problemático se os juros da dívida do Estado puderem ser suportados pelos
impostos.
Os juros baixos aumentam a capacidade de
endividamento e de investimento do Estado, além de facilitar o financiamento
dos investimentos privados.
Para ter a capacidade de fixar seus juros, o
governo deve sempre que preciso impor controles de capital, isto é, regras que
dificultem por meio de taxações e prazos mínimos de permanência a fuga de
capitais em busca de taxas mais altas em outros países. Ademais, deve se
preocupar em combater deficit na balança comercial, cujo desequilíbrio
prolongado pressiona os juros, que precisam ser elevados para conter a demanda
agregada ou atrair capitais.
A “eutanásia do rentismo”, limitando suas
possibilidades de ganho, incentiva a produção e o trabalho. Tal estratégia se
baseia em profundas mudanças no entendimento econômico, como a causalidade
entre investimento e poupança, o papel da moeda fiduciária e a interação entre
gastos públicos e privados.
Mas há também uma escolha política a favor da
igualdade. Ao facilitar o gasto público e promover o crescimento, as políticas
keynesianas tornam o trabalho relativamente escasso, aumentando a participação
dos salários no PIB. Paralelamente, a partir dos anos 1930 pesadas elevações de
carga tributária permitiram montar o Estado de Bem-Estar.
O baixo desemprego e os direitos sociais
fortaleceram o poder dos trabalhadores, fazendo com que no final dos anos 1960
os salários passassem a crescer acima da produtividade. Naturalmente, a
inflação decorrente não foi problema para os salários reais. Tampouco existia
risco de indexação. Havia apenas um conflito distributivo transitório em razão do
aumento da apropriação de renda pelos salários.
A inflação prejudicou mesmo foram os
detentores de ativos financeiros: bancos, corporações e os ricos.
O problema foi que nos anos 1970 vieram os
choques do petróleo (nos EUA, houve ainda o enfraquecimento do dólar em razão
dos deficit externos), que de fato penalizaram os salários. Como são os
salários que impulsionam a economia, o choque externo trouxe estagnação junto
com a inflação (“estagflação”).
Essa foi a senha para a “vingança do rentismo”.
O corte nos impostos ganhou vigoroso apoio. A ideia era que, como o setor
privado seria mais eficiente no uso dos recursos, a contração dos gastos
públicos expandiria o PIB e, assim, a arrecadação seria até maior do que antes.
Isso nunca se verificou, é claro.
Mas o crucial era difundir a crença de que o
setor público é sempre ineficiente e deveria se abster de intervir nos
mercados.
A liberalização da movimentação de capitais
foi chave, sob a crença de que traria mais eficiência aos mercados financeiros.
Os BCs, salvo o americano, passaram a ter como único objetivo declarado o
controle da inflação.
Na prática, os juros subiram, os impostos
ficaram mais regressivos e a desigualdade piorou. A atual crise financeira
talvez seja uma nova virada nessa trajetória.
Na semana que vem, o tema é a “vingança do
rentismo” no Brasil.
Marcelo
Miterhof é economista do BNDES. O artigo não reflete
necessariamente a opinião do banco.
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