Toda vez que um
assunto polêmico surge na mídia, viraliza nas
redes sociais e chega às rodas de amigos,
reuniões de família e mesas de bar, começam a
pipocar, por toda parte, juízos de valor
genéricos a respeito “do Brasil” e “do povo
brasileiro”.
Essas
“análises”, que estão em alta no atual momento
pré-Copa, costumam ser, mais especificamente,
materializadas na forma de chavões babacas
mais antigos que a minha avó: são os famosos
“só no Brasil”, “isso é Brasil!”, e, ainda, o
clássico e meu preferido “o problema é a
cabeça do brasileiro” (que também pode
aparecer na carinhosa versão “o povo
brasileiro é burro”).
Que
a internet e os círculos sociais estão
recheados de ideias idiotas, preconceituosas e
desprovidas de qualquer senso lógico ou nexo
com a realidade não é novidade. O problema
aqui é que as pérolas pertencentes à categoria
“Brasil é uma merda porque é uma merda, e eu
não tenho nada a ver com isso” não vêm sendo
enquadradas como apatia mental, como deveriam,
mas como demonstração de revolta consciente e
politizada “contra tudo que está aí”. Um
quarto dos brasileiros acha que uma mulher de
shortinho merece ser estuprada? “Isso é
Brasil!”. A Petrobrás fez um mau negócio em
Pasadena? “Brasil, né?”. Algumas obras da Copa
do Mundo atrasaram? “Só no Brasil mesmo!”.
Não.
Não. E não. Na verdade, esse tipo de
pensamento vazio, reducionista e arrogante
empobrece o debate dos problemas que estão por
detrás dos acontecimentos (que acabam sendo
levianamente rotulados como “coisa do
Brasil”), além de estimular e legitimar uma
atitude resignada e egoísta ao melhor (ou
pior) estilo Pôncio Pilatos (“lavo minhas
mãos, porque a merda já estava feita quando eu
cheguei aqui”).
“Só no Brasil”? Não.
Em
primeiro lugar, vale uma pesquisa prévia a
respeito do assunto sobre o qual se está
emitindo opinião: será mesmo que o Brasil é o
único país a enfrentar esse problema específico que
você conheceu superficialmente através do link
que seu amigo compartilhou no Facebook? Pode
ter certeza que, em 99% dos casos, a gente
carrega o fardo junto com mais algumas dezenas
de países (se não com todas as
nações do planeta), ainda que ele pese mais ou
menos conforme o caso.
E
não estamos falando apenas de países
considerados “mais atrasados” e “menos
civilizados” que o Brasil. Tem
corrupção na Europa, os
Estados Unidos mal possuem um sistema
público de saúde, o
racismo segue forte em diversos países
“desenvolvidos”, e a
Inglaterra é descaradamente sexista. Por
isso, antes de iniciar um festival de
ignorância, babar ovo de gringo gratuitamente
e resumir seu discurso a uma frase
despolitizada como essa, lembre-se que o
Google está a apenas um clique. Caso
contrário, você corre o risco de continuar
contribuindo para que 40%
dos nascidos no Brasil prefiram ter outra
nacionalidade (apesar
de o
Brasil ser sonho de consumo
internacionalmente).
Se “isso é Brasil”, então “isso” é
você também.
Dou
a qualquer um o direito de achar o Brasil uma
merda monumental e sem precedentes, desde que
admita ser uma merda de pessoa também. Assim,
quando alguém disser “o Brasil é um lixo” ou
“o povo brasileiro é burro”, na verdade estará
dizendo “eu sou um lixo” e “eu sou burro”.
Combinado? Porque, caros amigos niilistas
radicais, é estranhamente conveniente
excluir-se, deliberadamente, do conjunto de
brasileiros, negando a própria cultura e
origem, bem na hora em que “a coisa aperta”,
não é?
As
expressões “isso é Brasil” ou “esse é o povo
brasileiro” não são, portanto, apenas
generalizantes e reducionistas, mas também um
tanto arrogantes. Quem as profere se julga
acima dos defeitos da sociedade brasileira, e
é incapaz de perceber que suas próprias
convicções, ideias e preconceitos são na
verdade um reflexo das características e
problemas da sociedade brasileira como um
todo.
Nem
é preciso nem dizer que esse tipo de
perspectiva segregatória, em que o locutor se
coloca em posição imparcial e de superioridade
em relação ao restante da população, gera
verdadeiros fenômenos de cegueira coletiva. Um
exemplo clássico é a inabilidade de algumas
pessoas em enxergar o próprio racismo, o que
popularizou expressões como “não sou racista,
mas…”, culminando com a negação
da existência de racismo no Brasil por
determinadas “correntes ideológicas”.
Então,
antes que comecemos a negar outros “ismos” por
aí (o que, a bem da verdade, já acontece),
vamos parar de subir em pedestais imaginários
e nos colocar em nossos devidos lugares: na
arquibancada junto com o resto do povão e toda
a torcida do Flamengo.
Se “isso é Brasil”, repetir esse
chavão não vai mudar nada (talvez só pra
pior).
Imagine
a seguinte situação hipotética: um sujeito
dito “politizado” está surfando na rede,
checando o feed de notícias do Facebook, dando
um rolê pelo Twitter e teclando no WhatsApp,
quando, casualmente, se depara com uma notícia
revoltante (sabemos que a internet está cheia
delas). Indignado com a situação ultrajante da
qual acaba de tomar conhecimento, nosso amigo
resolve mostrar toda a sua revolta por meio de
um comentário impactante no perfil de quem,
muito sagazmente, compartilhou aquela notícia
chocante com ele. “Fazer o que, né, colega?
Isso é o país em que vivemos. Viva o
Bra-ziu!”.
Satisfeito
com sua contribuição, o internauta bem
informado segue para os próximos “hits do dia”
nas redes sociais, afinal, “isso é
Brasil” — não tem jeito. E ele, pessoa
politizada e, portanto, ciente do “beco sem
saída” que é o nosso país, nem vai se dar ao
trabalho de pensar sobre o assunto (e muito
menos fazer algo a respeito), uma vez que essa
nação é feita de pessoas naturalmente
incompetentes e políticos naturalmente
corruptos. Confere? Não confere. Na verdade,
cidadão politizado, o problema, neste cenário,
não é o Brasil. É você.
Quando
um indivíduo, ao deparar-se com determinado
problema que considera sério, resume seu
pensamento e manifestação à depreciação verbal
genérica e gratuita de seu país, só podemos
concluir que ele atingiu um nível sobre-humano
de apatia mental e social. Além de não agir
para mudar a situação que o indignou,
contribui para difundir um clima negativo,
conformista e preguiçoso por onde passa,
contagiando outras pessoas com a ideia
deturpada de que é impossível mudar as coisas
para melhor (ou que simplesmente não vale a
pena), porque “o povo brasileiro é assim
mesmo”.
Resumo
da ópera: quem não quiser realmente tentar
entender o problema, trocar ideias sobre como
solucioná-lo, contribuir com organizações e
movimentos sociais envolvidos no assunto,
criar ou participar de campanhas de
conscientização, e procurar votar em políticos
empenhados na causa em questão, que pelo menos pare de encher o saco com
reducionismos pessimistas e burros.
A esfera pública agradece.
“Isso é Brasil” agora, mas pode
mudar. E depende de você também.
Imaginem
se, há 30, 40 anos atrás, quando ainda
vivíamos uma ditadura, todos pensassem que o
“Brasil é assim mesmo”, que “somos um povo
submisso que só funciona na ‘base da
porrada’”? Imaginem se a população tivesse
desistido de exigir a redemocratização, e se
resignado, limitando-se a comentar com seus
conhecidos, em cafés e restaurantes, que
“aquilo era o Brasil”. Foi porque as pessoas
não se conformaram com o que o Brasil era ou
parecia ser que hoje nós vivemos uma
democracia plena, onde todos podem se
manifestar da forma que julgam melhor (até de
forma superficial e não construtiva, como a
que estamos tratando neste texto).
O direito à
liberdade de pensamento e expressão é
indiscutível, e o que deixo aqui é apenas um
humilde conselho: vamos usar essas
prerrogativas de verdade. Para
debater, e não para cair em chavões limitados
e vazios de que o país é uma porcaria
generalizada, pior que qualquer outro, que
nosso povo é burro e corrupto, que estamos no
fundo poço e nunca sairemos dele, e que é
impossível mudar a realidade em que vivemos.
Isso não quer dizer, de forma alguma, que
devemos fugir dos problemas ou nos
conformarmos com o que já foi conquistado,
pois ainda existem inúmeros desafios a serem
superados nesse Brasil continental. Se “isso”
é mesmo o Brasil, a mudança só depende de nós.
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