Da Carta Capital
Quando as opiniões são bloqueadas pela intimidação, o debate escapa às normas da razão e pode ser manipulado
por Luiz Gonzaga Belluzzo
Em sua coluna na Folha de S.Paulo, o
jornalista Clóvis Rossi acusou a emergência de um perigoso déficit de
civilização na vida brasileira. Enquanto se discute o tamanho do
superávit primário, os ganhos seculares do doloroso e secular processo
civilizador se transformam em pesados prejuízos na Terra de Santa Cruz.
Não há sucesso econômico que possa contrabalançar os déficits de
civilidade.
Há que ressalvar os resistentes nas
barricadas do projeto humano nascido na idade do Esclarecimento. São
brasileiros que ainda apresentam sintomas da sobrevivência em seus
espíritos do DNA do processo civilizador e dos valores que a sociedade
moderna pretexta ostentar. Muitos arriscam a pele e ousam escrever para
as seções de Cartas ao Leitor ou cometem a imprudência de comentar nos
blogs os comentários dos fanáticos. Quase sempre, os ululantes
retrucaram com as armas do preconceito, da intolerância e da apologia da
violência, seja ela física, seja ela moral. Entre as vítimas, sucumbe a
última flor do Lácio, inculta e bela.
Alguém já dizia que há método na
loucura, mas, no Brasil do Terceiro Milênio, a democratização da
grosseria empenha-se em aperfeiçoar a metodologia da brutalidade.
Expressões como “idiotas politicamente corretos”, “elite vagabunda”
poucas vezes foram utilizadas com tanta liberalidade. A generosa
distribuição de adjetivos não raro é acompanhada de exaltadas
conclamações para o retorno dos militares ou sugestões para que os
calabouços voltem a abrigar os adversários.
Peço licença aos leitores para repetir
o que já escrevi nesta coluna: os estudiosos do totalitarismo sabem que
a “autovitimização” da “boa sociedade” e a inculpação do “outro” foram
métodos eficientes para a conquista do poder absoluto. Vejo nos blogs:
os mais furiosos se apresentam como paladinos dos “humanos direitos”, em
contraposição aos defensores dos “direitos humanos”. Fico a imaginar
como seria a vida dos humanos direitos na moderna sociedade capitalista
de massas, crivada de conflitos e contradições, sem as instituições que
garantam os direitos civis, sociais e econômicos conquistados a duras
penas. A possibilidade da realização desse pesadelo, um tropismo da
anarquia de massas, tornaria o Gulag e o Holocausto um ensaio de
amadores.
Hannah Arendt em As Origens do
Totalitarismo abordou as transformações sociais e políticas na era do
capitalismo tardio e da sociedade de massas. A economia dos monopólios
promoveu a substituição da empresa individual pela coletivização da
propriedade privada e, ao mesmo tempo, a “individualização do trabalho”,
engendrada pelas novas modalidades tecnológicas e organizacionais da
grande empresa. A isso juntou-se a conversão ao regime salarial das
profissões outrora conhecidas como liberais. A operação impessoal das
forças econômicas produziu, em simultâneo, o declínio do homem público e
a ascensão do “homem massa, cuja principal característica não é a
brutalidade ou a rudeza, mas o seu isolamento e a sua falta de relações
sociais normais”.
Trata-se da abolição do sentimento de
pertinência, sem a supressão das relações de dominação. “As massas
surgiram dos fragmentos da sociedade atomizada, cujas estrutura
competitiva e concomitante solidão do indivíduo eram controladas quando
se pertencia a uma classe. O fato de que o ‘pecado original’ da
acumulação primitiva de capital tenha requerido novos pecados para
manter o sistema em funcionamento foi eficaz para persuadir a burguesia
alemã a abandonar as coibições da tradição ocidental... Foi esse fato
que a levou a tirar a máscara da hipocrisia e a confessar abertamente
seu parentesco com a escória.” A escória, na visão de Arendt, não tem a
ver com a situação econômica e educacional dos indivíduos, “pois até os
indivíduos altamente cultos se sentiam particularmente atraídos pelos
movimentos da ralé”.
Hannah Arendt escreveu sobre o
totalitarismo no século XX e ressaltou a importância da esfera pública
onde se formam os consensos pelo livre debate de ideias. O único remédio
contra o mau uso do poder público pelos indivíduos privados está na
constituição de um espaço público capaz de avaliar os procedimentos de
cada cidadão, submetendo todos os indivíduos à visibilidade. Quando as
opiniões são bloqueadas pela intimidação e desqualificação sistemáticas,
a meritocracia das ideias sofre um grave dano e o debate democrático
escapa às normas da razão e pode ser manipulado.
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