Mempo Giardinelli - Página/12 no site Carta Maior
postado em: 01/05/2014
Tal como nas costuras rápidas, nas quais já em seguida se vê o alinhavo, nesta semana, vozes improvisadas de políticos, economistas e advogados portenhos ocuparam o centro das atenções falando sobre pobreza e miséria com discursos sobre a fome.
Como cogumelos depois da chuva, o ar se encheu de denúncias e acusações – midiáticas, é claro – sobre o suposto “ocultamento de dados sobre pobreza e indigência por parte do Governo”.
Com base em imprecisas “medições alternativas” às quais o Clarín e o La Nación costumam recorrer, calculou-se de um dia para o outro que a pobreza teria alcançado 36,5% da população (ou seja, 15,4 milhões de argentinos).
O Instituto de Pensamento e Políticas Públicas (IPePP), coordenado por Claudio Lozano e Tomás Raffo, assegurou que 5 milhões de pessoas passam fome – ou seja, 12% dos argentinos. As fontes? Dados próprios, da ATE no Indec e de uma ex-diretora do organismo demitida pelo governo.
Desde cedo, certo setor do kirchnerismo especializado em lerdezas e confusões contribuiu para o duvidoso panorama. Agora evitam publicar os primeiros dados de pobreza e indigência que o Indec ia publicar em sua etapa atual, com o intuito de recuperar a transparência. Com isso, só fizeram um estúpido favor a todos os que se excitam com “as mentiras K”.
Certamente, a pobreza real na Argentina também não está como aquela pintada pelo Governo que, embora tenha executado consistentes e constantes políticas de inclusão social, está longe de conseguir os objetivos que seriam coerentes com os extraordinários recursos deste país. Seja como for, em diversas instâncias do Governo se aceita que haja entre 4,7% e 8% de pobres e indigentes (entre 2 e 4 milhões de pessoas). Isso com a óbvia intenção de mostrar a bondade das políticas inclusivas kirchneristas, uma vez que os índices de pobreza em 2003 eram espantosos e alcançavam cerca de 50% da população do país.
De todo modo, a pobreza e a indigência que acabam de ser colocadas de maneira tão forçada como escandalosas no debate midiático não são o ponto central. Porque pobreza e indigência existem na Argentina em números esmagadores desde pelo menos a ditadura militar (1976-1983), e também desde a ausência absoluta de políticas de contenção social dos primeiros governos da democracia (1983-2001). Por isso, desde então, e sobretudo depois do estouro de miséria generalizada que resultou do carnaval político e de corrupções no governo Menen, tornou-se extremamente difícil reverter a marginalização social e sua carga opressora de ressentimento, atraso educacional e violência em todas as ordens.
Gostem ou não disso, e por mais raiva que isso angarie, é um fato que o kirchnerismo fez, na última década, muito do que seria necessário fazer para estancar a ferida que esse abismo social representa. As políticas tipicamente peronistas podem ser amadas ou odiadas, mas nos últimos anos foram o único esforço verdadeiro e constante para diminuir as brechas sociais.
Por isso, cansa tanto esse penoso papel de políticos e jornalistas “indignados”, que jamais se ocuparam da ou se interessaram pela pobreza, mas agora se disfarçam de profetas da justiça social.
Para os que conhecemos a pobreza de perto, entre outras coisas porque vemos todos os dias este que é o rosto mais feio da Argentina há décadas, essa atitude é, pelo menos, obscena. Miserável em si mesma, esta sim é uma miséria humana que não é medida nem pelo Indec e nem por “medições alternativas”.
Essa pobreza supostamente ocultada pelo Governo e agora “revelada” por esses oportunistas de todo tipo só coloca em evidência quem nunca a viu porque jamais quis vê-la. Porque ali está ela, onde sempre esteve, e em todo caso é igualmente horrível que sejam três, dez ou vinte milhões os pobres deste país.
A pobreza e a indigência são uma vergonha para qualquer nação. E são, ainda, um contrassenso histórico, porque hoje existem alimentos e recursos no mundo para alimentar e tornar digno todo o planeta. Mas também impera um sistema de concentração econômica que é profundo, brutalmente desigual e antissocial.
O Banco Mundial diz que, em todo o mundo, mais de 1 bilhão de pessoas continua vivendo na miséria, e muitos outros passam fome e são vulneráveis a crises ambientais e a abusos do mercado. E hoje sabemos que as 85 pessoas mais ricas do mundo têm tanto dinheiro como 3,570 bilhões de pessoas pobres – o que é uma vergonha para a espécie.
Segundo a Wikipédia, existem 46 milhões de pobres nos Estados Unidos. Na Espanha, entre 22% e 28% da população está no limiar da pobreza. E a Eurostat (o escritório europeu de estatísticas) reconhece que um em cada quatro europeus é pobre ou vive sob risco de exclusão social, o que significa 124 milhões de pobreza. E inclusive no Brasil, onde as presidências de Lula e Dilma também levaram a cabo extraordinárias políticas de inclusão social, ainda se calcula que 30% da população têm suas necessidades básicas insatisfeitas.
Então, como não se cansar com o repudiável uso político e midiático de um dos rostos mais dolorosos da realidade argentina, latino-americana e mundial?
Tradução: Daniella Cambaúva
Tal como nas costuras rápidas, nas quais já em seguida se vê o alinhavo, nesta semana, vozes improvisadas de políticos, economistas e advogados portenhos ocuparam o centro das atenções falando sobre pobreza e miséria com discursos sobre a fome.
Como cogumelos depois da chuva, o ar se encheu de denúncias e acusações – midiáticas, é claro – sobre o suposto “ocultamento de dados sobre pobreza e indigência por parte do Governo”.
Com base em imprecisas “medições alternativas” às quais o Clarín e o La Nación costumam recorrer, calculou-se de um dia para o outro que a pobreza teria alcançado 36,5% da população (ou seja, 15,4 milhões de argentinos).
O Instituto de Pensamento e Políticas Públicas (IPePP), coordenado por Claudio Lozano e Tomás Raffo, assegurou que 5 milhões de pessoas passam fome – ou seja, 12% dos argentinos. As fontes? Dados próprios, da ATE no Indec e de uma ex-diretora do organismo demitida pelo governo.
Desde cedo, certo setor do kirchnerismo especializado em lerdezas e confusões contribuiu para o duvidoso panorama. Agora evitam publicar os primeiros dados de pobreza e indigência que o Indec ia publicar em sua etapa atual, com o intuito de recuperar a transparência. Com isso, só fizeram um estúpido favor a todos os que se excitam com “as mentiras K”.
Certamente, a pobreza real na Argentina também não está como aquela pintada pelo Governo que, embora tenha executado consistentes e constantes políticas de inclusão social, está longe de conseguir os objetivos que seriam coerentes com os extraordinários recursos deste país. Seja como for, em diversas instâncias do Governo se aceita que haja entre 4,7% e 8% de pobres e indigentes (entre 2 e 4 milhões de pessoas). Isso com a óbvia intenção de mostrar a bondade das políticas inclusivas kirchneristas, uma vez que os índices de pobreza em 2003 eram espantosos e alcançavam cerca de 50% da população do país.
De todo modo, a pobreza e a indigência que acabam de ser colocadas de maneira tão forçada como escandalosas no debate midiático não são o ponto central. Porque pobreza e indigência existem na Argentina em números esmagadores desde pelo menos a ditadura militar (1976-1983), e também desde a ausência absoluta de políticas de contenção social dos primeiros governos da democracia (1983-2001). Por isso, desde então, e sobretudo depois do estouro de miséria generalizada que resultou do carnaval político e de corrupções no governo Menen, tornou-se extremamente difícil reverter a marginalização social e sua carga opressora de ressentimento, atraso educacional e violência em todas as ordens.
Gostem ou não disso, e por mais raiva que isso angarie, é um fato que o kirchnerismo fez, na última década, muito do que seria necessário fazer para estancar a ferida que esse abismo social representa. As políticas tipicamente peronistas podem ser amadas ou odiadas, mas nos últimos anos foram o único esforço verdadeiro e constante para diminuir as brechas sociais.
Por isso, cansa tanto esse penoso papel de políticos e jornalistas “indignados”, que jamais se ocuparam da ou se interessaram pela pobreza, mas agora se disfarçam de profetas da justiça social.
Para os que conhecemos a pobreza de perto, entre outras coisas porque vemos todos os dias este que é o rosto mais feio da Argentina há décadas, essa atitude é, pelo menos, obscena. Miserável em si mesma, esta sim é uma miséria humana que não é medida nem pelo Indec e nem por “medições alternativas”.
Essa pobreza supostamente ocultada pelo Governo e agora “revelada” por esses oportunistas de todo tipo só coloca em evidência quem nunca a viu porque jamais quis vê-la. Porque ali está ela, onde sempre esteve, e em todo caso é igualmente horrível que sejam três, dez ou vinte milhões os pobres deste país.
A pobreza e a indigência são uma vergonha para qualquer nação. E são, ainda, um contrassenso histórico, porque hoje existem alimentos e recursos no mundo para alimentar e tornar digno todo o planeta. Mas também impera um sistema de concentração econômica que é profundo, brutalmente desigual e antissocial.
O Banco Mundial diz que, em todo o mundo, mais de 1 bilhão de pessoas continua vivendo na miséria, e muitos outros passam fome e são vulneráveis a crises ambientais e a abusos do mercado. E hoje sabemos que as 85 pessoas mais ricas do mundo têm tanto dinheiro como 3,570 bilhões de pessoas pobres – o que é uma vergonha para a espécie.
Segundo a Wikipédia, existem 46 milhões de pobres nos Estados Unidos. Na Espanha, entre 22% e 28% da população está no limiar da pobreza. E a Eurostat (o escritório europeu de estatísticas) reconhece que um em cada quatro europeus é pobre ou vive sob risco de exclusão social, o que significa 124 milhões de pobreza. E inclusive no Brasil, onde as presidências de Lula e Dilma também levaram a cabo extraordinárias políticas de inclusão social, ainda se calcula que 30% da população têm suas necessidades básicas insatisfeitas.
Então, como não se cansar com o repudiável uso político e midiático de um dos rostos mais dolorosos da realidade argentina, latino-americana e mundial?
Tradução: Daniella Cambaúva
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