Quem quer agitar um velho
espantalho da Guerra Fria
Paulo Moreira Leite
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi
Diretor da Sucursal da ISTOÉ em Brasília, é autor de "A Outra História do Mensalão". Foi
correspondente em Paris e Washington e ocupou postos de direção na VEJA e na Época.
Também escreveu "A Mulher que Era o General da Casa".
Num momento em que o publicitário aposentado Enio Mainardi pede
“contrarrevolução já” e apela para golpe militar para impedir que uma
aliança formada pelo presidente venezuelano Nicolas Maduro, Lula, Dilma
e Fidel Castro transforme nosso Continente numa “ex-Democracia,
comandada por líderes comunistas”, convém definir o que pode haver
de realidade além do folclore anacrônico e ridículo.
Em 25 minutos imperdíveis, o jornalista Igor Fuser foi a GloboNews para
dar uma aula impecável sobre a realidade venezuelana desde a chegada
de Hugo Chávez ao poder, uma década e meia atrás. Quem não assistiu
não pode perder a oportunidade.
Há mais de uma década que a oposição brasileira procura semelhanças
entre o governo Lula-Dilma e Hugo Chávez. Esses paralelos fazem parte
daquelas fantasias comuns no período da Guerra Fria que continuam
reproduzidas pela turma que não aproveitou a globalização para ler jornais
melhores.
Chávez chegou ao poder como um político de formação revolucionária,
com um compromisso favorável a mudanças radicais que nunca fizeram
parte do horizonte de Lula.
A partir de uma perspectiva diferente, Chávez também teve uma atuação
diferente, de quem fazia apostas na mobilização popular para enfrentar e
derrotar a elite de seu país – em vez de procurar o consenso e a negociação,
que sempre foram instrumentos prediletos de Lula. No plano internacional,
o presidente brasileiro teve uma convivência com o presidente George W Bush
que seria considerada inaceitável por Chávez.
O que há de mais parecido nos dois países não são os governos, mas a postura
de suas oposições diante do processo de mudança social em curso na Venezuela
e no Brasil.
Derrotada nas urnas há 15 anos, sem intervalos, a oposição venezuelana fez
diversas tentativas de impedir a consolidação de Hugo Chávez no poder. Deu
um golpe de Estado de 72 horas, no início de 2002. Apesar do apoio
incondicional da Embaixada americana, que usou sua influencia para pedir
o reconhecimento imediato do novo governo, o repúdio internacional –
inclusive do governo Fernando Henrique Cardoso – levou à restauração
democrática e permitiu o retorno de Chávez ao poder.
No final daquele mesmo ano, a oposição ensaiou um segundo golpe. Paralisou
as refinarias de petróleo – responsáveis por 90% das divisas necessárias a
compra de bens de primeira necessidade, inclusive alimentos e roupas – numa
tentativa de sufocar a economia e forçar a queda do governo. Já eleito novo
presidente, Lula teve um papel essencial no desarme da crise. Anunciou que
no primeiro dia da posse a Petrobrás iria enviar um navio de petróleo em
direção a Caracas. Lula também articulou, com presidentes de países vizinhos,
o apoio a convocação de um referendo revocatório, pelo qual Chávez
consultaria a população sobre sua permanência na presidência. Inicialmente
desconfiado, Chávez acabou concordando com a iniciativa. Venceu o referendo
sem dificuldade, ampliando sua base política de apoio.
No episódio seguinte, a oposição apostou na criação de uma nova crise a
partir de uma decisão suicida. Convencidos de que não teriam chances de
obter uma parcela importante das cadeiras na Assembleia Nacional, seus
lideres boicotaram as eleições parlamentares. A ideia era retirar a legitimidade
de toda decisão que saísse do Legislativo para forçar uma nova paralisia do
governo e facilitar novas iniciativas de isolamento internacional. Mais uma
vez, deu errado. Mesmo sem oposição parlamentar, o governo Chávez foi
capaz de agir dentro de um quadro coerente com a relação de forças do país.
Manteve a iniciativa política, aprovou medidas de acordo com seu programa
mas dificilmente será acusado – a sério – de aproveitar-se da retirada de seus
adversários para cometer aventuras políticas. Na prática, era acusado de
monopolizar o poder por uma oposição que fora reduzida, por decisão de sua
única responsabilidade, a um papel de comentar os atos do governo.
O que se vê, na atitude da oposição venezuelana é uma visão clara e radical
da situação política. Não é capaz de aceitar, democraticamente, um
prolongado quadro institucional desfavorável, marcado por sucessivas derrotas
eleitorais que, de uma forma ou de outra, têm resultado em medidas que a
maioria da população aprova. Seu horizonte é o da ruptura e do golpe de
Estado, convencida de que, se fizer sua parte, isto é, demonstrar competência
para produzir a queda de Nicolas Maduro, não lhe faltará o necessário apoio
dos Estados Unidos para consolidar a nova ordem.
Em 2002, com George W Bush na Casa Branca, a política de combate ao
chamado “Eixo do Mal” assegurou um papel ativo de emissários norte-
americanos a Caracas, a tal ponto que muitas posições na embaixada
americana passaram ao controle de veteranos de operações anti-comunistas
na América Central, os contras que atuaram na Nicarágua e El Salvador. Com
Barack Obama, a Casa Branca manteve-se numa posição menos ativa, ainda
que, nos últimos dias, com a evolução da crise em Caracas, tenha feito
exigências fora do tom diplomático aceitável. A presença de aliados de
Maduro nos principais países vizinhos, a começar pelo governo brasileiro,
de longe o Estado mais influente da região, é um elemento poderoso de
dissuasão contra um envolvimento maior dos EUA. A reação firme contra o
golpe que derrubou o presidente Lugo, no Paraguay, tem algo a ver com isso.
Os médicos cubanos se tornaram uma obsessão da oposição brasileira depois
de terem ocupado o mesmo lugar na estratégia da oposicáo venezuelana.
Cheguei a visitar centros de saúde da periferia de Caracas e também
entrevistei o responsável pela Organização Pan Americana de Saúde, que
possui estatísticas capazes de mostrar o progresso ocorrido nas regiões
mais pobres do país.
Embora a oposição faça questão de desqualificar médicos cubanos, é difícil
negar oferecem aos venezuelanos um cuidado e um tratamento a que eles
jamais tiveram acesso. Ganham muito menos do que os rendimentos
auferidos pelos médicos do país. Mas é justamente por isso que são capazes
de prestar serviços que jamais puderam ser oferecidos aos venezuelanos
pobres. Alguma semelhança com o Mais Médicos?
Com uma dependência histórica das exportações de petróleo, um mercado
interno relativamente pequeno, a Venezuela pagou um preço mais alto do
que o Brasil pela crise internacional iniciada em 2008. O crescimento
econômico caiu, a inflação subiu, o desemprego aumentou. Mas mesmo
assim, Chávez conseguiu se eleger – já doente terminal – e seu sucessor
nomeado, Nicolas Maduro, foi escolhido como novo presidente, numa prova
de que a população resiste na defesa de suas conquistas.
No Brasil, que vive uma situação objetiva mais confortável, a oposição
precisa do pessimismo psicológico como uma política permanente.
Compreende-se. Com índices excelentes de emprego e de contínua
distribuição de renda, é complicado travar uma discussão eleitoral aberta,
a partir de argumentos racionais e propostas objetivas. É necessário alimentar
o tumulto, criar a desesperança, forjar o medo.
Publicitários sabem fazer isso.
Em 1962, Juarez Bahia perdeu o emprego de redator chefe do Correio da
Manhã, então o mais influente jornal brasileiro, quando se recusou a engajar
a publicação numa campanha para obrigar o governo João Goulart a
(advinhou!) romper relações com Cuba.
As mais aplicadas partidários da ruptura, nos meios de comunicação, eram
as filiais das grandes agencias de publicidade norte-americanas.
Dois anos depois da saída de Juarez Bahia, o Correio fez o editorial “Basta!”,
quando deixou o campo da democracia, onde havia firmado uma invejável
tradição, para apoiar o golpe militar que derrubou Goulart.
http://istoe.com.br/colunas-e-blogs/colunista/48_PAULO+MOREIRA+LEITE
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