Há algo de podre na política brasileira. O discurso do ódio contaminou a cultura. A violência física que assusta não é mais condenável do que a degradação pela palavra. Introduzido durante os debates da Ação Penal 470, a televisão propagou Brasil a fora o escárnio como argumento, a salivação como prova irrefutável e a falta de compostura de alguns magistrados como aparte retórico. Surpreendente a cada dia, durante todo o segundo semestre de 2013, os indiscutíveis mestres do STF, solidamente preparados, transformavam-se em arengueiros pernósticos a vociferar vitupérios em latim, em alemão e em inglês. À língua portuguesa reservaram-se rebuscadas construções gramaticais com que degradavam de modo vil os réus em julgamento. O valor intrínseco das evidências, muita vezes nulo, era irrelevante para o altissonante juízo que os homens de capas fúnebres proferiam.
Foi negado aos acusados a preservação última da dignidade de pessoa, a mesma que foi concedida ao assassino de Tim Lopes, Elias Maluco, ao ser descoberto: “prende, mas não esculacha”. Com linguajar de estilo maneirista, as capas fúnebres do Supremo Tribunal Federal esculacharam quanto quiseram os réus da Ação Penal 470 perante uma audiência nacional, nela incluídos os “Elias Malucos” em liberdade. E continuam, buscando proibir que sejam depositários da solidariedade de cidadãos e cidadãs em pleno gozo de seus direitos civis e políticos. Não podendo oficialmente matá-los ou bani-los, apostam impor-lhes o ostracismo. É o discurso da vingança impotente movido a ódio.
O estímulo ao linguajar desabrido e ao julgamento apressado e irrecorrível encontrou na já virulenta blogosfera a ecologia apropriada para reprodução cancerosa. Com a ferramenta do anonimato e a indulgência prévia a qualquer desvario, o Caim em nós desabrochou com velocidade sônica. A filosófica vontade de morte, a definição humana de um ser para morte, revela-se menos conceitual e inocente na real inclinação para matar. A internet veicula milhares de assassinatos virtuais e de convocatórias à destruição. Sem não mais do que o subterfúgio de códigos primários, quando muito, ações predatórias são incentivadas a qualquer título. É total o descompasso entre avanço social e econômico do País e as toscas bandeiras eventualmente desfraldadas. Na internet ou nas manifestações selvagens até mesmo os partidos radicais perdem importância. Não são eles que se aproveitam da turba para propaganda e crítica ao governo, é a violência irracional que se serve deles como escudo e defesa ideológica.
As antigas irrupções de quebra-quebra, de confronto entre polícia e manifestantes, e até mesmo episódios de grande magnitude, como a destruição das barcas em Niterói, no século passado, não têm parentesco próximo com o vírus do ódio contemporâneo. Aquelas eram manifestações tópicas, de enredo conhecido e de duração previsível. Estas são projetos de vida e morte. Tempo mal empregado o debate sobre a responsabilidade partidária dos confrontos atuais. O novo é a capacidade de mobilização a-e-trans-partidária das convocações subliminarmente homicidas.
A agressão pela palavra é companheira da agressão à palavra, à linguagem. A amputação da língua portuguesa tem sido o resultado não antecipado da linguagem de Caim. São as frases, os verbos, as concordâncias as primeiras vítimas de todos os blocos de suposta vanguarda. Essas agressões são antigas, mas da blogosfera estão sendo trasladadas ao vocabulário jornalístico e da televisão. Não só os textos de colunistas, repórteres e comentadores trazem conteúdo hiperbolicamente crítico, mas o vocabulário que utilizam é vulgar e de cada vez mais miserável. Não mais m..., pqp, fdap ou c......o.
Agora, intelectuais e jornalistas se esmeram por extenso na vulgaridade da frase e na crueza dos termos. É uma violência à palavra, ajudando a violência pela palavra, destruindo importante fonte de transmissão de cultura. Não se aprimora o aprendizado da língua portuguesa lendo os jornais, as revistas, seus colunistas e editoriais rasteiros. Tornaram-se tão decadentes quanto o ressentimento que difundem. Nem se discorda mais, se ofende. A violência está usurpando a democracia.
Sim, há algo de podre na política brasileira, mas enganam-se os que presumem que a podridão esteja só no Legislativo ou que de lá provenha. Para essa há remendos que asseguram a sobrevivência democrática. Em putrefação está a cultura nacional pelo envenenamento de parte de suas fontes de elite: a cultura jurídica, o debate político e a cultura da informação. O péssimo é que, tal como os políticos costumam absolver seus pares, é mínima a probabilidade de que juízes ou professores ou jornalistas reconheçam a responsabilidade que lhes toca nessa podridão. São castas auto-imunes.
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