Alexandre Haubrich - Jornalismo B
Estava
inclinado a não me manifestar sobre a morte de Santiago Andrade, pai,
marido e cinegrafista, trabalhador da TV Bandeirantes. Afinal de contas,
era uma em tantas mortes violentas que acontecem a todo instante no
Brasil. Também era apenas uma entre as tantas mortes que já aconteceram
em meio aos protestos que ganharam força em junho do ano passado. Também
era uma entre as mortes ligadas à vinda para o Brasil da Copa do Mundo
de futebol. Mas as circunstâncias me levaram a escrever, já que há, por
parte de alguns setores reacionários da sociedade – incluindo aí os
conglomerados de comunicação – uma dupla reação à morte de Santiago: a
espetacularização de seu caso e o esquecimento dos outros.
Os
momentos seguintes à morte do cinegrafista podem transformar este em
mais um momento de inflexão na dinâmica dos protestos, das reações a
eles e das consequências mais rasas e mais profundas de tudo isso. É por
esse motivo que resolvi escrever a respeito, pela percepção de que
temos agora mais um desses momentos importantes dentro de um processo
tão complexo quanto o que temos vivido desde junho.
Há, em boa
parte das análises que pululam por aí, uma série de desonestidades,
outra série de equívocos e mais algumas séries de interesses envolvidos.
Esses três elementos formam um círculo: os interesses levam às
desonestidades, que constroem na cabeça de terceiros os equívocos, as
precipitações, em muitos casos exacerbados por uma justa necessidade de
defender o inocente morto. Mesmo com esse sentimento aflorado, é
necessário ter responsabilidade para que a emoção não faça dormir a
razão e se assuma a reflexão necessária aos que lutam por
transformações.
Uma das
formulações maliciosas que têm aparecido classifica o episódio da morte
de Santiago como um atentado contra a “liberdade de imprensa”. Isso é
uma farsa. A construção desse discurso pelos conglomerados midiáticos
tem uma sentido objetivo: a blindagem contra futuras manifestações, já
que cada vez mais a revolta – e os protestos – se voltam contra o
aparelho discursivo das elites – a mídia dominante. O grito por
“liberdade de imprensa” há tempos é usado como desculpa e como escudo
contra tudo o que pode ameaçar os interesses políticos, ideológicos e
econômicos dos conglomerados de comunicação, e situações que permitam a
construção de mecanismos de blindagem são sempre bem aproveitadas.
É verdade
que os jornalistas estão sofrendo na cobertura dos protestos. Sofrendo
com a polícia, por um lado, e, por outro, com grupos de manifestantes
que enxergam nos repórteres a representação das empresas que os
criminalizam e marginalizam e que defendem interesses opostos aos seus. A
discussão em torno disso deve ser feita, o debate não sobre essa
questão não pode e não deve ser obstaculizado, mas a morte de Santiago
não tem relação direta com ele. O que se pode e se deve debater em
relação ao tema “jornalismo e protestos”, nesse caso, é sim a
precariedade das condições de trabalho dos funcionários dos grandes
grupos de mídia. Santiago estava em uma zona de conflito, e
absolutamente desprotegido.
A ameaça à
“liberdade de imprensa” não é o único mito criado em meio aos
protestos. Há muitos outros, e um deles se aplica com perfeição a esse
caso. A mídia dominante tem como prática histórica a construção de
chavões que identificam rapidamente os leitores-telespectadores-ouvintes
com determinadas narrativas e ao mesmo tempo criam imediatamente
sensações previstas – e construídas anteriormente através de associações
repetidas. É o caso dos “anarquistas mascarados”, do “vandalismo” como
forma de descrever quaisquer atitudes que fujam ao tido como ordeiro, e à
classificação de quaisquer “desordeiros” como “integrantes de grupos
black bloc”. Essa construção tem sido utilizada para separar
“manifestantes pacíficos” de “vândalos infiltrados”, ignorado que os
“vândalos” também fazem parte das manifestações e também se manifestam –
de sua própria forma. Um tipo de manifestação, menos danoso e mais controlável,
é bem aceito, em contraposição aos “radicais”. Sempre foi assim.
Inclusive durante a ditadura militar havia os “oposicionistas pacíficos e
comportados” – o MDB – e os “radicais perigosos” – todos os outros. A
formulação não mudou – nem os objetivos, nem os formulantes.
Na verdade
não há “grupos black blocs”, mas sim uma tática que pode ser usada por
diversos grupos durante um protesto. E também não há, como tática black
bloc, esse “vale tudo” que é apresentado. O ataque a pessoas, por
exemplo, fica fora dessa tática. É claro que isso não separa a morte de
Santiago da atuação dos manifestantes que utilizam a violência como
forma de atuação, mas a relação que se estabelece aí é diferente do
simplório e falsificado “a violência dos grupos black blocs matou o
cinegrafista”. A relação real é: por uma série de circunstâncias muito
mais profundas do que a alienação de que são acusados esses
manifestantes, eles optam por essa tática ou, em diversos casos, por
outras formas de atuação violentas que não exatamente a tática black
bloc. Esse tipo de ação alimenta a violência policial – que existe
diariamente nas periferias e, em menor medida, também fora delas – que,
por sua vez, alimenta protestos mais violentos. Em meio a esse
descontrole, em meio a essa balbúrdia de ações e reações – criadas, no
fundo, por um sistema social, político e econômico injusto e perverso –
pode sobrar para todo mundo, mesmo para quem não é alvo de um lado nem
de outro. Sobrou para Santiago.
O último e
mais importante equívoco, que às vezes pende mais à desonestidade, é a
tentativa de transformar a morte de Santiago na temática central dos
debates sobre os protestos. Essa é a questão de fundo, essa é a
distorção que ao mesmo tempo forma e é formada pelas anteriores, e que
tem alguns objetivos claros: aprofundar o processo de criminalização das
manifestações, dividir os ativistas, enfraquecer e secundarizar as
pautas reais, aumentar a pressão para que a repressão seja cada vez mais
violenta. Os interesses que levam a essas buscas são os mais diversos,
desde a direita partidária, passando pela direita midiática, chegando a
setores ligados ao governo federal. A velha direita oligárquica – seja
midiática ou partidária – busca como objetivos específicos construir-se
como alternativa eleitoral forte e proteger seus interesses
patrimoniais, além de enfraquecer movimentos organizados de esquerda,
incluindo partidos políticos. Setores petistas – aparentemente
minoritários –, por outro lado, buscam na criminalização dos protestos a
calmaria que proteja sua reeleição. Parece conflitivo, mas não é. Tanto
um quanto o outro querem dominar e controlar os acontecimentos, e, por
razões e com objetivos distintos, entram em choque com os manifestantes.
Há, de qualquer forma, um denominador comum fundamental: a tentativa de
travar a luta por mudanças.
Muitos
militantes, influenciados por esse contexto forçado, têm caído no erro
da formulação de um discurso comum na chamada “direita de senso comum” –
quer dizer, aqueles que apenas reproduzem discursos de direita, sem
refletirem muito a respeito, pelo simples fato de a posição conservadora
ser automaticamente a primeira a vir à mente, geralmente impulsionada
mais pela emoção do que pela razão. Falo especificamente do processo de
“fulanização” do debate político, e que nesse caso tem relação direta
com a tentativa de tirar as pautas dos protestos do centro das
discussões colocando em seu lugar a morte de Santiago Andrade. É a
história do “e se fosse com alguém da tua família”, uma formulação que
abandona a racionalização pela emoção, abandona os interesses coletivos
pelos individuais e abandona a noção de sociedade e civilização pela
barbárie. É compreensível que a família do cinegrafista sinta raiva. É
compreensível – e importante – que cada um de nós se solidarize com sua
raiva e com sua dor, é fundamental acabar com a era da naturalização da
violência e da morte fora de lugar, mas não é saudável que nos deixemos
todos levar por esses sentimentos de forma a atropelar a razão. Esse
caminho leva à barbárie, fazendo suas curvas de forma a desviar da
contextualização histórica e social dos fatos sobre os quais nos
debruçamos. Algum nível de afastamento – um equilíbrio que não chegue
nem à indiferença nem à precipitação ignorante – é condição necessária
para qualquer análise da realidade, e, como tal, é condição necessária à
intervenção justa e consciente sobre essa realidade.
Uma
avaliação equilibrada – veja bem, equilibrada, não imparcial – da
realidade, da trajetória histórica e dos fatos mais recentes faz ver que
a violência é geral, e, como não cansamos de repetir, um problema
social causado por um sistema social, político e econômico injusto, em
que uns poucos exploram e oprimem muitos outros. A violência estoura, de
uma forma ou de outra, e a resposta das elites é sempre mais violência –
midiática ou policial. Os resultados são conhecidos: mais violência,
muitas mortes – quase sempre de negros pobres –, mais opressão. Santiago
não foi o primeiro cadáver da reação à junho de 2013.
O site do grupo Anonymus publicou uma lista de pessoas mortas e gravemente feridas na onda de protestos. Nenhuma morte ganhou tanto destaque
quanto a de Santiago. Uma busca rápida no Google encontra 881 mil
resultados para “Santiago Ilídio Andrade” (que tem sido chamado apenas
de Santiago Andrade, o que mostra que as referências poderiam ser em
número muito maior). Na busca por “Cleonice Vieira de Moraes”, apenas 38
mil resultados. Cleonice era gari, tinha 54 anos, e morreu por após ter
inalado grandes quantidades de gás lacrimogêneo jogado pela Polícia
Militar do Pará. A polícia, aliás, foi a responsável por 75% das
agressões a jornalistas nas manifestações, de acordo com levantamento
da Abraji. Onde estão os rostos dos empresários responsáveis pelas
mortes de operários durante a construção dos estádios da Copa? Onde
estão as famílias desses operários? Na última semana, conforme relato
do jornalista Wladymir Ungaretti, “a Policia Militar do Rio de Janeiro
perseguiu quatro jovens em Jacarepaguá. Confundiu a peça de uma moto que
um deles carregava com uma arma. Dois foram mortos. Nenhum deles tinha
passagem pela polícia”. Mas o único barulho é para a agressão a
Santiago, que teria sido feita por “um black bloc”.
Pairam,
aliás, muitas dúvidas sobre a verdadeira origem da bomba que matou o
cinegrafista. A história toda é muito estranha, com possibilidade real
de que seja tudo uma grande armação, um novo Rio Centro. Há, na carona
do caso, a tentativa de aprovação de uma lei antiterrorismo, um AI-5
moderno que coloca em risco o pouco que temos de liberdade de
manifestação coletiva – seja a partir das novas formas de protesto, seja
através dos movimentos sociais tradicionais.
Essa não é
uma defesa intransigente dos ativistas que utilizam a tática black
bloc. Não me parece uma forma de atuação produtiva para a luta de
classes, especialmente no contexto atual, na correlação de forças que
temos no Brasil. Mas isso não quer dizer que a crítica deva ser feita em
forma de ataque e de maneira enviesada, irresponsável. Essa análise
também não pretendeu, em momento algum, que se diminua o peso da morte
de Santiago. O que vemos como necessário é que não se afaste esse caso
de seu contexto. Não se construa uma hierarquia de mortes que faça com
que a exceção seja transformada em regra, a especulação transformada em
verdade absoluta e a dúvida e a reflexão transformadas em silêncio.
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