domingo, 16 de fevereiro de 2014

A morte de Santiago para além da superficialidade manipuladora





Alexandre Haubrich - Jornalismo B

Estava inclinado a não me manifestar sobre a morte de Santiago Andrade, pai, marido e cinegrafista, trabalhador da TV Bandeirantes. Afinal de contas, era uma em tantas mortes violentas que acontecem a todo instante no Brasil. Também era apenas uma entre as tantas mortes que já aconteceram em meio aos protestos que ganharam força em junho do ano passado. Também era uma entre as mortes ligadas à vinda para o Brasil da Copa do Mundo de futebol. Mas as circunstâncias me levaram a escrever, já que há, por parte de alguns setores reacionários da sociedade – incluindo aí os conglomerados de comunicação – uma dupla reação à morte de Santiago: a espetacularização de seu caso e o esquecimento dos outros.
Os momentos seguintes à morte do cinegrafista podem transformar este em mais um momento de inflexão na dinâmica dos protestos, das reações a eles e das consequências mais rasas e mais profundas de tudo isso. É por esse motivo que resolvi escrever a respeito, pela percepção de que temos agora mais um desses momentos importantes dentro de um processo tão complexo quanto o que temos vivido desde junho.
Santiago
Foto: AFP
Há, em boa parte das análises que pululam por aí, uma série de desonestidades, outra série de equívocos e mais algumas séries de interesses envolvidos. Esses três elementos formam um círculo: os interesses levam às desonestidades, que constroem na cabeça de terceiros os equívocos, as precipitações, em muitos casos exacerbados por uma justa necessidade de defender o inocente morto. Mesmo com esse sentimento aflorado, é necessário ter responsabilidade para que a emoção não faça dormir a razão e se assuma a reflexão necessária aos que lutam por transformações.
Uma das formulações maliciosas que têm aparecido classifica o episódio da morte de Santiago como um atentado contra a “liberdade de imprensa”. Isso é uma farsa. A construção desse discurso pelos conglomerados midiáticos tem uma sentido objetivo: a blindagem contra futuras manifestações, já que cada vez mais a revolta – e os protestos – se voltam contra o aparelho discursivo das elites – a mídia dominante. O grito por “liberdade de imprensa” há tempos é usado como desculpa e como escudo contra tudo o que pode ameaçar os interesses políticos, ideológicos e econômicos dos conglomerados de comunicação, e situações que permitam a construção de mecanismos de blindagem são sempre bem aproveitadas.
É verdade que os jornalistas estão sofrendo na cobertura dos protestos. Sofrendo com a polícia, por um lado, e, por outro, com grupos de manifestantes que enxergam nos repórteres a representação das empresas que os criminalizam e marginalizam e que defendem interesses opostos aos seus. A discussão em torno disso deve ser feita, o debate não sobre essa questão não pode e não deve ser obstaculizado, mas a morte de Santiago não tem relação direta com ele. O que se pode e se deve debater em relação ao tema “jornalismo e protestos”, nesse caso, é sim a precariedade das condições de trabalho dos funcionários dos grandes grupos de mídia. Santiago estava em uma zona de conflito, e absolutamente desprotegido.
A ameaça à “liberdade de imprensa” não é o único mito criado em meio aos protestos. Há muitos outros, e um deles se aplica com perfeição a esse caso. A mídia dominante tem como prática histórica a construção de chavões que identificam rapidamente os leitores-telespectadores-ouvintes com determinadas narrativas e ao mesmo tempo criam imediatamente sensações previstas – e construídas anteriormente através de associações repetidas. É o caso dos “anarquistas mascarados”, do “vandalismo” como forma de descrever quaisquer atitudes que fujam ao tido como ordeiro, e à classificação de quaisquer “desordeiros” como “integrantes de grupos black bloc”. Essa construção tem sido utilizada para separar “manifestantes pacíficos” de “vândalos infiltrados”, ignorado que os “vândalos” também fazem parte das manifestações e também se manifestam – de sua própria forma. Um tipo de manifestação, menos danoso e mais controlável, é bem aceito, em contraposição aos “radicais”. Sempre foi assim. Inclusive durante a ditadura militar havia os “oposicionistas pacíficos e comportados” – o MDB – e os “radicais perigosos” – todos os outros. A formulação não mudou – nem os objetivos, nem os formulantes.
Na verdade não há “grupos black blocs”, mas sim uma tática que pode ser usada por diversos grupos durante um protesto. E também não há, como tática black bloc, esse “vale tudo” que é apresentado. O ataque a pessoas, por exemplo, fica fora dessa tática. É claro que isso não separa a morte de Santiago da atuação dos manifestantes que utilizam a violência como forma de atuação, mas a relação que se estabelece aí é diferente do simplório e falsificado “a violência dos grupos black blocs matou o cinegrafista”. A relação real é: por uma série de circunstâncias muito mais profundas do que a alienação de que são acusados esses manifestantes, eles optam por essa tática ou, em diversos casos, por outras formas de atuação violentas que não exatamente a tática black bloc. Esse tipo de ação alimenta a violência policial – que existe diariamente nas periferias e, em menor medida, também fora delas – que, por sua vez, alimenta protestos mais violentos. Em meio a esse descontrole, em meio a essa balbúrdia de ações e reações – criadas, no fundo, por um sistema social, político e econômico injusto e perverso – pode sobrar para todo mundo, mesmo para quem não é alvo de um lado nem de outro. Sobrou para Santiago.
O último e mais importante equívoco, que às vezes pende mais à desonestidade, é a tentativa de transformar a morte de Santiago na temática central dos debates sobre os protestos. Essa é a questão de fundo, essa é a distorção que ao mesmo tempo forma e é formada pelas anteriores, e que tem alguns objetivos claros: aprofundar o processo de criminalização das manifestações, dividir os ativistas, enfraquecer e secundarizar as pautas reais, aumentar a pressão para que a repressão seja cada vez mais violenta. Os interesses que levam a essas buscas são os mais diversos, desde a direita partidária, passando pela direita midiática, chegando a setores ligados ao governo federal. A velha direita oligárquica – seja midiática ou partidária – busca como objetivos específicos construir-se como alternativa eleitoral forte e proteger seus interesses patrimoniais, além de enfraquecer movimentos organizados de esquerda, incluindo partidos políticos. Setores petistas – aparentemente minoritários –, por outro lado, buscam na criminalização dos protestos a calmaria que proteja sua reeleição. Parece conflitivo, mas não é. Tanto um quanto o outro querem dominar e controlar os acontecimentos, e, por razões e com objetivos distintos, entram em choque com os manifestantes. Há, de qualquer forma, um denominador comum fundamental: a tentativa de travar a luta por mudanças.
Muitos militantes, influenciados por esse contexto forçado, têm caído no erro da formulação de um discurso comum na chamada “direita de senso comum” – quer dizer, aqueles que apenas reproduzem discursos de direita, sem refletirem muito a respeito, pelo simples fato de a posição conservadora ser automaticamente a primeira a vir à mente, geralmente impulsionada mais pela emoção do que pela razão. Falo especificamente do processo de “fulanização” do debate político, e que nesse caso tem relação direta com a tentativa de tirar as pautas dos protestos do centro das discussões colocando em seu lugar a morte de Santiago Andrade. É a história do “e se fosse com alguém da tua família”, uma formulação que abandona a racionalização pela emoção, abandona os interesses coletivos pelos individuais e abandona a noção de sociedade e civilização pela barbárie. É compreensível que a família do cinegrafista sinta raiva. É compreensível – e importante – que cada um de nós se solidarize com sua raiva e com sua dor, é fundamental acabar com a era da naturalização da violência e da morte fora de lugar, mas não é saudável que nos deixemos todos levar por esses sentimentos de forma a atropelar a razão. Esse caminho leva à barbárie, fazendo suas curvas de forma a desviar da contextualização histórica e social dos fatos sobre os quais nos debruçamos. Algum nível de afastamento – um equilíbrio que não chegue nem à indiferença nem à precipitação ignorante – é condição necessária para qualquer análise da realidade, e, como tal, é condição necessária à intervenção justa e consciente sobre essa realidade.
Uma avaliação equilibrada – veja bem, equilibrada, não imparcial – da realidade, da trajetória histórica e dos fatos mais recentes faz ver que a violência é geral, e, como não cansamos de repetir, um problema social causado por um sistema social, político e econômico injusto, em que uns poucos exploram e oprimem muitos outros. A violência estoura, de uma forma ou de outra, e a resposta das elites é sempre mais violência – midiática ou policial. Os resultados são conhecidos: mais violência, muitas mortes – quase sempre de negros pobres –, mais opressão. Santiago não foi o primeiro cadáver da reação à junho de 2013.
O site do grupo Anonymus publicou uma lista de pessoas mortas e gravemente feridas na onda de protestos. Nenhuma morte ganhou tanto destaque quanto a de Santiago. Uma busca rápida no Google encontra 881 mil resultados para “Santiago Ilídio Andrade” (que tem sido chamado apenas de Santiago Andrade, o que mostra que as referências poderiam ser em número muito maior). Na busca por “Cleonice Vieira de Moraes”, apenas 38 mil resultados. Cleonice era gari, tinha 54 anos, e morreu por após ter inalado grandes quantidades de gás lacrimogêneo jogado pela Polícia Militar do Pará. A polícia, aliás, foi a responsável por 75% das agressões a jornalistas nas manifestações, de acordo com levantamento da Abraji. Onde estão os rostos dos empresários responsáveis pelas mortes de operários durante a construção dos estádios da Copa? Onde estão as famílias desses operários? Na última semana, conforme relato do jornalista Wladymir Ungaretti, “a Policia Militar do Rio de Janeiro perseguiu quatro jovens em Jacarepaguá. Confundiu a peça de uma moto que um deles carregava com uma arma. Dois foram mortos. Nenhum deles tinha passagem pela polícia”. Mas o único barulho é para a agressão a Santiago, que teria sido feita por “um black bloc”.
Pairam, aliás, muitas dúvidas sobre a verdadeira origem da bomba que matou o cinegrafista. A história toda é muito estranha, com possibilidade real de que seja tudo uma grande armação, um novo Rio Centro. Há, na carona do caso, a tentativa de aprovação de uma lei antiterrorismo, um AI-5 moderno que coloca em risco o pouco que temos de liberdade de manifestação coletiva – seja a partir das novas formas de protesto, seja através dos movimentos sociais tradicionais.
Essa não é uma defesa intransigente dos ativistas que utilizam a tática black bloc. Não me parece uma forma de atuação produtiva para a luta de classes, especialmente no contexto atual, na correlação de forças que temos no Brasil. Mas isso não quer dizer que a crítica deva ser feita em forma de ataque e de maneira enviesada, irresponsável. Essa análise também não pretendeu, em momento algum, que se diminua o peso da morte de Santiago. O que vemos como necessário é que não se afaste esse caso de seu contexto. Não se construa uma hierarquia de mortes que faça com que a exceção seja transformada em regra, a especulação transformada em verdade absoluta e a dúvida e a reflexão transformadas em silêncio.


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