Saul Leblon
A tentativa de construir uma democracia social na América Latina – a região mais desigual do planeta-- tornou-se um espinho na garganta do jogral conservador.
Equiparar a igualdade de direitos civis ao seu equivalente no campo econômico significa levar a sério a democracia como o regime intrinsecamente dotado de meios para dilatar seus próprios fins.
No limite, e em tese, significa não pedir autorização ao dinheiro para transformar carências em direitos e dívidas históricas em lei.
A última palavra dependeria da competência progressista para adensar força e consentimento majoritário aos seus projetos e plataformas.
A experiência histórica latino-americana está coalhada de interpretações controversas acerca desse mandato atrelado à formação das grandes maiorias.
A coleção de golpes de Estado espetados nas entranhas de seus distintos países sugere que o princípio que equipara cada cidadão a um voto promete mais do que as elites locais estão dispostas a conceder.
O mercado fala por elas.
De um modo muito grosseiro, e ao largo das particularidades locais –o financiamento privado de campanhas no Brasil, por exemplo, distorce essa equivalência -- pode-se dizer que é em torno dessa dupla contradição que se trava a luta pelo desenvolvimento nos dias que correm.
Mercados e seu aparato ideológico dedicam-se diuturnamente à tarefa de capturar o imaginário social, algemar o Estado e amordaçar instituições para vestir o enforcador no pescoço da democracia, apartando-a dos interesses majoritários da sociedade.
Movimentos progressistas, ao contrário, empenham-se na interminável repactuação de maiorias para submeter a lógica do dinheiro ao imperativo da democracia social, no passo seguinte da luta pelo desenvolvimento.
Toda assepsia que o neoliberalismo se empenha em promover na profundidade e abrangência da ação pública e estatal persegue esse objetivo de emascular as ferramentas da democracia.
Alto-falantes da emissão conservadora martelam diuturnamente a superioridade dos livres mercados para alocar recursos ao menor custo e com maior eficiência.
O oposto é esgrimido como um desastre inelutável.
O papel da democracia, desse ponto de vista, seria manso.
Limitar-se-ia a sancionar o livre arbítrio de uma economia desregulada, para que a sua ‘imanente racionalidade’ pudesse se traduzir em geração de riqueza e ganhos de eficiência.
O que os tucanos ecoaram na efeméride dos 20 anos do Plano Real, nesta 3ª feira, é que a coalizão demotucana preparou a economia do país para isso ao domar a hiperinflação nos anos 90, privatizar instrumentos importantes da ação pública e estreitar a inserção internacional do país (via endividamento interno e externo, sem dúvida).
O ciclo de governos do PT teria desvirtuado esse saudável legado ao restaurar critérios, gastos e ferramentas que devolveram à esfera pública –e às urnas da qual esta depende—o poder de disputar o comando do desenvolvimento com os mercados.
O artigo divulgado pelo ex-presidente Lula nesta mesma 3ª feira (leia a íntegra, abaixo) sugere o oposto.
Ao contrário da pretensão ortodoxa, mostra a análise escorada em farta artilharia estatística, os governos do PT souberam extrair avanços sociais e dinâmicas econômicas promissoras do conflito entre democracia e mercados nos últimos anos. A energia liberada por essa dialética abriu e ampliou avenidas e liberou e adensou potencialidades secularmente reprimidas pelos centuriões das elites locais.
Ou terá sido pouco, do ponto de vista estritamente econômico, o surgimento de um mercado de massa (o famoso ‘Brasil CDE’, em menção aos três segmentos de renda popular), que representa hoje um consumo de R$ 1,3 trilhão?
Sozinho ele representaria a 16ª maior economia do planeta em poder de consumo.
Queiram ou não os ortodoxos, esse estirão social e econômico do ciclo petista vai condicionar o futuro do desenvolvimento brasileiro, sendo muito difícil subtrair-lhe essa prerrogativa, exceto em um horizonte retração das fronteiras da democracia.
Segundo o Instituto de Pesquisa Data Popular, a lista de compras de 2014 dessa 16ª economia adicionada ao tecido econômico nacional comporta as seguintes grandezas: 10 milhões de viagens de avião, sendo que 3,7 milhões internacionais; 11 milhões de móveis; 6,5 milhões de geladeira; 5,7 milhões de máquinas de lavar; 11 milhões de notebooks; 8,7 milhões de televisores; 5,6 milhões de tablets; 4,6 milhões desmartphones; 3,8 milhões de carros e cerca de 2 milhões de motos.
Mesmo sob a ótica estritamente capitalista fica difícil menosprezar a gigantesca fila em formação no caixa brasileiro.
A isso as manifestações tucanas pelo 20º aniversário do Plano Real reservaram o adjetivo de ‘desarrumação’.
Da alça de mira credenciada de Edmar Bacha, o economista que fala em nome de Aécio Neves, partiu o seguinte Molotov à black bloc: ‘Se eleito, Aécio terá que promover o “desfazimento” de tudo que foi realizado nos últimos anos’.
Devolver o manche a quem, a exemplo de Aécio e do PSDB, tem competência para curetar os ‘desequilíbrios’ incorporados ao desenvolvimento latino-americano nos últimos 20 anos, contaria com um aliado de peso, segundo a avaliação conservadora: a mudança de ciclo na economia mundial.
No raciocínio de Bacha e assemelhados, ela estreitaria drasticamente a margem de manobra de uma gestão progressista do conflito estrutural entre a democracia e mercados na condução do desenvolvimento.
Esse jogo está sendo jogado.
Se o placar final vai dizer que, de fato, esgotou a viabilidade de uma construção negociada da democracia social na América Latina nos marcos da economia de mercado é impossível prever.
A bola está rolando.
A delegação reiterada pelos eleitores a Lula e Dilma, para promover ‘mudanças’ que 67% desejam para o Brasil, de acordo com o Datafolha, sugere que o tempo de jogo é bem maior do que pretende a torcida conservadora de boca grudada no alambrado.
Em contrapartida, pelo que se assiste na Venezuela, o time progressista que se prepare: a essa altura do campeonato não se pode nutrir a esperança de que a prorrogação será regida pelas normas do fair-play que asseguram a lisura do jogo.
O poder ofensivo e defensivo terá que ser repensado.
O tempo passa...
Nenhum comentário:
Postar um comentário