por Wagner Iglecias, especial para o Viomundo
A situação política na Venezuela, como se sabe, é bastante
complicada. Seguem alguns dados, personagens e variáveis a serem
considerados nas especulações sobre o que pode vir a ocorrer no curto
prazo naquele país.
Histórico de instabilidade: o chavismo, apesar dos
15 anos no poder, duração que dá uma impressão de grande estabilidade
institucional, na verdade enfrentou problemas de ordem política inúmeras
vezes. Exemplos foram o Golpe de Estado sofrido em 2002, a greve do
setor petroleiro de 2002/2003, as agitações políticas do referendo
revogatório de 2004, os protestos estudantis de 2007 e, mais
recentemente, o forte questionamento que a oposição fez do resultado da
eleição presidencial de abril de 2013, quando Nicolás Maduro venceu o
direitista Henrique Capriles por apenas 1,5% de diferença no total de
votos.
Polarização crescente: importante lembrar que meses
antes, em dezembro de 2012, o mesmo Capriles havia vencido, também por
margem bastante estreita (4%), o chavista Elias Jaua na eleição para o
governo de Miranda, um dos mais importantes estados do país. E que um
pouco antes o próprio Hugo Chávez já havia derrotado Capriles, na
eleição presidencial anterior, por pouco mais de 7% dos votos. Margens
estreitas, como há um bom tempo não se via nas urnas, mostrando que a
sociedade venezuelana tem se polarizado cada vez mais em duas grandes
metades.
Deterioração da economia: apesar da grita
oposicionista de abril passado, o país vinha passando por uma situação
política relativamente estável nos últimos meses. Após a recente vitória
eleitoral do governo nas eleições municipais, Maduro chegou a reunir-se
com prefeitos e governadores oposicionistas, quase selando um pacto de
boa convivência.
Mas o que tem se deteriorado rapidamente é a situação econômica. O
descontrole cambial, a escalada inflacionária e a escassez de produtos
tem afetado principalmente as classes assalariadas e, desse modo, as
próprias bases de sustentação do governo chavista, de cunho popular. Em
meio à ofensiva das classes médias oposicionistas, fartas do chavismo há
uns bons anos, as classes populares parecem se sentir desmobilizadas
para defender o governo em uma conjuntura adversa, ainda que o chavismo
esteja preparado para resistir a tentativas clássicas de golpe.
Poucas cartas na manga: e é exatamente a situação
econômica ruim que hoje mais dificulta o chavismo em fazer o que
tradicionalmente fez nos momentos de crise política nestes 15 anos:
pisar no acelerador e aprofundar ainda mais as políticas públicas
destinadas às massas. Para ganhar legitimidade, o chavismo fazia uso da
renda petroleira que ingressava no país e impulsionava fortes políticas
redistributivas, reduzindo a pobreza, o analfabetismo, a fome e a
desigualdade social. O povão percebia, nas situações anteriores, que a
direita ameaçava um governo que, ao fim e ao cabo, lhe era parceiro.
Desta vez, porém, essa margem de manobra está bem mais estreita, dada as
dificuldades econômicas que o país e o governo enfrentam. E é por serem
sabedores disso que os oposicionistas radicalizam seu discurso e suas
ações. Daí porque um radical como Leopoldo López, que esteve com
Capriles no golpe de 2002 e que hoje está à sua direita, carregou
multidões às ruas nos últimos dias e ganhou protagonismo na cena
política do país.
A oposição partidária e a oposição nas ruas: a direita partidária é múltipla, como atestam os quase trinta partidos que compõem a Mesa de la Unidad Democrática,
a coligação anti-chavista. E ela está dividida em relação ao que fazer
neste momento de crise. A metade anti-chavista da sociedade, porém,
parece cada vez menos dividida, e talvez cada vez mais
propensa à radicalização, ainda que isso possa implicar em saídas
estranhas aos mecanismos estabelecidos na Constituição. Como o referendo
revogatório, por exemplo, que é uma espécie de recall previsto pela Carta Magna para a metade dos mandatos eletivos.
No caso de Maduro, previsto para ser realizado três anos após sua
eleição, ou seja, em 2016. Ao que parece, porém, muitos anti-chavistas
não querem esperar até lá, e menos ainda que o chavismo sem Chávez tenha
tempo de se recuperar da perda de seu líder ocorrida ano passado. Nesse
contexto, o chamado radical de Leopoldo Lopez (“A Saída”, ou seja, a
interrupção imediata do governo Maduro) encontrou na massa muitos
ouvidos receptivos. E deu-se assim a troca de liderança: entrou em baixa
Capriles, mais moderado, e estão em alta Lopez e seus parceiros Maria
Corina Machado, deputada federal de extrema-direita, e Antonio Ledezma,
prefeito de parte da região metropolitana de Caracas, tão radicais
quanto ele.
E fica a pergunta: o que será da Venezuela e de suas instituições
caso a via defendida por eles prospere? Por outro lado, as divergências
internas da oposição partidária não devem ser desprezadas, e
eventualmente um maior diálogo entre o governo e os grupos
oposicionistas que se opõem a Leopoldo poderiam reconduzir o país a uma
situação menos turbulenta que a atual.
As Forças Armadas: diferentemente de 2002, quando a
direita marchou pelas ruas de Caracas, arrancou Chávez do Palácio
Miraflores e o trancafiou numa ilha, contando para isso com apoio de
parte das Forças Armadas, o cenário atual provavelmente não permitiria
que isso se repetisse. Pelo fato de que o chavismo hoje tem forte
penetração nas forças militares e tem controle do aparato do Estado. A
capacidade de reação numa situação dessas seria, assim, muito maior. A
tática da extrema-direita parece ser, então, criar um ambiente de
contestação permanente nas ruas, de modo a atrapalhar ou mesmo
impossibilitar a governança, e não o assalto ao Palácio presidencial de
Miraflores, como ocorrido em 2002. A lealdade das Forças Armadas, parte
ideológica e parte pragmática, dependerá da capacidade de manutenção da
ordem por parte de Maduro.
Mas e se o caos se estabelecer? Talvez a parte pragmática das Forças
Armadas poderia tender a apostar numa saída alternativa, uma transição
negociada, de modo a evitar a falência do governo. Contudo ressalte-se
que a capacidade de manutenção da ordem por parte do governo parece
longe de estar esgotada, e a capacidade, por parte da oposição, de
manter um permanente estado de mobilização das ruas em algum momento
poderá atingir o seu limite. E isso para não dizer, além de tudo, que a
capacidade de resistência dos coletivos chavistas situados fora do
governo não é desprezível.
Vale ressaltar, por outro lado, que no caso de Caracas as marchas
oposicionistas têm ocorrido nos últimos dias em regiões mais populares,
mais próximas do centro e em direção ao oeste, onde localizam-se
exatamente o Palácio Miraflores e também a enorme favela 23 de Enero,
majoritariamente chavista. Talvez por isto dessa vez, ao contrário da
política normalmente condescendente com os protestos opositores
realizados em anos anteriores em zonas ricas ou de classe media, as
forças policiais estão tratando de reprimir e desmobilizar as
manifestações em várias regiões da capital e em diversas cidades do
país.
Comunidade internacional: no chavismo se diz que
lideranças políticas estrangeiras e mesmo outros países teriam interesse
na desestabilização da situação política da Venezuela. Papel relevante
na estabilização política venezuelana, no entanto, podem jogar a União
de Nações Sul-Americanas (UNASUL) e a Comunidade de Estados
Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), para as quais a instabilidade
num país-chave como a Venezuela pode constituir-se em fator de
turbulências em toda a região. Destaque-se nisto o Brasil, que tem na
Venezuela um importante parceiro no Mercosul e um de seus mais
importantes parceiros comerciais nas Américas, bem como um dos
principais destinatários de seus investimentos públicos e privados no
exterior.
Por ora, parece ser isso. Parece. A situação venezuelana hoje é como
um cipoal em meio à neblina. De situações incertas de uns tempos pra cá
se costuma dizer que pode acontecer de tudo, inclusive nada. No caso da
Venezuela, no entanto, essa frase talvez não seja uma alternativa no
horizonte.
Wagner Iglecias é doutor em Sociologia e Professor do Curso
de Graduação em Gestão de Políticas Públicas e do Programa de
Pós-Graduação em Integração da América Latina da USP.
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