Emir Sader no Carta Maior
O capital especulativo se volta concentradamente sobre as
economias do Sul do mundo, como resultado das politicas norte-americanas
de manobra protecionista a favor da sua moeda. A América Latina é um
alvo prioritário dessas operações e a Venezuela e a Argentina, em
particular.
O governo destes dois países, sob forte impacto de
ações especulativas, cederam e desvalorizaram de maneira significativa
suas moedas. Mas, como sempre, o mercado quer mais sangue, e segue as
pressões, buscando maiores concessões, inclusive a continuidade das
desvalorizações.
A Argentina sofre, ao mesmo tempo, ainda, as
consequências da renegociação das suas dívidas externas, em que os que
não aceitaram os seus termos (apenas 8%, mas que apelam para as
instituições internacionais a seu favor), mais os que foram objeto de
ações posteriores do governo – como a espanhola Repsol, que perdeu a YPF
-, pressionam fortemente pela manutenção do isolamento de créditos
internacionais para o país.
Como resultado desses fatores, se
acelera a inflação – como consequência direta da desvalorização da moeda
– e o desabastecimento, conforme o governo tenta mecanismos de controle
dos preços. Todo o jogo se faz não apenas em função de aumentar os
lucros do capital financeiro, mas também no jogo da sucessão política do
próximo ano, buscando sufocar o governo e tirar-lhe bases de apoio. As
campanhas salariais que se iniciam agora vão ser outro braço de ferro
entre o governo e centrais sindicais opositoras, em condições de aumento
da inflação real, que vai de 25% para os cerca de 30% atuais.
Carta
Abierta é um movimento, inédito na Argentina, que congrega a
intelectuais marxistas e da esquerda peronista, publica periodicamente
análises, como essa, que agora revela o grau de alerta na esquerda
argentina. Leia abaixo, na íntegra, o documento dos intelectuais
argentinos advertindo para o risco de uma restauração oligárquica no
país:
A pátria em perigo
Não é sempre
que surge a ideia de forte tradição ao longo do tempo, memorável nas
grandes jornadas libertárias do século XIX na América Latina e na
Europa, que faz parte de um chamado urgente e de uma inevitável vocação
de ativismo. Um punhado de grandes empresas (Cargill, Noble Argentina,
Bunge Argentina, Dreyfus, Molinos Río de la Plata, Vicentin, Aceitera
General Deheza, Nidera e Toepfer) exporta mais de 90% dos grãos, óleo e
farinha de soja argentinos. Base histórica da riqueza e da produção do
país, organizaram um cerco financeiro sobre o governo, forçando a adoção
de medidas difíceis e comprometedoras para o futuro do país, como a
desvalorização – apesar de, no momento do xeque-mate, o próprio governo
ter deixado passar essa asfixiante pressão do mercado exportador para
poder retomar o controle depois de uma desvalorização não desejada.
É
grave. Não é mais um simples episódio da história econômica nacional.
Todas as grandes organizações agropecuárias têm fortes vínculos
internacionais, financeiros, comunicacionais e sempre estão preparadas
para produzir a ilusão de que seus interesses coincidem com os de uma
grande parte das desconcertadas classes médias argentinas. O certo é que
conseguiram forçar e impor uma desvalorização do peso, indesejada pelo
governo e inconveniente para a maioria da população, e têm como
estratégia aprofundá-la em níveis substancialmente maiores. É preciso
reconhecer isso e, em um momento particularmente dramático, repor nossas
forças e nossa dignidade para a luta. Isso exigirá grandes esforços
para que a desvalorização não recaia sobre os amplos estratos das
classes populares, historicamente as mais prejudicadas com este tipo de
medida.
A defesa dos “preços cuidados ” é, neste sentido, uma
tarefa primordial. É frequente ver o exagero ou grandiloquência quando
se denuncia que esta situação provoca desestabilização política, mas é
certo que, ainda que isto não esteja na tática imediata dos grandes
grupos amparados nas novas tecnologias da globalização, em uma sociedade
castigada e temerosa, o resultado de suas ações pode ser imprevisível.
Esses setores proveem dos primeiros momentos da organização nacional
argentina, quando se formava uma oligarquia dócil com relação à divisão
internacional do trabalho, ainda que, em seu seio, não deixasse de
existir a iniciativa protecionistas e uma aposta em certos modos de
intervencionismo estatal no mercado de grãos e carnes, justamente na
época do conservadorismo anterior à irrupção do peronismo e no contexto
da grande crise.
Velhos e novos grupos, sempre poucos, mas agora
com mais espessura e concentração de sua economia e que têm relação com
as políticas vinculadas às potências mundiais desta etapa histórica da
contemporaneidade, assediam o governo popular liderado pela presidenta
Cristina Kirchner, que adotou medidas significativas para democratizar a
sociedade avançando em direção à inclusão, à ampliação de direitos e à
redistribuição de renda nacional a favor das maiorias nacionais, tanto
das classes médias como dos setores mais carentes.
Esse assédio é
possível porque ainda não foram fechadas as amplas margens de manobra
que esses grupos monopólicos têm. Agora, com novas tecnologias de
plantio e o amparo de grandes fábricas de sementes transgênicas – cujo
uso e regulamentação devem fazer parte de um amplo debate –
reorganizaram socialmente o campo da produção agropecuária, com
características tão novas que os velhos produtores e arrendatários
(antigamente de cunho genuinamente produtivo) decidiram se associar aos
horizontes construídos com a expansão da fronteira produtiva da soja,
alterando o perfil das relações econômicas e de classes sociais.
O
modo de propriedade que, para muitos, significou, há um século,
protestar contra os latifúndios, atualmente se expressa em uma
privatização agressiva da renda agrária baseada na hipótese magna da
cega rejeição às necessárias intervenções estatais, como poder público
democrático representante da nação e seu equilíbrio de interesses a
favor da população mais desfavorecida e castigada historicamente por
ajustes e teorias sobre as restrições salariais como variáveis
compensatórias que tributam o império do capitalismo globalizado. Esses
atores, concentrados fundamentalmente nos pampas úmidos da Argentina, se
apropriaram de maneira excludente da denominação “campo”, enquanto a
maioria dos trabalhadores rurais do país, situados em outras regiões,
resistem porque são ameaçados e prejudicados pelo modelo agrário
instalado.
É necessário recriar a imaginação histórica de uma
série de acontecimentos que precisam novamente de grande apoio popular.
Quem se sentiu alguma vez convocado por um conjunto de decisões
governamentais, cujos graus de imperfeição ou de erro estão – e devem
estar em discussão – mas que tiveram clara vocação de autonomia e
soberania nacional e social, e também de justiça emancipatória em todos
os âmbitos da vida econômica, pública e cotidiana, devem novamente fazer
uma análise de sua vocação política. É esperançoso o resultado dessa
análise, feita por homens e mulheres que apoiam o governo, ou que já o
apoiaram mas que se sentem frustrados, ou que se guiam por caminhos
políticos que podem ser secundários.
Se as questões em jogo são
maiores (por isso, socialistas, autonomistas, liberais, nacionalistas,
radicais, peronistas, esquerdistas, republicanos são destinatários desta
interpelação), devem fazer essa análise aqueles que pensam ser as
grandes disjuntivas sociais, mas sem a nebulosa cortina de cinzas que os
magnos catecismos da picareta do demolidor ou a pá do enterrador
trazem. Uma grande restauração do velho país oligárquico está pronta
para mostrar seus dentes de ferro, que seriam suas ferramentas de
ajuste, que pretende, em uma transição ensinadora sirva como prólogo,
por um governo que soube ter consequência em políticas opostas a essa
lógica antipopular. Vêm com seu populismo de turno, seus escritores de
estação, seus jornalistas de colheita unânime, ainda que talvez sem suas
Juntas Reguladoras do comércio exterior, da forma como seus
antepassados souberam constituir.
O que se pede é um novo estilo
mobilizador, uma confluência de forças grupais e individuais, novas
ideias para a defesa do valor que esta experiência significa, que não é
falsa, apesar de estar cercada por grandes descuidos. Este processo
transformador, conduzido por Néstor e Cristina Kirchner, tem sido uma
recreação das militâncias e do fervor público nacional, ancoradas em uma
longa memória popular que não tem donos, com ritualismos que talvez
tenham deixado de acompanhar os processos populares, mas não por serem
repetitivos. Este projeto, amplo, democrático e plural, possui uma
juventude necessária que nenhum momento histórico deve rejeitar, mas sim
realocar dentro de suas vastas alianças sociais, atualmente
debilitadas.
Agora devemos nos sentir prontos para uma nova
mobilização, preparada com responsabilidade e passos precisos que
ramifiquem essa convocação. Os temas cruciais que estão nas bocas e nos
corações podem se transformar em novos cânticos, deverão se tornar
motivo de interesse massivo por medidas e mudanças institucionais
transcendentes e necessárias há tempos, para avançar em mecanismos que
estabeleçam a administração estatal do comércio exterior.
Nosso
país viu ciclicamente seus projetos de desenvolvimento nacional autônomo
ameaçados, boicoteados e truncados pela restrição externa, quer dizer,
pela insuficiência de divisas. As divisas são o recurso chave para a
continuidade e aprofundamento de dinâmicas progressivas. Portanto, é
indispensável subtrair a disposição sobre as mesmas da chantagem do
monopólio e garantir controle governamental. Será necessário avançar na
criação das instituições que tornem isso possível, o que trará uma
disputa de interesses que não poupará conflitos, razão por que se impõe a
geração de um movimento de opinião e a mobilização social (como
aconteceu com a Lei de Meios Audiovisuais) que acompanhe a conquista
desse objetivo autenticamente democrático.
A soberania na
disposição das divisas vai precisar de avanços em outras áreas para
reforçar ou estabelecer o controle estatal e social (por exemplo, nos
portos privados), maiores regulações ao capital especulativo e ao
sistema financeiro, especialmente aos bancos estrangeiros, entre outros.
Estes objetivos não podem ser outra coisa que não as bandeiras de um
patriotismo constitucional e social, que perceba as armadilhas e
dificuldades, e não se atemorize quando precisar sair diante da esfera
pública para destacá-las e conjurá-las.
Neste momento de agudo
perigo para as esperanças e para o futuro de milhões de compatriotas,
sentimos a necessidade deste chamado que recorre aos ecos de muitas das
lutas encarnadas por várias tradições políticas do países. Escutemos
todos, escutemos a tempo.
ESPAÇO CARTA ABERTA
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