Por Rafael Azzi, na revista “Carta Capital”
“Há
trinta anos, a mídia martela suposta superioridade da iniciativa
privada. Vale examinar bases dessa crença (e interesses por trás dela)…
A
ideologia liberal defende a ideia de que a iniciativa privada é capaz
de produzir bens e serviços de forma eficiente e barata; enquanto o
Estado, considerado ineficiente e corrupto, seria simplesmente um
obstáculo ao bom funcionamento do mercado. Trata-se de uma ideologia
maniqueísta, pregando sempre a dicotomia Estado ruim versus mercado bom.
Em muitos casos, tal percepção discriminatória se mostra de acordo com a
realidade e, quando posta em prática por um determinado governo,
torna-se uma profecia autorrealizável.
Segundo a mesma lógica, os
funcionários públicos são considerados ineficientes e preguiçosos.
Trata-se de um preconceito comum e persistente, mesmo diante do fato de
que existem funcionários exemplares nos mais variados setores públicos, e
de que, em instituições privadas, há empregados que, adaptados à
cultura empresarial, conseguem ser premiados mesmo se esquivando do
trabalho ou usando de formas pouco éticas.
A base da
argumentação, para quem defende esse ponto de vista maniqueísta, se
refere à questão da estabilidade. Por lei, funcionários públicos têm
direito a estabilidade no emprego após passar por um período de
avaliação probatória durante três anos. Tal fato justificaria o senso
comum de que eles trabalham menos do que aqueles que se empregam em
empresas privadas. Essa explicação se baseia na premissa de que a
principal motivação para a eficiência no trabalho é o medo da demissão.
Na verdade, estudos modernos demonstram que essa ideia não está correta.
Há diferentes motivações para o trabalho. Os principais estímulos
motivacionais, tais como a percepção de realizar uma tarefa
significativa, o reconhecimento dos outros e a possibilidade de
progresso podem existir ou faltar tanto na iniciativa privada quanto no
funcionalismo público.
O argumento do mercado mais eficiente
também não se sustenta em diversos casos. Na realidade, em alguns
setores a lógica mercadológica parece atuar de forma contrária à
eficiência. No que se refere à saúde, por exemplo, é possível comparar
dois sistemas situados em pólos opostos: EUA e Cuba. Os índices
de expectativa de vida e de mortalidade infantil da ilha caribenha são
praticamente os mesmos dos EUA. Entretanto, os gastos anuais dos EUA em
saúde, por pessoa, são de U$ 5.711, enquanto Cuba gasta apenas U$ 251.
Dessa forma, o Estado cubano tem um custo pelo menos vinte vezes menor
para obter um resultado equivalente ao da iniciativa privada americana.
Isso
ocorre porque o Estado pode investir diretamente nas causas dos
problemas e, assim, conduzir o atendimento médico a quem mais precisa.
Em 2001, uma comissão do Parlamento Britânico visitou a ilha e relatou
que o êxito da sua política de saúde é devido à forte ênfase na
prevenção das doenças e ao compromisso com a prática de medicina voltada
para a comunidade. Tal procedimento gera melhores resultados com menos
recursos. O mercado sempre segue cegamente a lógica da maximização do
lucro, que nem sempre se mostra a mais eficaz para lidar com problemas
sociais; ou, nos termos de Bill Gates: “capitalismo significa que há muito mais pesquisa sobre a calvície masculina do que sobre doenças como a malária.”
No
caso da ideologia liberal no governo, diversas vezes o que ocorre é uma
profecia autorrealizável. Parte-se do princípio de que o Estado é
ineficiente e corrupto, isso leva o Estado a investir pouco, pagar mal
funcionários e sucatear os serviços públicos. O pouco reconhecimento e
as más condições de trabalho geram insatisfação e greves. As
paralisações tornam-se mais um argumento para afirmar que o serviço
público é inerentemente ruim.
É o caso, por exemplo, do sistema
carcerário brasileiro. Os governos recentes pouco investiram na área e
não se interessaram pela renovação do sistema prisional medieval do
país. Assim, ao invés de o Estado efetivamente tomar as rédeas da
situação, surge uma solução de efeito rápido que agrada a todos: a
iniciativa privada aparece para poder, finalmente, resolver a questão,
sendo contratada pelo Estado para construir e administrar presídios.
Muitos ganham com isso, menos a sociedade: os políticos que
terceirizaram o problema, e os empresários que receberão dinheiro
diretamente do governo.
Outro caso a ser citado é o que se refere
ao tratamento de viciados em drogas. Enquanto muitos “Centros de
Atenção Psicossocial” públicos (CAPS) são negligenciados, o governo
propõe como solução a internação em comunidades terapêuticas privadas.
Observa-se que, nesses casos, não existe nem uma “lógica de mercado”
propriamente dita operando na forma de competição e livre mercado.
Presos e viciados não podem escolher o melhor serviço e são levados às
prisões e às comunidades terapêuticas de forma compulsória. A competição
por custos também inexiste, pois o serviço é subsidiado pelo governo.
Assim,
pode-se observar que o mercado pode também trabalhar de forma contrária
ao interesse coletivo. As instituições privadas de carceragem e de
tratamento de drogados têm interesse em obter o maior número possível de
internações, sem que isso signifique a melhoria dos serviços
oferecidos. Dessa forma, a dinâmica de interesses gera pressão do setor
para que o governo endureça as leis de restrição de liberdade e
incentive à internação compulsória por uso de drogas. Além disso, a
reincidência de presos e de drogados também é benéfica para o mercado e
prejudicial para a sociedade. Estudos afirmam que, no caso de
internação, a reincidência de drogados é superior a 90% dos casos.
O
argumento de que a terceirização pode desonerar o Estado também pode se
mostrar falso. Em uma instituição pública, seja uma prisão ou um CAPS, o
Estado é responsável direto pelo salário dos funcionários e pela
manutenção dos serviços. No caso das comunidades terapêuticas e das
unidades de detenção privadas, o governo paga um subsídio pelo número de
presos e de pacientes. Nesse subsídio deve constar, para além dos
custos fixos de salários e manutenção, certa margem de lucro para que a
iniciativa privada se interesse em oferecer tais serviços.
É
preciso analisar pontualmente as situações em que o Estado tem mais
gastos ao oferecer diretamente serviços públicos. Na maior parte das
situações, os maiores custos advêm de ações de transparência pública.
Servidores devem ter a qualificação necessária e precisam ser
contratados através de concursos públicos, e os gastos públicos são
justificados e controlados através de processos de licitação e prestação
de contas. Essa transparência tem como objetivo evitar atos indevidos e
arbitrários, sendo condição necessária para o controle de práticas
desonestas e antiéticas. Nas instituições privadas prestadoras de
serviços, os profissionais são escolhidos pela empresa e o uso do
dinheiro do governo não é controlado da mesma forma rígida utilizada na
esfera pública para monitoramento de gastos.
Soluções possíveis
para tal problemática seriam o controle e a fiscalização rígida,
exercidos pelo Estado, nas empresas contratadas para executar serviços
da esfera pública. No entanto, chega-se a uma contradição. Para que haja
uma boa fiscalização por parte do Estado, o governo deverá ter mais
infraestrutura, pagar mais funcionários, ter mais custos com manutenção,
dentre outros investimentos. Além disso, se a convicção liberal é a de
um Estado intrinsecamente ineficiente e corrupto, de que adiantaria
monitorá-lo? Essa é uma contradição do discurso liberal. Na verdade, em
muitos casos, ao invés de o Estado se tornar mais eficiente ele se
transforma no melhor parceiro que a iniciativa privada poderia ter.
A
noção de Estado como local privilegiado de corrupção é sustentada
igualmente por preconceitos ideológicos. Na verdade, pode-se afirmar que
o Estado pode ser eficiente e o mercado corrupto, não havendo qualquer
relação obrigatória entre esses termos. A corrupção do Estado é um
problema real que deve ser combatido através de ações de transparência
pública e da prestação de contas à sociedade. De acordo com um relatório
produzido pela FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo),
o Brasil perde de R$ 50,8 bilhões a R$ 84,5 bilhões por ano com
corrupção governamental. Entretanto, a corrupção não é exclusividade do
Estado. No que se refere a processos de sonegação fiscal, classificado
como corrupção "privada" [mas que é apropriação de recursos legalmente públicos], uma pesquisa da organização britânica “Tax Justice Network” aponta perdas muito maiores para o Brasil: 280,1 bilhões de dólares por ano.
Assim,
o mito do governo ineficiente e corrupto é um discurso amplamente
disseminado porque auxilia muitos grupos, inclusive aqueles que lucram à
custa do próprio Estado. É preciso determinar políticas públicas de
acordo com o que seja melhor para a sociedade como um todo, sem a
interferência indevida de ideologias e de preconceitos criados e
corroborados pelo senso comum.”
FONTE: escrito por Rafael Azzi, na revista “Carta Capital”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário