por Conceição Lemes no Blog Viomundo
Nos últimos dias, as atrocidades no Complexo Penitenciário de
Pedrinhas, Maranhão, ganharam o noticiário. Em 17 de dezembro de 2013, quatro presos foram assassinados, sendo três decapitados. Ao todo, desde o início de 2013, 62 detentos foram mortos no estado .
Essas tragédias, porém, não são exclusividade de Pedrinhas nem do Maranhão. Elas se repetem em presídios de todo o Brasil.
Levantamento do Conselho Nacional do Ministério Público
(CNMP) registrou, de fevereiro de 2012 a março de 2013, 121 rebeliões e
769 mortes em 1.598 estabelecimentos do País, além de 2.772 lesões
corporais. Uma média de 2,1 mortes por dia dentro dos presídios.
“Os fatos ocorridos no Complexo Penitenciário de Pedrinhas não nos
surpreendem, pois não se trata de algo novo e a situação só vem se
agravando lá”, afirma a desembargadora Kenarik Boujikian, presidenta da
Associação Juízes para a Democracia (AJD).
“Surpreendente é a reação da governadora Roseana Sarney. Onde ela
esteve nos últimos anos? Em Marte? Isso só mostra o descaso do Estado em
relação à questão prisional.”
Nessa quinta-feira 9, a governadora do Maranhão, Roseana Sarney
(PMDB), disse que se surpreendeu com a crise no sistema prisional no
estado que administra. Foi por aí que comecei a entrevista com a
desembargadora Kenarik Boujikian, presidenta da Associação Juízes para a
Democracia (AJD).
Viomundo – A governadora Roseana Sarney (PMDB) disse nessa
quinta-feira 9 que se surpreendeu com a crise no sistema prisional do
Maranhão. A senhora se surpreendeu?
Kenarik Boujikian — Claro que não! Os fatos
ocorridos no Complexo Penitenciário de Pedrinhas não nos surpreendem,
pois não se trata de fato novo e a situação só vem se agravando lá. É a
mesma penitenciária que, em 2002, teve uma rebelião que deixou 27
detentos mortos.
Surpreendente, para dizer o mínimo, é a reação da governadora do
Maranhão. Onde Roseana Sarney esteve nos últimos anos? Em Marte? Isso só
mostra o descaso do Estado em relação à questão prisional. Estou pasma
até agora com a declaração dela. É inconcebível!
Veja bem. Em 2006, a Vigilância Sanitária do Estado do Maranhão
emitiu relatório condenando as condições de salubridade desse presídio. O
juiz Fernando Mendonça interditou-o parcialmente. Decidiu pela
proibição de ingresso de qualquer preso a qualquer título nas unidades
prisionais daquele complexo prisional até que a equação de uma vaga por
preso fosse alcançada. Os dados recentes, porém, mostram que essa
decisão não foi aplicada e os problemas apontados pelo juiz maranhense
somente se intensificaram.
Além disso, esta espécie de fatos não ocorre só no complexo de Pedrinhas.
Em novembro de 2010, tivemos a morte de 18 presos em Pinheiros,
também no Maranhão. O que foi feito para se garantir ao menos a vida das
pessoas que lá estão entulhadas? Nada!
Há um pacto social que permite ao Estado usar a força e prender as
pessoas. Mas esse mesmo pacto prevê que este mesmo Estado tem obrigações
com os detidos e com a população. Só que há um total descumprimento do
pacto pelo Estado. Esquece-se que um dia todas as pessoas presas sairão
detrás dos muros.
Viomundo — Hoje o foco da mídia está principalmente em
Pedrinhas, mas penitenciárias em São Paulo, Rio de Janeiro, Piauí,
Espírito Santo já foram palco de ações violentas e mortes de detentos. O
problema é nacional?
Kenarik Boujikian — Os fatos se repetem de norte a sul do Brasil. Lembremos alguns mais conhecidos.
Por exemplo, a rebelião no Presídio Urso Branco, em Porto Velho (RO),
em 2002, com 27 mortos. O Massacre do Carandiru, em São Paulo, em 1992,
quando 111 detentos foram assassinados pela tropa de choque da Polícia
Militar. O caso da Penitenciária Central de Porto Alegre, construída
para receber 1.984 pessoas, mas que atualmente abriga 4.591.
São situações em que o Brasil foi levado a julgamento na Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
Mas tão grave quanto esses casos que chegaram ao conhecimento do
público em geral é o cotidiano das prisões, a invisibilidade do sistema.
O descaso é generalizado e infinito o número de violações aos direitos
humanos cometidos dentro do sistema prisional.
Viomundo — A violência nos presídios está ligados a que fatores? Qual o peso das facções criminosas?
Kenarik Boujikian — A violência no sistema
carcerário tem sua origem mais densa na própria ação/omissão do Estado.
Os mutirões carcerários indicam uma série de violações que ocorrem em
presídios. Particularmente, o que se constata é que o poder estatal não
assegura aos presos condições de respeito à dignidade humana.
O cumprimento da pena em celas superlotadas, fétidas, escuras,
úmidas, sem colchões, sem espaço, água imprópria ao consumo humano
pode ser classificada como cruel e degradante. Esse quadro é agravado
pela negação dos direitos do preso, como direito ao trabalho, ao estudo,
ao recebimento de visitas, de alimentação, de votar, etc…
Por certo que, diante da ausência do Estado, as facções se fortalecem
e ocupam o lugar, do jeito que bem entendem. E isso também ocorre
Brasil afora.
Viomundo – Há décadas eu ouço falar da superpopulação dos presídios. Basta construir mais presídios?
Kenarik Boujikian — Já está provado que apenas
construir prisões não solucionará a questão da superlotação carcerária. É
só ver os números brasileiros. O que nós temos é o gradativo aumento
do número de presídios e de encarceramento, em níveis alarmantes para
homens e ainda maiores para as mulheres.
Viomundo – Mas a mídia reforça a ideia de que prisão é solução para todo tipo de criminalidade e que as penas devem ser maiores.
Kenarik Boujikian – Os estudos e os dados mostram que isso é mentira.
Viomundo – Quantas vagas têm os complexos penitenciários do Brasil?
Kenarik Boujikian — Segundo dados de dezembro do
Sistema de Informações Penitenciárias (Infopen) do Ministério da
Justiça, 548 mil pessoas compõem a população carcerária no Brasil, mas
os complexos penitenciários dispõem de apenas 310,6 mil vagas.
Viomundo — Não está na hora de se discutir para valer penas
alternativas para crimes de menor gravidade? Elas poderiam ser parte de
uma solução de longo prazo?
Kenarik Boujikian — Essa é uma solução possível, mas
não só as penas alternativas, como também a quantidade das penas,
melhoria do sistema, fortalecimento das Defensorias Públicas, etc…
Em geral, as pessoas não têm a menor noção do significado que é ficar um dia na prisão.
Viomundo — Está cada vez mais presente no Brasil o discurso,
amplificado pela mídia, em favor do endurecimento penal, prisão
perpétua, Rota na rua, redução da maioridade penal… O endurecimento
penal por si só reduziria a criminalidade?
Kenarik Boujikian — O endurecimento penal, em todas
as suas formas, como a criação de novos crimes, penas maiores, regime de
pena mais grave, não reduz a criminalidade.
O exemplo bem vivo entre nós é o da chamada lei de crimes hediondos,
que estipulava que a pena deveria ser cumprida em regime fechado.
Passado um tempo, verificou-se que as prisões estavam superlotadas,
aumentava o número de presos.
Portanto, a lei não serviu para que as pessoas não praticassem crimes.
Outro tema que volta e meia vem a tona é a questão da redução da
menoridade penal, o que sequer é possível, diante da rigidez da norma
constitucional.
Viomundo – Como a mídia poderia ajudar?
Kenarik Boujikian — Penso que a mídia tem o papel de
contribuir para construir uma sociedade justa e solidária. Deve
expender esforços para o aprofundamento da democracia, que somente será
alcançada quando os direitos civis, políticos sociais e econômicos
forem concretizados.
Neste contexto, é importante fornecer dados para população sobre os
efeitos da prisionalização, o funcionamento do sistema, as verdades e
mentiras sobre as consequências de endurecer as penas.
O que parece é que a imprensa apenas fomenta as soluções hipócritas.
Um exemplo bem concreto. Fala-se muito em proibição de uso de
telefones para impedir a atuação do crime organizado. Alguém em sã
consciência pode dizer que não entram celulares nas prisões? Alguém pode
assegurar que é o telefone que vai impedir o funcionamento do crime
organizado?
Os telefones entram no sistema prisional e aqueles que não têm acesso
— a maioria dos presos — ficam nas mãos dos que têm. Não seria mais
lógico e razoável que se instalasse telefones públicos nas prisões, como
existe em outros países?
Viomundo – A mídia gritaria contra.
Kenarik Boujikian — Certamente isso irá escandalizar
algumas pessoas, mas o fato é que com a permissão, a grande maioria dos
presos, que usa o telefone para falar com a família, não ficaria à
mercê dos presos que conseguem os celulares.
Este é apenas um exemplo singelo da falta de racionalidade do sistema.
O fato principal é que é indispensável repensar os conceitos de
crime, justiça e pena. Sem essa revisão séria, com o olhar voltado para o
que ocorre dentro dos muros, isso jamais será alcançado.
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