Julia Magalhães, no Correio da Cidadania, 06.01.2014
Crítico feroz do neoliberalismo, de seus ícones e verdades, de suas
políticas de “crescimento” que destroem a natureza, do consumo que
empobrece as vidas, do Estado que as administra (não sem
constrangimentos) e da esquerda (conservadora e antropocêntrica).
“A felicidade, diz, tem muitos outros caminhos”.
Enquanto esperamos que a Tinta Limón Ediciones termine a edição (mais
ou menos alterada) do livro de entrevistas com Eduardo Viveiros de
Castro, o sítio Lobo Suelto! convida à leitura da última – muito
transcendental – conversa com o antropólogo brasileiro.
A entrevista é de Julia Magalhães, publicada por Lobo Suelto!, em
4-12-2013. A tradução é do Cepat e o Correio da Cidadania a publica em
sua edição prospectiva de 2014.
Eis a entrevista.
Qual é a sua percepção acerca da participação política da sociedade brasileira?
Prefiro começar com uma “des-generalização”: vejo a sociedade
brasileira profundamente dividida em relação à visão sobre o país e seu
futuro.
A ideia de que existe “um” Brasil – no sentido de que as ideias de
“unidade” e “brasilidade” não são triviais – parece uma ilusão
politicamente conveniente (para os setores dominantes), mas
antropologicamente equivocada. Há, pelo menos, dois ou muito mais
“Brasis”.
O conceito geopolítico de Estado-Nação unificado não é descritivo,
mas normativo. Há rachaduras profundas na sociedade brasileira.
Há setores da população com uma vocação conservadora enorme, que não
necessariamente compreendem uma classe específica, apesar de que as
chamadas “classes médias”, ascendentes ou descendentes, estão bem
representadas aqui.
Grande parte da chamada “sociedade brasileira” – temo que seja a
maioria – se sentiria muito satisfeita com um regime autoritário,
especialmente se conduzido midiaticamente por uma autoridade paternal de
personalidade forte. Mas, esta é uma das coisas que a minoria liberal
que existe no país – e, inclusive, é uma certa minoria “progressista” –
prefere manter-se envolta em um silêncio constrangedor.
Repete-se o tempo todo, e para qualquer propósito, que o povo
brasileiro é democrático, “cordial” e amante da liberdade e da
fraternidade, o que é uma ilusão muito perigosa.
É assim que vejo a “participação política do povo brasileiro”: como a
de um povo fragmentado, dividido, polarizado. Uma polarização que não
necessariamente condiz com as divisões políticas (partidos oficiais
etc.).
O Brasil segue como uma sociedade visceralmente escravocrata,
obstinadamente racista e moralmente covarde. Enquanto não nos darmos
conta deste inconsciente, não iremos “em frente”.
Em outras ocasiões, fui claro: insurreições esporádicas e uma certa
indiferença pragmática em relação aos poderes constituídos é o que se
evidencia entre os mais pobres – ou os mais alheios ao drama montado
pelos setores de cima, na escala social – que inspiram modestas utopias e
moderado otimismo por parte daqueles que a história situou na
confortável posição de “pensar o Brasil”. Nós, em suma.
O que é necessário para mudar isto?
Falar, resistir, insistir, olhar além do imediato. E, obviamente,
educar. Mas, não “educar o povo” (como se a elite fosse muito educada e
devesse – ou pudesse – conduzir o povo até um nível intelectual
superior), mas criar as condições para que as pessoas se eduquem e
acabem educando a elite – e, quem sabe, inclusive, se livrem dela.
O panorama da educação do Brasil é, hoje, o de um deserto. Um
deserto! E não vejo nenhuma iniciativa consistente para tentar cultivar
neste deserto. Pelo contrário, tenho pesadelos de conspirações, em que
sonho que os projetos de poder não se interessam realmente em modificar o
panorama da educação do Brasil; domesticar a força de trabalho – se é
isto que está se tentando (ou planejando) – não é, de nenhuma maneira, o
mesmo que educar.
Isto é apenas um pesadelo, obviamente. Não é assim, não pode ser assim… Espero que não seja assim.
Mas o fato é que não se vê uma iniciativa para mudar a situação,
considerando a espetacular abertura de dezenas de universidades sem a
mínima infraestrutura física (para não falar de boas bibliotecas, um
luxo quase impensável no Brasil), enquanto a escola secundária segue
muito deficitária, com professores que ganham uma miséria, com as greves
dos professores universitários reprimidas, como se fossem ladrões.
A “falta” de educação – que é uma forma de instrução muito particular
e perversa, imposta de cima para baixo – é talvez o principal fator
responsável pelo conservadorismo reacionário de grande parte da
sociedade brasileira. Por fim, é urgente uma reforma radical da educação
brasileira.
Em “A floresta e a escola”, Oswald de Andrade sonhava. Infelizmente,
parece que já deixamos de ter uma e ainda não temos a outra. Pois, sem
escola, já não cresce a floresta.
Por onde se começa a reforma da educação?
Começa-se de baixo, é claro, a partir da escola primária. A educação
pública deveria ter uma política unificada, orientada a partir de uma –
com perdão da expressão – “revolução cultural”.
Ela não será alcançada através da redistribuição da renda (ou melhor,
com o aumento da quantidade de migalhas que caem da mesa dos ricos)
apenas para comprar um televisor e para assistir ao BBB, e ver a mesma
merda.
Não é assim que se redistribui a cultura, a educação, a ciência e a
sabedoria. Deve-se oferecer ao povo as condições de fazer cultura ao
invés de consumir aquela produzida “para” eles.
Está havendo uma melhora nos níveis de vida dos mais pobres, e talvez também nos da velha classe média.
Uma melhora que vai durar todo o tempo em que a China continuar
comprando do Brasil ao invés de comprar da África. Mas, apesar da
melhora no chamado “nível de vida”, não vejo nenhuma melhora real na
qualidade de vida, na vida cultural ou espiritual, se me permite usar
essa palavra arcaica.
Pelo contrário. Será que é necessário destruir as forças vivas,
naturais e culturais das pessoas, do povo brasileiro de instrução, para
construir uma sociedade economicamente mais justa? Duvido.
Neste cenário, atualmente, quais são os temas capazes de mobilizar a sociedade brasileira?
Vejo a “sociedade brasileira” magnetizada – ao menos em termos de sua
auto-representação normativa, por parte dos meios de comunicação – por
um patriotismo oco, uma espécie de besta orgulhosa, deslumbrada pela
certeza de que, de uma vez por todas, o mundo se inclinou frente ao
Brasil. Copa do Mundo, Jogos Olímpicos…
Não vejo mobilização acerca de temas urgentíssimos, como poderiam ser
o da educação e da redefinição da nossa relação com a terra, quer
dizer, com o que há debaixo do território. Natureza e cultura, enfim,
que agora se encontram, não apenas mediadas, midiatizadas pelo mercado,
mas mediocrizadas por ele. O Estado se uniu ao Mercado contra a natureza
e a cultura.
E estas questões não mobilizam?
Existe certa preocupação da opinião pública por questões ambientais,
um pouco mais do que em relação às questões da educação, o que não deixa
de ser algo para se lamentar, pois as duas vão juntas.
Contudo, tudo me parece “too little, too late”: muito pouco e muito
tarde. Está se demorando tempo demais para difundir a consciência
ambiental.
Uma conscientização que o planeta requer, com absoluta urgência, de
todos nós. E esta inércia se traduz na escassa pressão sobre os
governos, corporações e empresas que apenas investem nesse conto chinês
do “capitalismo verde”.
Em particular, evidencia-se muito pouca pressão sobre as grandes
empresas, sempre distraídas e incompetentes quando se trata do problema
da mudança climática.
Não se vê a sociedade realmente mobilizada, por exemplo, por Belo
Monte, uma monstruosidade provada e comprovada, mas que conta com o
apoio desinformado (é o que se deduz) de uma parte significativa da
população do sul e do sudeste, para onde irá a maior parte da energia
que não for vendida – a um preço extremamente barato – para
multinacionais de alumínio fazerem latas de saquê – no baixo Amazonas –
para o mercado asiático.
Necessitamos de um discurso político mais agressivo em relação às
questões ambientais. É necessário, sobretudo, falar com as pessoas,
chamar a atenção a respeito de que o saneamento básico é um problema
ambiental, de que a dengue é um problema ambiental.
Não se pode separar a dengue do desmatamento e do saneamento. Temos
que convencer os mais pobres de que melhorar as condições ambientais é
assegurar as condições de existência das pessoas.
No entanto, a esquerda tradicional, como está sendo demonstrado,
apresenta-se completamente inútil para articular um discurso sobre os
temas ambientais.
Quando suas cabeças mais pensantes falam, parece haver a sensação de
estar “indo para trás”, tratando desastradamente de capturar e de
reduzir um tema novo ao já conhecido, um problema muito real que não
está em seu DNA ideológico e filosófico.
Mesmo quando a esquerda não se alinha com o insustentável projeto
“ecocida” do capitalismo, revela sua origem comum a este, com as névoas e
obscuridades da metafísica antropocêntrica do cristianismo.
Enquanto continuarmos sustentando que melhorar a vida das pessoas é
lhes dar mais dinheiro para comprar uma televisão, ao invés de melhorar o
saneamento, abastecimento de água, saúde e educação primária, nada
mudará.
Escuta-se o governo dizer que a solução é consumir mais, mas não se
percebe a menor ênfase para abordar estes aspectos literalmente
fundamentais da vida humana nas condições do presente século.
Isto não significa, obviamente, que os mais favorecidos pensem melhor e que possam ver além dos mais pobres.
Não há nada mais estúpido que estas Land Rovers que vemos em São
Paulo ou no Rio de Janeiro, andando com adesivos do Greenpeace, de
slogans ecológicos, coladas no para-brisa.
As pessoas vão às ruas nestes 4×4 e bebem um diesel venenoso… Gente
que pensa que o contato com a natureza é fazer um Rally no Pantanal…
É uma questão difícil: falta educação básica, falta o compromisso dos
meios de comunicação, falta agressividade política no tratamento da
questão do meio ambiente.
E sempre que se pensa que existe um problema ambiental, algo que está
longe de ser o caso dos governantes atuais, estes mostram, ao
contrário, e, por exemplo, a preocupação em formar jovens que possam
manobrar com segurança e, ao mesmo tempo, mantém firme sua aposta no
transporte individual, em carros, em uma cidade como São Paulo, em que
já não cabe nem uma agulha.
Um governo que não se cansa de se orgulhar pela quantidade de carros
produzidos por ano. É absurdo utilizar os números da produção de
veículos como um indicador de prosperidade econômica. Essa é uma
proposta podre, uma visão estreita e uma proposta muito empobrecedora
para o país.
Você está dizendo que os apelos ao consumo vêm do próprio
governo, mas também há um apelo muito forte procedente do mercado. Como
avalia isto?
O Brasil é um país capitalista periférico. O capitalismo
industrial-financeiro é visto por quase todo o mundo como uma evidência
palpável, o modo inevitável em que se vive no mundo atual.
Diferentemente de alguns companheiros de caminhada, eu entendo que o
capitalismo sustentável é uma contradição em seus termos. E que nossa
atual forma de vida econômica é realmente evitável.
Então, simplesmente, nossa forma de vida biológica (quer dizer, a
espécie humana) não será mais necessária e a Terra irá favorecer outras
alternativas.
As ideias de crescimento negativo, ou de objeção ao crescimento, ou a
ética da suficiência são incompatíveis com a lógica do capital.
O capitalismo depende do crescimento contínuo. A ideia de manter
certo nível de equilíbrio em relação ao intercâmbio de energia com a
natureza não se ajusta na matriz econômica do capitalismo.
Este impasse, gostemos ou não, será “resolvido” pelas condições
termodinâmicas do planeta em um período muito mais curto do que
pensávamos.
As pessoas fingem não saber o que está se passando, preferem não
pensar nisso, mas o fato é que temos que nos preparar para o pior. E o
Brasil, pelo contrário, sempre se prepara para o melhor.
Este otimismo nacional frente a uma situação planetária é extremamente preocupante, assim como perigoso…
E a aposta de que vamos bem dentro do capitalismo é um tanto ingênua, se não desesperada…
O Brasil segue como um país periférico, uma plantação “high tech” que abastece com matérias-primas o capitalismo central.
Vivemos de exportar nossa terra e nossa água em forma de soja,
açúcar, carne bovina, para os países industrializados: são estes quem
têm a última palavra, os que controlam o mercado. Estamos bem neste
momento, mas de modo nenhum em condições de controlar a economia
mundial.
Se a coisa muda um pouco para um lado ou para o outro, o Brasil simplesmente pode perder esse lugar no qual se encontra hoje.
Para não mencionar, claro, o fato de que estamos vivendo uma crise
econômica mundial que se tornou explosiva em 2008, que está longe de
terminar e que ninguém sabe aonde irá parar.
O Brasil, neste momento de crise, é uma espécie de contracorrente do
tsunami, mas quando a onda quebrar vai molhar muita gente. Deve-se falar
sobre estas coisas.
E como você avalia a macropolítica em relação a esta realidade,
as políticas macroeconômicas, com as realidades rurais do Brasil, os
indígenas e ribeirinhos?
O projeto de Brasil, que tem a atual coalizão do governo sob o mando
do Partido dos Trabalhadores (PT), considera os ribeirinhos, os
indígenas, os campesinos, os quilombolas como pessoas com atraso, um
atraso sociocultural, e que devem ser conduzida para outro estado.
Esta é uma concepção tragicamente equivocada.
O PT é visceralmente paulista, o projeto é uma paulistização” do
Brasil. Transformar o interior do país em um país de fantasia: muita
festa de peão de vaqueiro, caminhonetes 4×4, muita música country,
botas, chapéus, rodeios, touros, eucaliptos, gaúchos. E do outro lado,
cidades gigantescas e impossíveis como São Paulo.
O PT vê a Amazônia brasileira como um lugar para civilizar, para domar, para obter benefícios econômicos, para capitalizar.
Em uma lamentável continuidade entre a geopolítica da ditadura e a do
governo atual, este é o velho “bandeirantismo” que hoje faz parte do
projeto nacional.
Mudaram as condições políticas formais, mas a imagem do que é ou
deveria ser a civilização brasileira, daquilo que é uma vida digna de
ser vivida, do que é uma sociedade que está em sintonia consigo mesmo, é
muito, muito similar.
Estamos vendo hoje uma ironia muito dialética: o governo, liderado
por uma pessoa perseguida e torturada pela ditadura, realizando um
projeto de sociedade que foi adotado e implementado por esta mesma
ditadura: a destruição da Amazônia, a mecanização, a “transgenização” e a
“agrotoxicação” da agricultura, migração induzida pelas cidades.
E por detrás de tudo isso, certa ideia de Brasil que se vê, no início
do século XXI, como se devesse ser, ou como se fosse, o que os Estados
Unidos eram no século XX.
A imagem que o Brasil tem de si mesmo é, em vários aspectos, aquela
projetada pelos Estados Unidos nos filmes de Hollywoodnos anos 50:
muitos carros, muitas autopistas, muitas geladeiras, muitas televisões,
todo mundo feliz.
Quem pagou por tudo isso? Entre outros, nós. Quem irá nos pagar
agora? A África, outra vez?Haiti? Bolívia? Para não falar da massa de
infelicidade bruta gerada por esta forma de vida (e de quem se enriquece
com isto).
Isto é o que vejo com tristeza: cinco séculos de maldade continuam aí.
Sarney é um capitão hereditário, como os que vieram de Portugal para
saquear e devastar a terra dos índios. Nosso governo “de esquerda”
governa com a permissão da oligarquia e necessita destes capangas para
governar.
Podem ser feitas várias coisas, desde que a melhor parte fique com
ela. Toda vez que o governo ensaia uma medida que a ameaça, o Congresso –
que sabemos como é eleito – e a imprensa bombardeiam, o PMDB sabota…
Há uma série de becos para os quais eu não vejo saída ou que não têm
saída no jogo da política tradicional, com suas regras. Vejo um caminho
possível pelo lado do movimento social – que hoje está desmobilizado.
Mas, se não for pelo lado do movimento social, seguiremos vivendo neste
paraíso subjetivo de que um dia tudo vai ficar bem.
O Brasil é um país dominado politicamente pelos grandes proprietários
de terra e grandes empreiteiros que jamais sofreram uma reforma agrária
e ainda dizem que atualmente não é mais necessário fazê-la.
Acredita que as coisas começarão a mudar quando chegarmos a um limite?
É provável que a crise econômica mundial afete o Brasil em algum
momento próximo. Contudo, o que vai ocorrer, com certeza, é que o mundo
vai passar por uma transição ecológica, climática e demográfica muito
intensa durante os próximos 50 anos, com epidemias, fome, secas,
catástrofes, guerras, invasões.
Estamos vendo como as condições climáticas mudaram muito mais rápido
do que pensávamos. E há grandes possibilidades de desastres, de perdas
de colheitas, de crises alimentares.
Neste meio tempo, hoje em dia, o Brasil até se beneficia, mas um dia a
fatura irá chegar. Climatologistas, geofísicos, biólogos e ecologistas
são profundamente pessimistas sobre o ritmo, as causas e consequências
da transformação das condições ambientais em que se desenvolve a vida
atual da espécie. Por que deveríamos ser otimistas?
Acredito que se deve insistir que é possível ser feliz sem ficar
hipnotizado por este frenesi de consumo que os meios de comunicação
impõem.
Não sou contrário ao crescimento econômico no Brasil, não sou tão
estúpido para pensar que tudo se resolveria mediante a distribuição do
dinheiro de Eike Batista entre os agricultores do nordeste semiárido ou
cortando os subsídios à classe político-mafiosa que governa o país. Não
que não seja uma boa ideia.
Sou contrário, isto sim, ao crescimento da “economia” do mundo, e sou a favor de uma redistribuição das taxas de crescimento.
E também sou, obviamente, a favor de que todos possam comprar uma
geladeira e, por que não, uma televisão. Sou a favor de uma maior
utilização das tecnologias solar e eólica. E estaria encantado em deixar
de dirigir o carro, se pudéssemos trocar este meio de transporte
absurdo por soluções mais inteligentes.
E como vê os jovens neste contexto?
É muito difícil falar de uma geração à qual não se pertence. Nos anos
1960, tínhamos ideias confusas, mas ideais claros: pensávamos que
poderíamos mudar o mundo e imaginávamos que tipo de mundo queríamos.
Acredito que, em geral, os horizontes utópicos têm retrocedido
enormemente.
Algum movimento recente no Brasil ou no mundo chamou a sua atenção?
No Brasil, a aceleração difusa do que poderíamos chamar de uma
cultura “agro-sulista”, tanto da direita quanto da esquerda, pelo
interior do país. Vejo isto como a consumação do projeto de
branqueamento da nacionalidade, deste modo muito peculiar de a elite
governante no poder acertar as contas com seu próprio passado (passado?)
escravista.
Outra mudança importante é a consolidação de uma cultura popular
vinculada ao movimento evangélico popular. O evangelismo da Igreja
Universal do Reino de Deus associa, por certo, a religião ao consumo.
O como você vê o surgimento das redes sociais, nesse contexto?
Essa é uma das poucas coisas a respeito das quais sou muito otimista:
o relativo e progressivo enfraquecimento do controle total dos meios de
comunicação de cinco ou seis conglomerados midiáticos.
Esse enfraquecimento está muito vinculado à proliferação das redes
sociais, que são grande novidade na sociedade brasileira e que estão
contribuindo para que circule um tipo de informação que não tinha lugar
na imprensa oficial.
E estão habilitando formas, antes impossíveis, de mobilização. Há
movimentos inteiramente produzidos pelas redes sociais, como a marcha
contra a homofobia, o churrasco da “gente diferenciada”, os diversos
movimentos contra Belo Monte, a mobilização pelas florestas.
As redes são nossa saída de emergência frente à aliança mortal entre o
governo e os meios de comunicação. São um fator de desestabilização –
no melhor sentido da palavra – do poder dominante.
Se puder ocorrer alguma mudança importante na cena política, acredito que será através da mobilização pelas redes sociais.
E por isso se intensificam as tentativas de controlar estas redes, em
todo o mundo, por parte do poder constituído. Contudo, controlar o
acesso é um instrumento vergonhoso, como o caso do “projeto” da banda
larga brasileira, que parte do reconhecimento de que o serviço será de
baixa qualidade.
Uma decisão tecnológica e política antidemocrática e antipopular,
equivalente ao que se faz com a educação: impedir que a população tenha
acesso pleno à circulação das produções culturais.
Parece, às vezes, que haveria uma conspiração para evitar que os
brasileiros tenham uma boa educação e um acesso à Internet de qualidade.
Essas duas coisas andam de mãos dadas e têm o mesmo efeito, que é o
aumento da inteligência social que, diga-se de passagem, é necessário
vigiar com muito cuidado.
Você imagina um novo modelo político?
Um amigo que trabalhava no Ministério do Meio Ambiente, na época de
Marina Silva, criticava-me dizendo que meu discurso, feito à distância
do Estado, era romântico e absurdo, que tínhamos de tomar o poder.
Eu respondia que, se tomássemos o poder, tínhamos, sobretudo, de saber como mantê-lo depois, pois aí que a coisa se complica.
Não tenho um desenho, um projeto político para o Brasil, eu não
pretendo saber o melhor para o povo brasileiro em geral, e em seu
conjunto. Só posso expressar minhas preocupações e indignações, apenas
aí me sinto seguro.
Penso, de qualquer forma, que se deve insistir na ideia de que o
Brasil tem – ou a esta altura tinha – as condições geográficas,
ecológicas, culturais para desenvolver um novo estilo de civilização,
que não seja uma cópia empobrecida do modelo da América do Norte e da
Europa.
Poderíamos começar a experimentar, timidamente, algum tipo de
alternativa aos paradigmas tecno-econômicos desenvolvidos na Europa
moderna.
Todavia, imagino que se algum país do mundo irá fazer isso, esse país
é a China. É certo que os chineses têm 5.000 anos de história cultural
praticamente contínua e o que nós temos para oferecer são apenas 500
anos de dominação europeia e uma triste história de etnocídio,
deliberado ou não.
Ainda assim, é imperdoável a falta de inventividade da sociedade
brasileira – ao menos de sua elite política e intelectual – que já
perdeu várias ocasiões de gerar soluções socioculturais – tal como o
povo brasileiro historicamente ofereceu – e articular, assim, uma
civilização brasileira minimamente diferente da que propõem os
comerciais de televisão.
Precisamos mudar completa e, primeiramente, a relação secularmente
depredadora da sociedade nacional com a natureza, com a base
físico-biológica de sua própria nacionalidade. Já é hora de começar uma
nova relação com o consumo, menos ansioso e mais realista frente à
situação de crise atual. A felicidade tem muitos outros caminhos.
Fonte: (EcoDebate,
17/12/2013); publicado pela IHU On-line. IHU On-line é publicada pelo
Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos – Unisinos, em São Leopoldo, RS.
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