segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Entrevista - Delfim Netto


Revista Carta Capital - 06/01/2014


O ex-ministro Delfim Netto vê mudanças positivas na postura do governo, mas cobra maior compromisso com o controle da dívida pública


A SERGIO LIRIO




Criador de frases brilhantes, Delfim Netto cunhou recentemente a expressão "tempestade perfeita" para definir os riscos à economia do Brasil em 2014, uma combinação do rebaixamento do rating da dívida do País e o fim dos estímulos monetários nos Estados Unidos. "Seria uma catástrofe" afirma. O ex-ministro antecipa a "meteorologia econômica, mas vê margens para o governo dissipar as nuvens pesadas.

Ele elogia a mudança de postura de Brasília em relação aos leilões de infraestrutura e defende uma reforma no ICMS, fundamental em sua opinião. "As condições existem." A seguir, fala também de câmbio, controle fiscal, Petrobras e China.

Delfim Netto: O governo terá de jogar de olho no mundo. É preciso reconhecer o seguinte: a presidenta Dilma assumiu quando o vento de cauda tinha terminado. O Lula fez um governo excepcional, inclusivo, aumentou a renda real. mas foi muito beneficiado por um movimento externo, por uma mudança importante das relações de troca favorável ao Brasil. Por causa disso, superamos a crise de 2009.

Esse movimento terminou em 2010. em 2011 começou uma inversão das relações de troca lenta, mas contínua. No primeiro ano da Dilma, ela fez uma política econômica um pouco mais dura, ajustou. A partir daí, a economia mundial ficou muito mais difícil. É preciso uma política de natureza um pouco diferente.

CC: O governo entendeu a mudança?

DN: Acho que sim. Tenho muita confiança no Guido Mantega. Ele realmente é um bom profissional. As circunstâncias atuais são muito mais complicadas do que no passado recente...

CC: O que aconteceu?

DN: Talvez tenhamos dado muito mais ênfase ao consumo do que deveríamos.

Houve demora em compreender que estamos em um regime de restrição de oferta. Isso é evidente, pois se está praticamente em pleno emprego. No pleno emprego, a única forma de crescer é pelo estímulo à produtividade de quem trabalha. É necessário elevar a relação capital-trabalho mais rapidamente. Uma das formas mais eficazes em um país como o nosso é melhorar a infraestrutura.É uma injeção na veia da produtividade. Hoje, para cada tonelada de soja transportada de Mato Grosso até Paranaguá, perdem-se 500 quilos. Quando tivermos boas estradas, a perda será de 200. Os 300 quilos de produtividade são o prêmio obtido pela melhora da infraestrutura. O governo parece ter entendido que o caminho está na expansão do investimento. Demorou para entender, houve uma dificuldade inicial. Queriam fixar a taxa de retorno. Tudo isso, me parece, está superado. Um ponto importante foi ter transferido a discussão para a Casa Civil e o Ministério da Fazenda. A coisa começou a ficar mais clara a partir desse ponto. Principalmente <> item a respeito da "modicidade tarifária". A ideia é correta, mas era interpretada como algo contrário ao lucro, de negação do papel do mercado. A modicidade deve ser buscada e não representa nenhuma idiossincrasia em relação ao mercado.

CC: Essa nova postura se refletiu nos últimos leilões.

DN: Sim. A concessão dos aeroportos foi muito bem-sucedida. A rodovia cm Mato Grosso, também. Continuam alguns problemas em portos, ferrovias... O governo aprendeu. Seu papel é fixar a qualidade do projeto. Com um projeto executivo perfeito, produzo leilões adequados e estimulo a concorrência. Já a taxa de retorno, o mercado fixa. Qual é a menor taxa de retorno possível? Vai ser definida pelo leilão, se ele for benfeito. Um dos poucos campos em que a teoria econômica evoluiu de verdade foi na teoria dos leilões. Depois das privatizações na Inglaterra e da utilização da Teoria dos Jogos, houve um aperfeiçoamento gramático das regras básicas dos leilões. Leilão não é mais algo para amador. O governo, ao contrário do que imagina, não é garantidor. Ele introduz incertezas.

CC:Como?

DN: Quando eu preciso do governo por 30 anos, estou frito (risos). O governo pensa: "Se dou garantia, está tudo bem". Para mim, se ele dá garantias, está tudo muito mal. Não tenho nenhuma razão para acreditar que ele não vai mudar de opinião nos próximos 30 anos. Mesmo porque não vai ser ele. vai ser o quarto sucessor dele. O governo tinha um problema, em minha opinião, que não era ideológico. Há quem diga: o governo é socialista, trotskista. Digo: não. este governo tem. na verdade, uma tendência espiritista.

CC: Porquê?

DN: Ele não pode ver nada funcionar e logo arranja u m encosto. Nos leilões dos aeroportos, o encosto é a Infraero. Nas ferrovias, os projetos são ruins, o modelo é equivocado e ainda temos a Valec. Não adianta mudar de nome. A Valec não é um caso de administração, é de polícia. Mas o governo dá sinais de ter entendido de forma clara as funções do Estado e do setor privado. Os mercados só funcionam com o governo forte, constitucionalmente restrito e que dê as garantias a seu funcionamento. O mercado não funciona sem um governo forte. Não há nenhuma contradição entre um governo forte, regulado constitucionalmente, e o funcionamento do mercado. Eles se complementam.

CC: isso basta?

DN: Não. Há o incômodo da política fiscal. Não pelo que ela é. mas por causa da perspectiva de piora. Ter 60% de dívida bruta em relação ao PIB não é exagerado. mas também não é confortável, pois, se precisar dela. os limites são pequenos.

CC: Como o governo deveria agir neste caso?

DN: O Brasil, em sete, oito. dez anos, não precisa de um superávit primário muito acima de 2%. A questão é fixar essa meta e cumpri-la, sem aventuras contábeis. Aquela "quadrangulação" de dezembro do ano passado foi tão violenta, agressiva, que obrigou o governo a recuar. A transparência e a obediência às regras são muito mais importantes do que o próprio resultado. Se disserem que vão fazer 2% e fizerem, a coisa funciona.

CC: Mas o humor do setor privado, principalmente dos mercados financeiros, só piora.

DN: Externamente há efeitos não analisados internamente. A intervenção na Petrobras tem sido devastadora para a imagem do Brasil. Ele era uma empresa cujas ações na Bolsa de Nova York funcionavam. Qualquer hora dessas vamos ser submetidos a um processo por causa das intervenções. Os grandes investidores, e tem muito investidor na Petrobras, na Eletrobras, estão muito insatisfeitos, não por uma violência específica, pois não se violou nenhum contrato, mas pela maneira inconveniente com que se destruíram valores nessas companhias. Não vamos ter ilusão. A Bolsa é um fator importante na formação das expectativas...

O sujeito que viu o seu dinheiro sair do Fundo de Garantia e sumir nos papeis da Petrobras vai ficar bravo mesmo. Foram atraídos 500 mil investidores para a Petrobras. Equem são esses 500 mil? São aqueles que pensam, leem, transmitem as suas ideias, protestam. Essa turma se sente espoliada por u ma ação do governo. Essa é a maior prova de que não se trata de um governo socialista, pois ele se esforça para destruirás próprias empresas.

CC: O senhor confia no pacto feito com o Congresso para segurar os gastos públicos?

DN: Foi importante. O Congresso tem convenções e se elas não são obedecidas, ele não funciona. Não tem arrependimento. Se votei "sim", votei "sim". Ninguém ousa pedir explicação das razões de um voto. Há mais um fator decisivo para o funcionamento do Congresso: a confiança na palavra. Se o líder do governo dá a palavra, se o líder da oposição dá a palavra, a palavra vale. pois, se você a violar, o Congresso não funciona mais. A mecânica exige que você confie no opositor para aprovar as suas próprias pautas. E você precisa garantir que, se ele te ajudar, você vai ajudá-lo nas coisas dele. Você pode dar ou não a palavra e ir para o embate. Mas, uma vez dada a palavra, ela tem de ser cumprida. Em mi n ha opinião, de fato está montado um sistema para se reproduzir. E não é obra do PT, mas do PSDB. Ele só não funcionou para os tucanos por causa da morte de Sérgio Motta.

CC: E aí eles perderam.

DN: O Sérgio Motta era a energia desse processo, no caso do PSDB. O Lula ganhou a eleição c soube usar. O próximo passo seria aprovar a lista fechada de candidatos com financiamento público de campanha. Aí acaba mesmo.

CC: Existe alguma macro ou microrreforma mais urgente?

DN: As condições para uma reforma do ICMS estão dadas. O governo federal deveria tomar a decisão de criar um fundo de reequilíbrio regional. Porque surgiu a guerra fiscal? No regime autoritário, um dos objetivos mais importantes era promover o reequilíbrio regional. Foram criados institutos c instituições que promoviam e reduziam os desequilíbrios. Quando mudou o regime, quando se fez a Constituição, esse princípio implícito na Carta Magna ficou sem instrumentos de funcionamento. Um estado como Goiás não tinha condição de se desenvolver sem algum mecanismo de reequilíbrio regional. Oque aconteceu? Em legítima defesa, ele passou a usar o ICMS como u ma espécie de barreira alfandegária. Aguerra fiscal foi uma resposta dos estados que perderem ou não viam mais no governo federal a disposição de reequilibraras regiões. Agora você tem um estatuto, tem as convenções fixadas. Tudo está mais ou menos encaminhado para você resolver isso ao longo de 15 anos. 20 anos. mas tem de começar. O simples fato de você instituir o fundo e fazer uma arrumação no ICMS vai melhorar dramaticamente as condições locacionais de recursos. Há escondido aí um crescimento de 1% do PIB por ano. É uma reforma funda mental.

CC: Por que o crescimento murchou de forma tâo rápida?

DN: O primeiro já falamos: o vento externo mudou de direção. Era de cabo, passou a ser de frente. Internamente, houve um exagero no aumento dos salários nominais, muito acima da produtividade. Para combatera inflação, os juros foram mantidos em um patamar para sustentar a taxa de câmbio nominal muito valorizada. Quando se combinam salários em alta e câmbio nominal em queda, a taxa de câmbio real se valoriza dramaticamente. Se você olhar a relação entre câmbio nominal e o superávit no setor industrial, verá uma relação muito estreita entre os dois. Ou seja. a relação do câmbio primeiro roubou o mercado externo da indústria. O sujeito que exportava sapato perdeu o sapato externo, e perdeu em u m momento em que o mercado ainda em desenvolvimento e por causa da supervalorização. Foi o primeiro efeito. O segundo foi que essa valorização deu vantagem ao sapato importado. Então, você atacou a indústria com uma tesoura, fez cortar com as duas lâminas. I)e um lado, roubou o mercado externo é, do outro lado. roubou o lado interno.

A indústria hoje está murcha, não cresce. CC: E as desonerações tiveram pouco efeito.

DN: Tem pouco efeito no longo prazo. Elas podem antecipar um pouco, mas não criam a demanda. Seria impossível usar a desoneração permanentemente. Não se pode dizer que a i n fiação sa iu do cont role, mas é evidente que há 1 ponto e meio. 2 pontos escondidos. O mercado intui. Para não deixar crescer a dívida pública e para recuperar, se você quiser trazer para dentroa inflação escondida, vai precisar de uma política muito mais dura. tanto do ponto de vista fiscal quanto do ponto de vista monetário. Esses dois problemas não constituem uma tragédia. Digamos,o apocalipse não está na esquina...

CC: Mas seria bom evitar que ele chegasse...

DN: É preciso evitar. O câmbio, que era o grande problema, o mercado resolveu para o governo. Há um espaço de quase dois anos entre a correção do câmbio e a melhora das exportações. Não há dúvidas, um câmbio mais correto leva ao aumento das exportações. A indústria vai recuperar um pedaço da demanda externa. O Brasil precisa, porém, reconstruir um sistema de tarifas efetivas destruídas ao longo dessas intervenções. O que quero dizer? O insumo básico não deve ser ta rifado, mas à medida que o produto progride, você tem tarifas. A geladeira precisa ter mais tarifas que o aço. Invertemos essa lógica. Provável mente, os insumos têm atualmente uma maior tarifa efetiva do que os produtos acabados. E preciso corrigir isso e reintroduzir um sistema de drawback verde-a ma relo. Se for para exporta r. pode importar livremente sem tributos. Temos de nos ligar de novo ao mundo, pois estamos isolados. As escolhas internacionais do Brasil foram péssimas. O Mercosul teve um papel muito importante para dissipara tensão militar entre o Brasil e a Argentina, mas no longo prazo tem se revelado uma tragédia. Não fizemos acordos com ninguém, lutamos por um sistema multilateral, correto, masque não deu certo.

CC: O senhor tem falado na "tempestade perfeita", uma combinação do fim dos estímulos monetários nos Estados Unidos e um rebaixamento do rating da dívida brasileira. Essa tempestade continua no horizonte?

DN: O governo precisa mostrar à sociedade a clara disposição de não deixar as despesas crescerem acima das receitas e de corrigir o rumo da inflação. Isso reduziria o risco de uma redução do rating do País. Essa redução por si só seria ruim. mas. se combinada ao fim dos estímulos nos EUA, provocaria uma catástrofe, a "tempestade perfeita". Haveria um choque no câmbio e para controlara inflação seria necessária uma taxa de juros de 20%, 22%. O crédito secaria. Tenho, no entanto, a percepção de que o governo entendeu a situação.

CC: O que esperar da China?

DN: Em relação á China, devemos é ter inveja. Ela mostra que a combinação Estado e mercado é muito mais virtuosa do que parece. O interessa n te é que os riscos de equívocos no caso chinês eram altos, mas eles corrigiram todos ao longo do tempo. Os chineses descobriram que a única forma de melhorar o desenvolvimento era por meio da importação não só de tecnologia, mas de alguns meca n ismos de organização descobertos pelos outros. O mercado chinês é muito complicado. Tenho uma edição do Marx corrigida pelo Mao Tsé-tung. Como está em chinês, ninguém sabe o que está escrito lá (risos), mas seguramente não é o Marx que a gente conhece. Curioso: piorou a distribuição de renda, mas a China absorve essa tecnologia e cada vez mais as vantagens da organização de mercado. Volto a insistir: não há uma organização de mercado razoável sem um Estado forte, constitucionalmente controlado. Ele não produz igualdade, ao contrário, produz desigualdade, é um processo alta mente competitivo. E tende a flutuar. Então é necessário um Estado capaz de corrigir essas duas coisas. A desigualdade se corrige com educação e saúde, de tal jeito que todo mundo parta do mesmo ponto. Quer dizer, não importa se eu fui fabricado na suíte de um hotel cinco estrelas ou nos arredores do Museu do Ipiranga. Uma vez produzido, não deve haver diferença. Quando o mercado flutua excepcionalmente, a demanda privada flutua excepcionalmente e o Estado entra com um fator compensador. Eu acho que o Marx é vitima dos marxistas e o Keynes é vítima dos keynesianos. O Keynes nunca sugeriu a manutenção do pleno emprego o tempo todo. Sua recomendação é outra: quando o sistema passa do limite, adota-se uma política fiscal compensatória. Ele nunca procurou eliminar as fluiu ações, as flutuações são ínsitas à economia de mercado e o que se chama capitalismo usa os mercados como instrumento. Nem toda economia de mercado é capitalista.

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