Escrito por Valéria Nader e Gabriel Brito, da Redação |
Sexta, 29 de Março de 2013 |
Ainda no calor da comoção pela morte do presidente venezuelano Hugo Rafael Chávez Frias, seus compatriotas já vivem a pleno a disputa eleitoral que obrigatoriamente se sucederá pelo mandato que o PSUV (Partido Socialista Unido da Venezuela) acabara de arrebatar mais uma vez. Nicolas Maduro, vice de Chávez, ex-chanceler do Mercosul, é o candidato à sucessão, enfrentando o mesmo Henrique Capriles Radonski, representante das oligarquias que precederam Chávez no poder e partícipe do frustrado golpe de 2002. Para analisar tal quadro de enorme efervescência nacional, com forte repercussão mundial, o Correio da Cidadania entrevistou Samuel Pinheiro Guimarães, Alto Comissário do Mercosul de janeiro de 2011 até junho de 2012 e também ex-ministro dos Assuntos Estratégicos nos últimos 15 meses do governo Lula. Ele não duvida em vaticinar que “o presidente Nicolas Maduro será eleito. Inclusive, acredito que será eleito com ampla maioria de votos, para desespero da direita, dentro e fora da Venezuela”. Colocando o período chavista em perspectiva histórica, Samuel reitera as teses defendidas por variados setores progressistas, que atestam um enorme e inédito avanço socioeconômico para a maioria do povo venezuelano. Refuta, portanto, distorcidas acusações a respeito do cerceamento das liberdades no país: “Chávez aumentou muito a participação política, introduzindo na Constituição, referendada pelo povo, um dispositivo de muita importância: o referendo revocatório”, lembra Samuel. Passando ao plano regional, Pinheiro Guimarães assinala que o continente sul-americano passa por um momento muito favorável em termos de soberania e integração, em grande parte impulsionada pelos países do chamado bloco progressista. Interação agora enriquecida pela entrada da Venezuela no Mercosul, algo visto pelo diplomata como “importante, porque assim fica mais difícil de se tentar levar a cabo uma tentativa de golpe de Estado naquele país”. O entrevistado evita comparações entre o governo brasileiro e demais na região, ressaltando a peculiaridade das relações entre Executivo e Legislativo como determinantes para a condução dos diversos governos. “As coisas dependem muito das eleições do Congresso. No nosso país, as forças de esquerda, e não digo só o PT, incluo na soma os outros partidos, não possuem maioria”. Pinheiro Guimarães comenta ainda as perspectivas do Mercosul e tira peso das permanentes ingerências dos EUA na região. “Não têm sido tão bem sucedidas”. A entrevista completa com pode ser lida a seguir. Correio da Cidadania: Após lutar contra o câncer e perecer, ante uma ampla comoção nacional, como o senhor pode avaliar os 14 anos de Hugo Chávez na presidência da Venezuela, ele que foi um dos mais demonizados personagens políticos contemporâneos, alvo de implacável fúria dos EUA e da imprensa conservadora internacional, no entanto, vencedor de 15 de 16 processos eleitorais internos? Samuel Pinheiro Guimarães: Acredito que o presidente Chávez promoveu na Venezuela inteira uma verdadeira transformação. Era um país tradicionalmente vinculado aos Estados Unidos, extremamente dependente da política e economia deles e o presidente Chávez transformou tal situação, em diferentes setores. Primeiramente, realizando um governo extremamente democrático - aliás, como disse Lula certa vez, “até com excesso de democracia”. O presidente Chávez disputou 16 eleições e perdeu uma, respeitando o resultado de todas, aliás, acompanhadas por dezenas de observadores internacionais, europeus, estadunidenses, sem jamais ter recebido alguma denúncia de fraude. Foi um governo muito democrático. Em segundo lugar, em seu período houve uma ampla liberdade de crítica, por parte dos jornais, televisões e assim por diante, todos com muito espaço pra criticar o governo. E nunca ouvimos notícia de qualquer jornalista preso por exercer o direito de informar. Na área política, também aumentou de forma muito profunda a participação do povo venezuelano, introduzindo na Constituição, referendada pelo povo, um dispositivo de muita importância: o referendo revocatório. Ele, aliás, se sujeitou a tal referendo e venceu. Em outros países não existe tal grau de democracia. Na maior parte deles, depois de eleitos, os políticos estão livres pra fazer o que bem entenderem, durante todo o período do mandato. Nesse sistema, a população tem condições de revogar o mandato do Executivo, de um presidente, governador etc. Sendo assim, ele contribuiu para essa grande transformação, que levou a uma maior participação popular. Na área econômica, Chávez encontrou um país há décadas profundamente dependente do petróleo, em especial o que exportava aos EUA. Assim, primeiro ele diversificou as exportações, conseguindo uma menor vulnerabilidade nacional. Em segundo lugar, procurou construir infraestrutura para o país, em parte até com auxílio do governo brasileiro, construindo pontes, rodovias, enfim, a estrutura necessária a uma economia que não seja totalmente dependente do petróleo. O que, na época, foi dificultado, naturalmente. Na economia interna, promoveu uma série de programas pra reduzir a desigualdade social, muito notória na Venezuela, anteriormente uma das maiores do mundo. Agora, é um dos países menos desiguais do continente. Com os programas de saúde e educação, o país foi também declarado pela UNESCO como “território livre de analfabetismo”, além de ter chegado a uma extraordinária redução da mortalidade infantil. Promoveu a inclusão da população no mercado de trabalho e também grandes programas habitacionais. Correio da Cidadania: E no plano externo, o que o senhor destacaria da trajetória de Chávez? Samuel Pinheiro Guimarães: Externamente, o presidente Chávez se destacou por sua advocacia pela integração sul-americana, trazendo ideias novas como o Banco do Sul e a integração energética, ao mesmo tempo apoiando economicamente uma série de governos progressistas da região, como Equador, a própria Argentina, da qual comprou títulos da dívida... No Caribe, apoiou de forma muito intensa países que dependiam de petróleo, com preços favorecidos, menores, permitindo pagamentos de longo prazo. Ao mesmo tempo, diversificou suas exportações. Hoje em dia, através de acordos com a China, a Venezuela fornece parte significativa de seu petróleo a este país, o que em breve ocorrerá também com a Índia. A Rússia produz petróleo na Venezuela. Tal diversificação do comércio exterior é muito importante. E aconteceu também na América do Sul. O segundo maior superávit do Brasil no exterior é com a Venezuela, cerca de 4 bilhões de dólares. O próprio governo dirigiu seu comércio exterior a esses países, incluindo Argentina, Uruguai, o próprio Paraguai, a quem fornecia petróleo a preços camaradas... Portanto, ele transformou o país, sua política interna e externa, sua economia interna e externa, transformou a sociedade. Extraordinário. E tudo isso num período democrático no qual a participação do povo foi muito maior do que nos demais países da América. Correio da Cidadania: O que esperar do período que se avizinha na Venezuela, que já passará por nova eleição presidencial nos próximos dias? Acredita na importância de continuidade do mandato do PSUV, partido de Chávez, assim como de Nicolas Maduro, nesse momento delicado? Samuel Pinheiro Guimarães: O presidente Nicolás Maduro será eleito. Inclusive, acredito que será eleito com ampla maioria de votos, para desespero da direita, dentro e fora da Venezuela. Ninguém comanda um país sozinho, isso é um absurdo. Qualquer líder tem seu grupo e segmentos da população que o apóiam, e para o país será importante continuar com o atual processo. Correio da Cidadania: Pensando na conjuntura latino-americana em geral, especialmente nestes últimos anos, em que governos populares, ou egressos de movimentos sociais, conseguiram chegar à presidência em diversos países, o que teria a dizer? Samuel Pinheiro Guimarães: Acho que é um contexto favorável. No Chile, é grande a expectativa de que a Michelle Bachelet seja eleita novamente no próximo pleito. Na Argentina, temos o governo Cristina Kirchner, no Uruguai, o governo Mujica possivelmente será sucedido por outro nome da Frente Ampla (creio que o ex-presidente Tabaré Vázquez)... No Brasil, se a presidente Dilma sair candidata, será reeleita. No Equador, Rafael Correa ganhou com 62%. Portanto, há uma composição de governos progressistas. Nesse contexto, Maduro, se eleito, terá um desafio muito grande, de dar continuidade aos programas de Chávez, econômicos e sociais, contexto com o qual ele já se mostrou comprometido. É uma situação muito favorável. Correio da Cidadania: O senhor vislumbra diferenças entre governos tidos como mais progressistas, a exemplo de Bolívia, Venezuela e Equador, e outras experiências sul-americanas, como a do Brasil de Lula e de Dilma, criticada por setores mais à esquerda por, supostamente, privilegiar composições políticas conservadoras a expensas de antigas bandeiras sociais? Samuel Pinheiro Guimarães: As coisas dependem muito das eleições do Congresso. Porque, nos regimes sul-americanos, em geral tem-se o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Se quem ganha as eleições do Executivo não tiver maioria no Legislativo, não consegue aprovar projetos e legislações de sua pretensão. É o que acontece no Brasil. No nosso país, as forças de esquerda - e não digo só o PT, incluo na soma os outros partidos - não possuem maioria. Se o presidente resolver governar sem maioria não terá nada, nenhuma lei, projeto, aprovado. Foi o que aconteceu com o presidente Lugo no Paraguai. Acabou sofrendo processo de impeachment. Golpista, é verdade, mas sofreu; os partidos do Congresso se organizaram, votaram e ele foi destituído. É uma diferença grande. Na Bolívia, o presidente Evo Morales tem maioria no congresso. O Rafael Correa também conseguiu maioria parlamentar agora. Se amanhã os partidos de esquerda obtiverem maioria no Congresso, não será preciso alianças com outros partidos. É simples, mas às vezes se esquece disso quando se criticam as alianças. Sem aliança não há governo. Como o sistema não permite que o povo governe diretamente, é o que ocorre. Não há análise definitiva alguma, mas é o que penso. Os partidos progressistas brasileiros não têm maioria no Congresso, ao contrário também da presidente Kirchner, que, ao menos na Câmara de Deputados, tem maioria. Assim, a Dilma tem que fazer aliança, senão não há novas iniciativas, programas e leis de cunho progressista. Correio da Cidadania: O que pensa de projetos como o do IIRSA (A Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana), que intensificam obras de infraestrutura no continente, a exemplo da exploração hidrelétrica da Amazônia - o que, para muitos estudiosos, aprofundará a exploração econômica em proveito de uma minoria privilegiada, com fortes conexões externas? Samuel Pinheiro Guimarães: Os projetos iniciais do IIRSA eram muito voltados à criação de corredores de escoamento, ou seja, exportação. Sobre os novos projetos, mais recentes, considero mais voltados ao mercado interno. É fato que os projetos de infraestrutura, de transportes e outras modalidades são montados muitas vezes, principalmente em áreas de grande exploração econômica, em favor do transporte e embarque de mercadorias. Sobre o fato de se contemplarem somente grupos maiores, como a Vale, por exemplo, temos necessidades para a siderurgia, o desenvolvimento econômico etc. E naturalmente que, a despeito da necessidade do transporte de mercadorias, para o mero abastecimento das cidades, os projetos que interessam à grande maioria da população não estão no IIRSA. Para essas pessoas, interessa o transporte urbano. E esta é, realmente, uma questão grave, que deveria receber prioridade em relação a muitos outros projetos, pois afeta em alto grau a grande maioria da população brasileira; 85% dos brasileiros estão nas cidades. Trata-se de uma necessidade histórica, que precisa de prioridade. E o grande transporte de massa que seria capaz de equacionar esta deficiência é o metrô, que poderia transportar enormes quantidades de pessoas diariamente. Ele deveria ser a prioridade de cada grande cidade do país, uma vez que auxilia até em termos de saúde e educação, que também sofrem reflexos da deficiência nos transportes. Hoje, as pessoas não têm tempo para fazer esporte, ter lazer ou outra atividade, devido à extrema fadiga causada pelo quadro caótico nos transportes urbanos das cidades do país. Correio da Cidadania: Como foi a sua experiência como representante geral do MERCOSUL nestes últimos tempos? A integração entre os países do bloco evoluiu positivamente, para além dos parâmetros comerciais, neste período? Samuel Pinheiro Guimarães: Estive pouco mais de um ano por lá e acho que houve bastante progresso no período, como, por exemplo, na condenação do golpe no Paraguai, no ano passado. Acredito que esse gesto consolidou o MERCOSUL do ponto de vista político. Assim como o ingresso da Venezuela, que foi extremamente importante para o bloco. Os dois fatos são muito relevantes em termos de maior coordenação regional. A entrada da Venezuela também é importante porque assim fica mais difícil de se tentar levar a cabo uma tentativa de golpe de Estado naquele país. É um país muito rico em recursos naturais – alguns dizem que tem as maiores reservas de petróleo do mundo, outros dizem que são a segunda, atrás somente da Arábia Saudita –, que estará inserido em um processo mais amplo de desenvolvimento econômico, incrementando sua infraestrutura, desenvolvendo sua agricultura, sua pecuária, sua indústria. De modo que será muito importante a relação entre a economia venezuelana e os países mais avançados e industrializados do bloco, no caso Brasil e Argentina. Fortalecerá muito o bloco todo, inclusive para além do aspecto comercial, e possivelmente abrirá condições para a entrada de Equador, Bolívia etc. Correio da Cidadania: Como tem visto, nos últimos tempos, a presença dos Estados Unidos nas conjunturas internas de países sul-americanos e respectivas reações dos vários governos e povos a esta presença? Samuel Pinheiro Guimarães: Não acredito que tal presença esteja sendo muito bem sucedida. O presidente Rafael Correa, por exemplo, não era o candidato do gosto dos EUA, assim como não o são Evo Morales, Nicolas Maduro, Cristina Kirchner. De modo que não vejo muito sucesso recente em sua ingerência na América do Sul. Mesmo no caso do Paraguai, não se pode considerar que houve um grande sucesso, porque o golpe neste país também levou à entrada da Venezuela no MERCOSUL. A Venezuela é uma questão permanente para os EUA. Não é de hoje. Assim como demonizaram Chávez, vão procurar demonizar Maduro, farão todo o esforço possível. Mas não terão êxito, assim como não enxergo possibilidade de que isso ocorra na Argentina, no Brasil... Correio da Cidadania: Neste sentido, e especialmente agora com a morte de Chávez, corremos o risco de ver ressuscitadas experiências como a da ALCA nas Américas, ou tendem a se afirmar as alternativas menores e menos visíveis de alianças, já em vigor, com vistas a manter sob controle as economias do continente? Samuel Pinheiro Guimarães: Isso não existe. O que eles fazem hoje em dia são os acordos bilaterais, os chamados Tratados de Livre Comércio. Já os fizeram com Chile, Peru, Colômbia e com países da América Central. Mas não ocorrerão estes acordos com muitos países mais - isto é, com os países que citei como integrantes do bloco de governos progressistas na região. Correio da Cidadania: Existe, desse modo, uma tendência de afirmação de alianças diferentes e até opostas à ALCA, a exemplo da ALBA? Poderiam emergir iniciativas de integração mais localizadas? Samuel Pinheiro Guimarães: Isso depende dos países. Existe a ALBA, também a Iniciativa do Arco do Pacífico. Algumas serão bem sucedidas, outras não. O progresso estará associado à política dos próprios países. Correio da Cidadania: Como situaria os governos Lula e Dilma na afirmação da soberania e na condução da política externa do país? Destacaria alguma diferença entre eles ao lidar com quesitos tão substanciais? Samuel Pinheiro Guimarães: Na essência, em termos de defesa de soberania, de uma posição política altiva, independente, não há diferença entre ambos. Naturalmente, há diferenças de estilo, porque as pessoas em si são diferentes. Assim como as conjunturas internacionais são diferentes. O que ocorreu no mundo entre 2003 e 2008 foi uma coisa; a partir da crise de 2008, foi outra, além das próprias circunstâncias na região, na Europa, na África, mesmo na China. Ao mesmo tempo, em 2003, a situação era uma, hoje é outra. A China não era a maior potência econômica do mundo, e agora é. Não havia expectativa para tal, e tampouco tinha sido prevista uma crise econômica tão grande. As situações são diferentes, mas acho que os dois governos, no essencial, tiveram o mérito de reconhecer a importância da integração sul-americana, fizeram o esforço de cooperação com os países vizinhos, de construção de infraestrutura, de posições de independência diante de eventuais iniciativas de países desenvolvidos. No governo Lula, houve um fato extraordinário, que foi a doação brasileira para a construção da linha de transmissão de Itaipu a Assunção. E no governo Dilma, houve a entrada da Venezuela no MERCOSUL, determinada pela própria presidente, como consequência da suspensão do Paraguai. Não havia muita unanimidade sobre isso, até o momento em que ela adotou tal posição com força. Do ponto de vista da integração sul-americana, foi importantíssimo. Correio da Cidadania: Finalmente, o que imagina para o futuro do chamado “socialismo do século 21”? Samuel Pinheiro Guimarães: Acho que o prestígio do presidente Chávez, assim como o prestígio do presidente Lula, se deve aos programas sociais e aos projetos de reconstrução dos seus países. Portanto, a questão do “socialismo do século 21” e o prestígio que essa chama tem na Venezuela dependem justamente do reconhecimento do povo em relação aos programas desenvolvidos. No caso deste país, através das chamadas misiones, com atuação na saúde, educação, habitação popular, reforma agrária, assim por diante. Acredito que o presidente Maduro, que imagino reeleito, dará continuidade a tais programas. Ele foi um colaborador extremamente próximo do Chávez, que não à toa o indicou como candidato a sua sucessão. Vejo uma perspectiva muito interessante, os projetos de cooperação na Venezuela são muito importantes, criando perspectivas novas inclusive nos países da região, sejam mais ou menos desenvolvidos. É difícil saber se o modelo será disseminado, isso depende de como cada país verá a adequação de tais programas, com as devidas adaptações, naturais. Da mesma forma, alguns programas sociais do Brasil são usados de modelo em outros lugares. Mas as experiências venezuelanas, como a erradicação do analfabetismo, são muito importantes, inclusive para o Brasil, onde ainda é grande esse problema. Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista. |
segunda-feira, 1 de abril de 2013
‘Participação do povo sob Chávez foi muito maior que nos demais países da América Latina’
‘Participação do
povo sob Chávez foi muito maior que nos demais países da
América Latina’
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