quarta-feira, 25 de julho de 2012

O fetiche do superávit primário e o crescimento da economia


O fetiche do superávit primário continua a inibir nossas autoridades econômicas, que parece não terem entendido ainda a relação entre ele e a recessão. A taxa de juros sobre a dívida pública é tão alta (continua alta mesmo depois das seguidas reduções pelo BC) que os receptores dos juros da dívida pública não têm qualquer estímulo em transformar em gastos correntes e investimentos os recursos oriundos do superávit primário que recebem do governo. O artigo é de J. Carlos de Assis.

A evidência de que a economia está no rumo da recessão nos impõe considerar novamente a questão do superávit primário. É um tema que nunca foi claramente entendido no país, sobretudo pela maioria dos economistas neoliberais, o que se explica por uma razão simples: enquanto muitos, como eu, apontavam nos anos 90 e 2000 para o caráter recessivo do superávit primário, a realidade tomava um caminho inverso, mostrando uma indiscutível compatibilidade entre superávit primário e crescimento econômico. Parecia que, diante dos fatos, a crítica ao superávit primário era irremediavelmente improcedente.

Tentemos avaliar a essência da questão. Numa recessão, a retomada da economia depende essencialmente de um ou da combinação de três fatores: do investimento privado, do excedente de exportações ou do investimento público, em todos esses casos estimulando a demanda agregada. É claro que, numa situação sem perspectiva de aumento da demanda interna, não há estímulo ao investimento privado. Entretanto, se o contexto internacional favorece o aumento das exportações, a economia pode retomar pelo lado externo, sem depender necessariamente do aumento prévio do investimento público.

Na etapa inicial do primeiro governo Lula, a economia se arrastava em torno de um crescimento inferior a 2% ao ano, prolongando a recessão do governo FHC. Em ambos os casos, o esforço de se fazer superávit primário tinha um efeito contracionista, que não era compensado nem pelas exportações, nem pelo investimento privado, nem, consequentemente, pelo aumento da demanda interna. Contudo, é necessário compreender melhor o superávit primário. Na institucionalidade financeira brasileira, isso é crucial para se entender a relação entre ele e o crescimento, ou contração econômica.

Comecemos pelo elementar: superávit primário é o excesso da receita fiscal sobre as despesas governamentais, fora juros. E é usado justamente para pagar os juros da dívida pública. Em termos macroeconômicos, portanto, realizar superávit primário significa retirar recursos da sociedade, ou do lado real da economia, para empregá-los no pagamento dos juros da dívida pública. A retirada de recursos da economia pelo setor público, através de impostos, tem um efeito contracionista, a não ser que esses recursos voltem para a economia sob a forma de gastos públicos de custeio e de investimento.

É aí que entra a peculiaridade do superávit primário brasileiro: a taxa de juros sobre a dívida pública é tão alta (continua alta mesmo depois das seguidas reduções pelo BC) que os receptores dos juros da dívida pública não têm qualquer estímulo em transformar em gastos correntes e investimentos os recursos oriundos do superávit primário que recebem do governo. Preferem manter o dinheiro aplicado em dívida pública. Com isso, os recursos do superávit primário retirados da economia sob a forma de imposto não retornam a eles sob a forma de demanda efetiva, de onde resulta a pressão contracionista sobre a economia.

Como se explica, então, o crescimento da economia de 2005 a 2008, antes da crise financeira mundial? Elementar, meu caro Watson: o governo Lula recebeu de Fernando Henrique uma crise cambial que elevou o valor do dólar a quase quatro dólares. Com isso, os exportadores tiveram um tremendo estímulo em suas vendas externas. Mesmo com o ciclo de valorização cambial que se seguiu, exportadores de commodities e de manufaturados se beneficiaram amplamente da política cambial. E os exportadores de commodities se beneficiaram adicionalmente na tremenda alta de importações da China e do entorno asiático.

Foram as exportações, não qualquer mágica especial da política econômica, que estiveram por trás do sucesso brasileiro até a crise. Isso, a despeito da realização de elevados superávits primários. A situação hoje é totalmente diferente: a taxa cambial, mesmo que se tenha desvalorizado nos últimos meses, continua desfavorável à exportação de manufaturados. E a recessão na Europa e queda no crescimento chinês criaram uma situação desfavorável às commodities. Nesse clima, não há grande perspectiva pra a retomada do investimento privado. E para o investimento público retomar, é fundamental a redução e até a eliminação do superávit primário.

Há um fato adicional a ser entendido: do ponto de vista macroeconômico, o conceito de superávit primário é um engodo. O que importa é o orçamento nominal, ou seja, o balanço entre a totalidade das receitas e das despesas (incluindo juros) públicas. Nesse sentido contábil, somos deficitários – o que é bom, em tese, para uma economia em recessão. Contudo, o orçamento nominal, como dito, está contaminado pelo pagamento de juros que não retornam ao circuito econômico. A eficácia do déficit nominal para o crescimento desaparece. Para que o déficit nominal tenha efeito sobre a demanda agregada, o setor público deve converter seu endividamento em gasto público, efetivando temporariamente o déficit nominal. Isso aconteceu em 2009 e 2010, tendo havido excelente resposta da economia. Entretanto, o fetiche do superávit primário continua a inibir nossas autoridades econômicas, que parece não terem entendido ainda a relação entre ele e a recessão.

(*) Economista e professor de Economia Internacional na UEPB, co-autor, junto com o matemático Francisco Antonio Doria, de “O Universo Neoliberal em Desencanto”, pela Civilização Brasileira. Esta coluna é publicada também no site Rumos do Brasil e, às terças, no jornal carioca Monitor Mercantil.

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