segunda-feira, 2 de julho de 2012

Crédito, um venenoso remédio



Diante do recorde de inadimplência, cabe a pergunta: os homens se tornaram mais escravos do que beneficiários das coisas?

01 de julho de 2012 | 3h 10
LEDA MARIA PAULANI; É PROFESSORA TITULAR DO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA FEA-USP, DA PÓS-GRADUAÇÃO EM ECONOMIA DO IPE/USP - O Estado de S.Paulo
LEDA MARIA PAULANI
Ao longo da semana, a imprensa trouxe várias matérias sobre o nível de inadimplência na economia brasileira hoje. O Departamento Econômico do Banco Central, por exemplo, informa que a inadimplência total está no maior patamar da série, iniciada em junho de 2000. Isso é reflexo não só da elevação porcentual do número de famílias que enfrentam problemas para honrar seus compromissos financeiros e creditícios, como do vigoroso crescimento do volume de crédito ofertado nos anos de 2009 e 2010. A ampliação do crédito, como se sabe, foi um dos instrumentos mais acionados pelo governo na busca de combater as consequências, para a economia brasileira, da crise financeira internacional deflagrada ao final de 2008.
Há muito que pensar sobre o que significa o crédito e a forma como vem sendo utilizado, tanto do ponto de vista de sua racionalidade econômica e funcionalidade num contexto de crise quanto, numa perspectiva mais ampla, sobre o significado de suas consequências do ponto de vista da sociedade que vai se construindo com seu auxílio.
Do ponto de vista da dinâmica que move a economia capitalista, a adoção desse tipo de medida é absolutamente racional e tende a ser eficiente no que concerne ao objetivo de erguer aquilo que os economistas chamam de demanda efetiva, incentivando com isso o crescimento do produto, do emprego e da renda. Suas consequências do ponto de vista dessa mesma dinâmica podem, no entanto, ser deletérias, se a ampliação do crédito "sair do controle" e começar a se alimentar de si mesma, como sói ocorrer com ativos emitidos a partir de operações desse tipo. Foi alguma coisa parecida com isso, aliás, que esteve na raiz da crise imobiliária de 2008 nos Estados Unidos, assentada na expansão do crédito e do endividamento das famílias, via hipotecas. O interessante aqui é salientar que esse crescimento por lá foi empurrado com mão forte pelo próprio governo americano, não só por meio de abrupta redução da taxa de juros como pelo incentivo direto, via peças publicitárias, para que os cidadãos americanos utilizassem seus cartões de crédito e se lembrassem que "imóvel é ativo real" e pode lastrear empréstimos. E tudo isso foi feito, a partir de 2001, visando a tirar a economia americana da crise em que mergulhara por conta do estouro da bolha das empresas "ponto com" na bolsa de Nova York.
O leitor atento já terá percebido que há aqui um processo marcado pela tautologia e pelo caráter autorreferencial, uma vez que o veneno que mergulha a economia no poço é idêntico ao remédio que se utiliza para resgatá-la. Isso é da natureza das operações de crédito e da frenética atividade de emissão de riqueza fictícia (bolhas) que elas podem gerar, mas mais que isso, na atual fase vivida pelo sistema capitalista em nível mundial, a formação de bolhas, longe de ter caráter episódico, passou a ter caráter praticamente permanente. Isso, evidentemente tornou mais agudas as contradições inerentes ao sistema econômico sob o qual vivemos.
E é sob essa chave que podemos pensar o crescimento desmesurado do crédito para além dos muros da economia, e veremos que as contradições não param por aí. A racionalidade econômica da sociedade moderna reza que, quanto mais consumo, mais produto, mais renda e mais emprego. Sem consumo, ou com consumo refreado, as expectativas de lucratividade se deprimem, os investimentos mínguam, o produto encolhe, contingentes enormes de pessoas são demitidas e têm suas vidas desestruturadas. É para evitar esse tipo de coisa, ou minorar esses fenômenos e as agruras que eles provocam, que os governos recorrem ao... crédito.
Portanto, em nossa sociedade, as coisas só andam bem no quesito econômico quando consumimos irrestritamente, por funestas que sejam as consequências desse consumo irrefreado sob todos os outros pontos de vista. Assim, se é absolutamente racional da perspectiva do andamento da economia ampliar o acesso ao automóvel particular, é completamente irracional fazê-lo do ponto de vista ambiental, da utilização dos recursos naturais, da sanidade do ambiente urbano, entre tantos outros aspectos que poderíamos citar. Mas isso não é privilégio do automóvel: qual é a lei que nos obriga a consumir muito mais vestuário do que seria necessário (a cada ano as coleções mudam!), muito mais engenhocas eletrônicas, muito mais bugigangas de toda ordem? Tudo isso não parece absolutamente irracional sob qualquer outra ótica que não a puramente econômica? A essas alturas alguém poderia observar que estamos esquecendo o elo principal de toda essa cadeia, aquilo que torna racional toda essa irracionalidade: todas essas coisas são produzidas para atender às necessidades humanas. Mas não há nesse contexto uma inversão? Hoje, na maior parte dos casos, em particular nas sociedades mais abastadas, os homens parecem mais escravos das coisas do que seus beneficiários. O caráter contraditório do crédito não é estranho a essa sociedade na qual, a depender do ângulo em que se olha, tudo parece de cabeça para baixo.

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