Diante do recorde de inadimplência, cabe a pergunta: os homens se tornaram mais escravos do que beneficiários das coisas?
01 de julho de 2012 | 3h 10
LEDA MARIA PAULANI; É
PROFESSORA TITULAR DO DEPARTAMENTO DE ECONOMIA DA FEA-USP, DA
PÓS-GRADUAÇÃO EM ECONOMIA DO IPE/USP - O Estado de S.Paulo
LEDA MARIA PAULANI
Ao longo da semana, a imprensa trouxe várias matérias sobre o nível
de inadimplência na economia brasileira hoje. O Departamento Econômico
do Banco Central, por exemplo, informa que a inadimplência total está no
maior patamar da série, iniciada em junho de 2000. Isso é reflexo não
só da elevação porcentual do número de famílias que enfrentam problemas
para honrar seus compromissos financeiros e creditícios, como do
vigoroso crescimento do volume de crédito ofertado nos anos de 2009 e
2010. A ampliação do crédito, como se sabe, foi um dos instrumentos mais
acionados pelo governo na busca de combater as consequências, para a
economia brasileira, da crise financeira internacional deflagrada ao
final de 2008.
Há muito que pensar sobre o que significa o crédito e a forma como
vem sendo utilizado, tanto do ponto de vista de sua racionalidade
econômica e funcionalidade num contexto de crise quanto, numa
perspectiva mais ampla, sobre o significado de suas consequências do
ponto de vista da sociedade que vai se construindo com seu auxílio.
Do ponto de vista da dinâmica que move a economia capitalista, a
adoção desse tipo de medida é absolutamente racional e tende a ser
eficiente no que concerne ao objetivo de erguer aquilo que os
economistas chamam de demanda efetiva, incentivando com isso o
crescimento do produto, do emprego e da renda. Suas consequências do
ponto de vista dessa mesma dinâmica podem, no entanto, ser deletérias,
se a ampliação do crédito "sair do controle" e começar a se alimentar de
si mesma, como sói ocorrer com ativos emitidos a partir de operações
desse tipo. Foi alguma coisa parecida com isso, aliás, que esteve na
raiz da crise imobiliária de 2008 nos Estados Unidos, assentada na
expansão do crédito e do endividamento das famílias, via hipotecas. O
interessante aqui é salientar que esse crescimento por lá foi empurrado
com mão forte pelo próprio governo americano, não só por meio de abrupta
redução da taxa de juros como pelo incentivo direto, via peças
publicitárias, para que os cidadãos americanos utilizassem seus cartões
de crédito e se lembrassem que "imóvel é ativo real" e pode lastrear
empréstimos. E tudo isso foi feito, a partir de 2001, visando a tirar a
economia americana da crise em que mergulhara por conta do estouro da
bolha das empresas "ponto com" na bolsa de Nova York.
O leitor atento já terá percebido que há aqui um processo marcado
pela tautologia e pelo caráter autorreferencial, uma vez que o veneno
que mergulha a economia no poço é idêntico ao remédio que se utiliza
para resgatá-la. Isso é da natureza das operações de crédito e da
frenética atividade de emissão de riqueza fictícia (bolhas) que elas
podem gerar, mas mais que isso, na atual fase vivida pelo sistema
capitalista em nível mundial, a formação de bolhas, longe de ter caráter
episódico, passou a ter caráter praticamente permanente. Isso,
evidentemente tornou mais agudas as contradições inerentes ao sistema
econômico sob o qual vivemos.
E é sob essa chave que podemos pensar o crescimento desmesurado do
crédito para além dos muros da economia, e veremos que as contradições
não param por aí. A racionalidade econômica da sociedade moderna reza
que, quanto mais consumo, mais produto, mais renda e mais emprego. Sem
consumo, ou com consumo refreado, as expectativas de lucratividade se
deprimem, os investimentos mínguam, o produto encolhe, contingentes
enormes de pessoas são demitidas e têm suas vidas desestruturadas. É
para evitar esse tipo de coisa, ou minorar esses fenômenos e as agruras
que eles provocam, que os governos recorrem ao... crédito.
Portanto, em nossa sociedade, as coisas só andam bem no quesito
econômico quando consumimos irrestritamente, por funestas que sejam as
consequências desse consumo irrefreado sob todos os outros pontos de
vista. Assim, se é absolutamente racional da perspectiva do andamento da
economia ampliar o acesso ao automóvel particular, é completamente
irracional fazê-lo do ponto de vista ambiental, da utilização dos
recursos naturais, da sanidade do ambiente urbano, entre tantos outros
aspectos que poderíamos citar. Mas isso não é privilégio do automóvel:
qual é a lei que nos obriga a consumir muito mais vestuário do que seria
necessário (a cada ano as coleções mudam!), muito mais engenhocas
eletrônicas, muito mais bugigangas de toda ordem? Tudo isso não parece
absolutamente irracional sob qualquer outra ótica que não a puramente
econômica? A essas alturas alguém poderia observar que estamos
esquecendo o elo principal de toda essa cadeia, aquilo que torna
racional toda essa irracionalidade: todas essas coisas são produzidas
para atender às necessidades humanas. Mas não há nesse contexto uma
inversão? Hoje, na maior parte dos casos, em particular nas sociedades
mais abastadas, os homens parecem mais escravos das coisas do que seus
beneficiários. O caráter contraditório do crédito não é estranho a essa
sociedade na qual, a depender do ângulo em que se olha, tudo parece de
cabeça para baixo.
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