terça-feira, 31 de julho de 2012

Anotações sobre a Argentina (II): Um país recuperando sua soberania


do site Carta Maior

O governo de Cristina Fernández de Kirchner acaba de decretar uma nova regulamentação para o setor do petróleo. O objetivo da nova legislação é tão claro como complexo: recuperar a soberania sobre um recurso natural estratégico. Vendida para a espanhola Repsol, a YPF diminuiu sua produção, os investimentos ficaram muito abaixo do necessário, e os dividendos pagos aos acionistas chegaram às nuvens. O artigo é de 

Data: 31/07/2012

Buenos Aires - O governo da presidente Cristina Fernández de Kirchner acaba de decretar uma nova regulamentação para o setor do petróleo. É parte da lei que renacionalizou – isso que os conservadores chamam de expropriou – a YPF, Yacimientos Petrolíferos Fiscales, a Petrobras dos argentinos que havia sido privatizada por Carlos Menem em um de seus mais exacerbados delírios neoliberais.

Vendida para a espanhola Repsol, a YPF diminuiu sua produção, os investimentos ficaram muito abaixo do necessário, e os dividendos pagos aos acionistas chegaram às nuvens. A Repsol sugou petróleo do subsolo argentino e sugou ainda mais a empresa que um dia havia sido patrimônio nacional.

O objetivo da nova legislação é tão claro como complexo: recuperar a soberania sobre um recurso natural estratégico. Retomar os tempos da capacidade de autoabastecimento, estabelecer uma certa harmonia entre todas as etapas do negócio do petróleo – da prospecção, exploração, produção até o transporte e distribuição – e cumprir metas que correspondam, em primeiro lugar, às necessidades do país.

Logo em seu primeiro artigo, o decreto que renacionalizou a YPF declara de interesse público nacional e prioritário alcançar o autoabastecimento de hidrocarburetos. Para chegar a esse ponto, diz o governo que a partir de agora as empresas de petróleo e energia devem apresentar seus planos e metas anuais. Caso não correspondam às metas estabelecidas pelo Estado, essas empresas deverão realizar os ajustes necessários.

Será posta atenção especial no que se refere a investimentos, e também às
metas das empresas concessionárias. Um ponto polêmico, e bastante vago, se refere à margem de lucro de cada companhia. O decreto menciona ‘margens razoáveis’. Resta ver se o que é razoável para o governo é considerado razoável para as multinacionais do ramo.

Trata-se, é verdade, de uma espécie intervenção do Estado no setor privado. Mas, sobretudo, trata-se da ação do Estado junto a uma atividade essencial para o país, uma forma de cobrar legalmente os investimentos prometidos – coisa que, até agora, ficava no campo nebuloso das promessas não cumpridas, enquanto o país sofria as consequências.

Acima de tudo, a nova legislação devolve, ao setor do petróleo, seu caráter de recurso estratégico – e, portanto, de interesse nacional. De patrimônio de todos os argentinos. Ao mesmo tempo, estabelece como objetivo prioritário alcançar o autoabastecimento. Para isso, cada etapa do negócio passa a ser estratégica.

Assim, o Estado passa a ter controle sobre o que for produzido, o que for destinado à exportação, o que for investido, ou seja, assume a regulamentação e o controle do resultado obtido por uma concessão pública sobre uma riqueza que é, ou deveria ser, de todos os argentinos.

Haverá um Plano Nacional de Investimentos, cujos eixos foram estabelecidos: forte incremento em toda a cadeia de produção, integração do capital público e privado, nacional e internacional, alianças estratégicas na exploração, produção e distribuição. Um ponto chama a atenção: essas alianças também terão como meta proteger o interesse dos consumidores. Prevalecerá, sempre, a meta do Estado, e não a de cada empresa ou grupo de empresas.

A gritaria já se faz ouvir, a começar pelo núcleo de oposição, o grupo que controla o jornal Clarín e a maior concentração de emissoras de rádio e televisão do país. Diz o Clarín que o decreto presidencial muda as regras do setor do petróleo, e tem razão. Resta saber quem era beneficiado pelas regras anteriores. O país, certamente não.

A decisão do governo de criar uma comissão que determinará metas e limites provocou ataques de urticária nos arautos liberais. Os especialistas de plantão saltaram à arena para advertir que, com tais regras, os investidores sumirão no horizonte. E sem investidores, adeus autoabastecimento. Não se menciona, é claro, a forte retração de investimentos observada nos últimos anos.

Tomando como base a nacionalização da YPF, surgem os alarmistas de sempre, brandindo o risco de uma estatização total do setor. De que desvão tiraram esse fantasma frouxo, ninguém sabe, ninguém diz.

O fato é que, se levada a cabo, o que a nova legislação provocará é o fim do direito de as petroleiras fazerem com o petróleo argentino o que quiserem.
Desde a privatização da YPF, o que as multinacionais quiseram e conseguiram foi tratar esse recurso estratégico a seu bel-prazer. O resultado foi uma conta de uns doze bilhões de dólares que a Argentina terá de enfrentar esse ano importando petróleo e gás.

Se for cumprida a risca, a nova legislação para o setor impedirá que as multinacionais continuem se apropriando de 90% das receitas geradas pelo petróleo argentino, e investindo as migalhas sobrantes.

Se levada a cabo, a nova legislação liquidará a soberania das multinacionais sobre esse recurso estratégico, e essa soberania – palavra amaldiçoada, conceito em desuso – retornará para o Estado argentino.

Que assim seja.

Nenhum comentário:

Postar um comentário