Em qualquer lugar do mundo haveria ao menos o
constrangimento por justificar a tortura ou culpar a mulher
pela agressão. Aqui não. É hora de admitir: somos um país de
calhordas
por Matheus
Pichonelli — publicado 30/03/2014 12:09, última modificação 31/03/2014 16:03
(CartaCapital)
O Brasil
decolou, dizia a publicação britânica. É um lugar seguro
para investimento, garantia a agência de risco. Somos um
povo que acredita sempre e não desiste nunca, falava a
propaganda oficial. Estamos prontos para os megaeventos,
juravam as entidades esportivas.
Talvez nenhuma dessas conclusões fosse totalmente
falsa. Mas a euforia em torno das nossas possibilidades como
nação transformou uma população esquecida no rodapé da América
Latina, a única a falar português em toda a região, em um país
de orgulho latente. O país do futuro parecia deixar a
prerrogativa para o passado: éramos o presente. Éramos o local
onde todos queriam estar, investir e conhecer. Vivíamos todos
na melhor cidade da América do Sul. E não havia melhor lugar
do mundo para se viver. Às nossas potencialidades turísticas e
hospitaleiras somava-se a consolidação de uma democracia
amadurecida e com direitos plenos, sociais, civis e políticos.
Nossa autoimagem nunca foi tão lustrada e nosso ego, tão
inflado. O avanço econômico dos últimos anos, o acesso a bens e
serviços e a satisfação captada em qualquer pesquisa de opinião
elevaram o nosso moral a tal ponto que de fato acreditamos que
nada mais poderíamos querer da vida a não ser uma casa própria e
uma tevê de tela grande para assistir ao Faustão aos domingos.
Essa sensação produziu uma percepção inflacionada em
praticamente todos os setores da sociedade, a começar por seus
mandatários.
De junho do ano passado para cá, exato um ano
antes da nossa festa de debutante chamada Copa do Mundo, os
cadáveres insepultos das nossas apostas começaram a gritar
debaixo de nossos tapetes. Estávamos nas fileiras das
principais economias do mundo, apontávamos os dedos na cara
das nações amigas e inimigas nos discursos de abertura da
Assembleia Geral da ONU, mas não tínhamos ônibus para chegar à
escola ou ao trabalho. Os que tínhamos eram caros e
ineficientes. O direito à cidade era um sapato pequeno demais
para nossas possibilidades, e fingimos que isto não era um
problema até que o calo explodiu. O resultado todo mundo se
lembra: as manifestações nos fizeram lembrar que a sensação de
paz era aparente, e que só não apanhávamos diariamente do
Estado, como em outros tempos, simplesmente porque não
estávamos na rua a exigir que o Estado funcionasse.
De lá para cá, o Brasil que parecia dormir da Belle
Èpoque acordou
em um terreno minado de sua herança colonial. E, longe do
esplendor que prometíamos entregar em 2014, o ano da nossa
consagração, nosso cartão de visitas transmitido mundo afora
eram cabeças cortadas em um presídio do Maranhão, jovens
incriminados por invadirem os templos do consumo em São Paulo,
um garoto preso ao poste com a trava de uma bicicleta e uma
mulher arrastada em um carro de polícia após ser baleada e
jogada, como um saco de batata, em um porta-malas na periferia
do Rio. Às vésperas da nossa grande festa, estes eram os casos
mais visíveis de um país que guardou seus esqueletos embaixo
do tapete enquanto estourava rojões e comemorava o fim da
monarquia, da escravidão e das ditaduras. Faltou (ou melhor,
não faltou) combinar com os monarcas, os escravistas e os
ditadores, todos muito bem representados em autarquias
loteadas, bancadas no Congresso, tribunais de Justiça,
tribunais de contas estaduais e tribunas da mídia, impressa ou
eletrônica, de onde reagem diariamente contra quem reage à
nossa exclusão ainda latente.
A consequência desse passado mal resolvido está
manifestada no cinismo de quem, cinquenta anos após a
instalação do período mais nefasto da história nacional, ainda
hoje cospe nas poucas brechas de direitos civis, sociais e
políticos que conseguimos costurar a duras penas. Esse
cinismo, misto de má fé com ignorância, pôde ser observado na
semana passada nas principais cidades do país, quando viúvos
do golpe de 64, muitos ainda imberbes, foram às ruas confessar
nossa falência moral e humana ao gritar: “queremos a volta dos
militares”.
Na mesma semana, um calhorda do regime se sentou
em frente aos torturados pelo regime e deu detalhes de como
fazia para se livrar dos corpos de quem se opôs à agora saudosa ditadura: cortava os
dedos, para limpar as digitais, quebrava dente por dente, para
evitar a identificação dos infelizes pela arcada dentária, e
jogava os corpos ao mar, com as barrigas perfuradas para
afundarem em paz. Estava arrependido? "Não. Se o sujeito
estivesse em casa com a mulher e os filhos nada disso teria
acontecido."
Quando alguém grita para o retorno deste período,
em que a ordem era imposta no grito ou no esquartejamento,
grita contra a própria incapacidade: não sabemos nos livrar da
água suja da banheira do bebê sem jogar a banheira, a água e o
bebê junto. Para eles, o mal necessário não é uma condição
temporária; para eles, o mal é sempre necessário. Por
isso assumem, alto e bom som, que, em troca de uma liberdade
mal ajambrada, aceitam viver em cativeiro.
Às vésperas do aniversário do golpe, estas
manifestações seriam tratadas como um transtorno relativo à
Síndrome de Estocolmo, quando a vítima passa a criar afeição
pelo sequestrador. Mas os calhordas que hoje gritam contra a
libertinagem do voto livre, que na cabeça dele produz
resultados disformes graças à ignorância dos estados menos
abastados, comprados a crédito fácil e política distributiva,
não sofreram as consequências diretas do golpe, apenas a
indireta. Não se sabe se são calhordas porque burros ou burros
porque calhordas, mas formam a base de uma mesma tragédia.
Essa tragédia, criada no autoritarismo, apta a obedecer e
nunca a pensar, produz estragos em todos os campos. Para ele,
o mundo é injusto por haver direitos demais, e não porque ele
nos foram, e são, negados por tanto tempo.
Por isso os calhordas pedem, em coro, para que
essas liberdades sejam cassadas em nome de uma miragem: a
ordem de seus antepassados. Para eles, há roubo nas ruas
porque há liberdade nas ruas, e não porque não somos capaz de
ressocializar nem a nossa indigência, quanto mais nossos
presídios. Para eles, há política afirmativa porque a maioria
da população quer privilégio, e não porque ela jamais teve
acesso a educação básica. Para eles, há corrupção porque
existe voto, e não porque votamos mal e o sistema de
representação pede aperfeiçoamentos. Para eles, é sempre mais
fácil jogar a água suja da banheira com o bebê dentro.
É mais ou menos o raciocínio que leva a sustentar,
em pleno 2014, que a vítima do estupro é culpada pelo estupro.
Ou que ela merece ser estuprada porque não sabe se comportar.
Porque aceitamos a ideia de que nossos instintos são cláusula
pétrea na
formação do nosso caráter, e tudo em volta é tentação ou
motivo para o uso da força. E que o crime reside em quem
desperta esses instintos, e não em quem é simplesmente incapaz
de controlá-lo. A pesquisa do Ipea sobre a percepção da
violência contra a mulher escancarou, em números, o que era
verbalizado em todos os cantos do Brasil real, seja uma linha
de trem à meia-noite, seja em uma mesa de jantar entre pessoas
de bem. Se não sabemos votar, melhor cassar o direito ao voto.
Se não sabemos nos comportar em um regime de exceção, apaga-se, com brocas e parafusos, o direito à vida do
meliante. Se não sabemos nos comportar diante de uma mulher de
saia, melhor banir a saia. Em todos esses casos, a vítima é
sempre a culpada por provocar a fúria do seu agressor.
Há 50 anos o cinismo brasileiro vencia a esperança
no muque. Passada a ditadura, acreditamos que o caminho
natural das coisas levaria a esperança a vencer o medo, mas a
vitória foi só parcial: não eliminamos a ignorância, não
atacamos os discursos legitimadores da violência, não nos
precavemos contra as formas visíveis e invisíveis de agressão.
Hoje todos nós temos o direito ao voto, mas muitos de nós,
muito além dos rostos patéticos da segunda edição da Marcha da
Família pró-golpe contra a Liberdade, admitimos à boca pequena
o nosso desconforto com o sistema representativo que permite
ao pobre ou ao morador de outras paragens votarem em quem eles
querem, e não em quem nós queremos. Hoje temos uma mulher na
Presidência, e muitas em chefias de companhias, mas ai delas se elas
não se vestirem adequadamente. Hoje temos institutos capazes
de captar o raciocínio naturalizado de um país de calhordas,
mas há gente disposta a desconfiar do óbvio e dizer que uma
mulher de saia é tão descuidada como um rico a portar um Rolex
em área perigosa. Em um país de calhordas, passa a ser
“perfeitamente compreensível” a confusão masculina entre
relógios e vaginas: é tudo posse, e não há nada ao redor de um
ou de outro. Nada é humano o suficiente a ponto de provocar a
mínima indignação, a não ser o que tange ao bolso.
E porque não levamos suficientemente a sério a
ideia de que a desigualdade extrema nos levaria a uma
indigência extrema, e acreditamos que as soluções negociadas
fariam com que as placas tectônicas se acomodassem à
superfície normalmente, agimos como se os avanços obtidos nas
últimas décadas fossem suficientes para nos conceder um grau
de civilização similar ao grau de investimento aferido anos
atrás pelas agências de risco. As decapitações em Pedrinhas, a
morte de Claudia da Silva Ferreira, a exposição pública de um
jovem amarrado ao poste no Rio e os números sobre a
vulnerabilidade feminina mostram que este avanço civilizatório
chegou a um limite. O limite da origem, da cor e do sexo.
Após a divulgação da pesquisa, poucas,
pouquíssimas pessoas decidiram se mobilizar e tentar começar a
mudar a história a partir do discurso. Foram atacadas por
hackers e chamadas de feminazis pelos mesmos calhordas que
sobreviveram impunes a todos os regimes, do monarquista ao
republicano, do escravista ao assalariado, do regime de
exceção ao regime democrático. Em todos eles uma estrutura
elementar ficou de pé: a estrutura da desigualdade que coloca
diariamente em risco todos os direitos formalmente adquiridos.
Como o de ser livre para ir e vir sem agredido. Enquanto esta
estrutura continuar em pé, civilização alguma poderá se dizer
consolidada, mas apenas tolerada por quem ainda tem o domínio
sobre todos os campos, inclusive o do corpo. Caso contrário, a
barbárie será pura e simplesmente naturalizada. É isso o que
governo nenhum até agora conseguiu detonar na base. Ou então
não haveria tantos calhordas empregados a negar em público a
violência contra a mulher, a exclusão contra os pobres, a
truculência de uma ditadura que de revolução não teve nem a
sombra.
O silêncio sobre todos os abusos engolidos
diariamente é o nosso último e mais gritante cartão-de-visitas
em ano de Copa do Mundo. É ele que permite balançar a cabeça e
seguir a vida normalmente como se nós não fizéssemos parte
desta tragédia pelo discurso, pela ação ou pela indiferença.
Falhamos, como humanos, cada vez que colocamos no
tapete a tragédia que fingimos ignorar. A pesquisa do Ipea
sobre a percepção da violência contra a mulher era, ou é, uma
das raras oportunidades de lavar ao sol esse tapete. Mas as
forças do atraso, como sempre, preferem minimizar. O país dos
calhordas agradece.
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