Por Mino Carta, na revista CartaCapital:
Afirmo com absoluta tranquilidade que procurar deslizes morais na
minha carreira de jornalista é como se Moisés pretendesse separar as
águas do Mar Vermelho com uma britadeira. Muitos cometi, e se quiserem
pecados, como indivíduo, e me perseguem até hoje. Como profissional de
imprensa, não.
Há, porém, pretensos colegas
que não desistem dessa busca, obsessivamente, por razões insondáveis. E
nem falemos dos esforços despendidos para apontar em CartaCapital uma
publicação que sobrevive por obra da publicidade governista. A
preocupação dos porta-vozes da casa-grande em relação a este semanário
nos valoriza, está claro, mas falo aqui das aleivosias assacadas contra a
minha modesta pessoa.
Foram inúmeras. Recordo, entre 1970 e
1974, Amaral Neto, no vídeo da Globo, e Lenildo Tabosa Pessoa, em
matéria paga no Estadão, unidos na acusação que me situava como agente,
ao mesmo tempo, do Kremlin e da Máfia siciliana. É apenas um exemplo,
embora retumbante. Não faz muito tempo, um dos meus acusadores
contumazes soletrou que, em 1964, quando eu dirigia a revista Quatro
Rodas, organizei uma festa na redação para celebrar o golpe civil e
militar. Entre atônito e perplexo, encaro a revelação como sinal de uma
forte vocação ficcional, de resto nada incomum nos domínios da mídia
nativa.
A redação de Quatro Rodas, pequena e valente, contava com
repórteres da competência de José Hamilton Ribeiro e Paulo Patarra, e,
como diretor de Arte, com George Duque Estrada. Não se tratava de
empedernidos reacionários. À tal festa, além do mais, faltaria quórum. O
redator-chefe, Vitor Antonio Gouveia, este sim, tinha pendores
direitistas, e eu não tive maior dificuldade em sentir que, a depender
dele, perpetrado o golpe, assistiríamos a uma caçada às bruxas.
Procurei
o patrão, Victor Civita, e disse a ele que qualquer gênero de ação
punitiva teria de passar sobre o meu cadáver. Mais, que a ação seria a
minha, preventiva. Foi Gouveia o primeiro jornalista que despedi, depois
dele só foram mais três ao longo de toda a minha vida de diretor de
redações.
O último dos detratores escreveu faz escassos dias, ao
retomar as acusações de outro do mesmo naipe, que ninguém, senão eu,
deitou loas tão desbragadas a favor do ditador Garrastazu Médici e da
famigerada Oban, que mais tarde se tornaria DOI-Codi, masmorra dos
torturadores. Deve ser por causa disso que Veja, o semanário que dirigia
naquela quadra plúmbea, mereceu a censura feroz da ditadura, bem ao
contrário do jornal onde assina suas bobagens o acusador em questão.
Deve
ser por causa disso que Ernesto Geisel, por intermédio de Armando
Falcão, seu ministro da Justiça (justiça?), exigiu minha cabeça para
autorizar um empréstimo de 50 milhões de dólares, pela Caixa Econômica
Federal, à Editora Abril. Karlos Rischbieter, então presidente da CEF,
contou essa história no seu livro de memórias, publicado há poucos anos,
sem omitir a menção ao ódio que o ditador me devotava. Muita honra para
um modesto escriba.
Antes de repetir o fim de São João Batista,
eu me demiti: não queria um único centavo dos donos da Abril, o que se
daria se fosse demitido. Houve quem sugerisse que fazia jus a uma justa
comissão sobre o empréstimo enfim recebido pela Editora. Com a devida e
exaltante ironia. Mandei-me, e se foi também a censura, obviamente.
Sobrou um belo enredo para impressionar meus netos. Óbvio, também, que
nunca escrevi a favor da Oban.
Quanto a Garrastazu Médici, convém
relembrar que algumas vezes, em anos de Veja, pareceu conveniente
adotar a retórica golpista para ludibriar seus autores e censores.
Explico com um exemplo. Quando o terceiro ditador foi empossado, saiu-se
com um discurso pretensamente poético, em que se declarava vindo do
minuano, o indomável vento dos Pampas. Ghost-writer, o coronel Otavio
Costa, que sete anos após, promovido a general, proibiria minha
participação em um debate sobre jornalismo organizado por Ruth Escobar
no seu teatro paulistano.
Geisel mandava e havia quem executasse a
ordem suprema. Estávamos em 1976. Três meses antes do debate, Armando
Falcão proibira um programa de televisão que na Tupi me escalava como
âncora, programa quinzenal razoavelmente anódino, do qual já haviam sido
gravados dois capítulos. No dia da estreia, Falcão bicou seu niet.
Volto
a 1969, quando em Veja decidimos cometer uma ousadia. O plural não é
majestático. Havia um colegiado para reunir os dois redatores-chefes, os
editores e o chefe de reportagem, e debater abertamente os rumos a
serem tomados. Muitos dos participantes estão vivos, felizmente. Uma
equipe de oito repórteres, incluído o chefe Raimundo Pereira,
desenvolvera um trabalho capilar sobre tortura. Tratava-se do
levantamento completo, detalhadíssimo, de três casos de assassínio, e de
mais 150, arrolados um a um, juntamente com as informações principais.
Trabalho encerrado, pareceu-nos ter chegado a hora de tentar publicá-lo
nas barbas “do homem que veio do minuano”.
Tratado, porém, de
forma que pretendíamos astuta, o terceiro ditador. Baseados no tom
moderado do seu pronunciamento de recém-empossado, logo saímos com uma
capa de chamada positiva, “O presidente não admite tortura”. Antes que
uma informação, era ilação audaciosa. Feliz, no entanto, estranhamente: a
mídia desta feita veio atrás da gente, os jornais falaram de tortura
dias a fio.
Cresceu nosso ânimo. Graças a uma condição
apresentada por mim para aceitar a direção da redação de Veja, eu gozava
de notável autonomia: os donos da casa não tinham acesso à pauta e
saberiam de cada edição depois da publicação, na manhã das segundas. Na
noite de sexta-feira daquela semana agitada, recebemos a informação de
que estava proibida qualquer referência às torturas. O fechamento então
dava-se aos sábados.
Já passara das 22 horas, mandei a
telefonista cortar de vez as comunicações da Abril para impedir que um
chamado repentino obstasse nosso plano. A revista foi às bancas, e lá
foi apreendida em todo o País. Não era um fato novo, repetira-se várias
vezes desde uma edição de outubro de 1968, a de número 5, que trazia na
capa a prisão das centenas de participantes do congresso da UNE em
Ibiúna. Acrescento que, como diretor de Veja, tive de prestar cerca de
40 depoimentos aos esbirros da Polícia Federal e dois anos após a
publicação da capa sobre tortura passei mais de uma hora à frente de um
inquisidor de luxo e mestre em tortura, o delegado Sérgio Paranhos
Fleury.
Encerrado o capítulo Veja, para levar adiante minha vida
de jornalista tive de inventar meus empregos, dos 42 aos atuais 80 anos.
Não me queixo, pelo contrário, agradeço aos fados. O último detrator
conta com espaço nas páginas de um jornal que no momento faz mea-culpa
por ter apoiado o golpe e o regime de exceção por algum tempo para
assumir, alega, postura oposta ao meio do período ditatorial. Será por
causa desta destemida guinada que em setembro de 1977 Claudio Abramo,
finalmente chamado três anos antes a dirigir o jornal para lhe conferir a
qualidade até então letra morta, foi afastado da direção?
Valia
na ocasião agradar ao general Silvio Frota, candidato à sucessão de
Geisel, e seu cabo eleitoral, Hugo Abreu. Queriam uma Folha mais
submissa. Octavio Frias de Oliveira, com quem sempre mantive ótimas
relações e para quem trabalhei como colaborador em duas diversas
oportunidades, apostava na ascensão de Frota, o qual foi demitido de
ministro do Exército exatos 26 dias após o afastamento de Abramo. Quanto
ao filho do fundador, Otavinho, em data recente defendeu a ideia de que
foi ditabranda um regime disposto a assassinar e torturar.
De
minha parte, estou farto de ataques: a partir de agora, processarei os
caluniadores. Ao cabo, evoco o mito empolgante de Perseu, aquele que
enfrentou a Górgona, com sua cabeleira de serpentes, víboras creio eu.
Bastava encarar o monstro para ficar de pedra. Perseu, coberto pelo
escudo, voltou-lhe a outra face sabiamente polida na direção da Górgona,
e esta, espelhada inexoravelmente, padeceu os efeitos de sua própria
maldição. Não pretendo ser Perseu, e os meus detratores não me parecem
qualificados para a tarefa de petrificar quem quer que seja. Mas às
víboras da Górgona talvez se assemelhem. Sugiro, de todo o modo, que se
mirem no espelho de suas próprias medíocres vidas de recalcados
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