Aconteça o que acontecer, se inicia uma
nova etapa nos EUA em que a população, e muito em particular as classes
populares, estão fartas das guerras e intervenções do governo
norte-americano para defender o que Martin Luther King chamava o “rol
imperial” da Corporate Class, que está perdendo muito rapidamente seu
apoio popular. Por Vicenç Navarro
Vicenç Navarro*
Data: 13/09/2013
Para entender o que está acontecendo na Síria
temos que entender o que está acontecendo nos EUA, o que não é fácil na
Espanha devido à insuficiente e/ou parcial cobertura por parte dos meios
de informação espanhóis (com algumas exceções) da realidade daquele
país. Hoje os EUA estão vivendo um momento de grandes conflitos cuja
resolução marcará o país por muitos anos. Por um lado, estamos vendo a
aplicação de algumas políticas de cortes de gasto público sem
precedentes, cortes que estão se justificando pela suposta necessidade
de reduzir o que se considera um excessivo nível de déficit público. A
fim de alcançar a diminuição desse déficit, estão cortando de uma
maneira radical serviços do escassamente financiado Estado de Bem-estar
estadunidense, afetando especialmente os serviços e transferências
públicas às populações mais vulneráveis, tais como o programa Food
Stamps (vale alimentos) que os Estados provém em bases discricionais e
assistenciais à população pobre que não tem fundos para comprar
alimentos e que o próprio governo federal (seu Departamento de
Agricultura) define como “food insecure”, que quer dizer, como afirma em
linguagem mais acessível o The New York Times, “pessoas que têm fome”
(“On the Edge of Poverty; at the Center of a Debate” 05.09.13. p. A3), e
que são 49 milhões de cidadãos e residentes estadunidenses que
representam nada menos que 16,4% da população dos EUA (ver o relatório
Food Insecurity Survey . Department of Agriculture. US Federal Government. 2012).
Por outro lado, o Presidente Obama está pedindo a aprovação do Congresso dos EUA para levar a cabo um ato de intervenção militar contra o governo da Síria, aduzindo que dito governo cometeu um ato (a utilização de armas químicas em um conflito armado) que deveria ser penalizado. Não sancioná-lo implicaria - segundo o Presidente Obama - uma perda de credibilidade, não apenas dos EUA, mas da comunidade internacional, pois tanto o governo dos EUA como a comunidade internacional haviam se comprometido em vários tratados internacionais a não autorizar tais armas nas frentes de batalha. Na recente reunião do G-20, o Presidente Obama afirmou que “gasear gente inocente com armas químicas, inclusive contra crianças, é algo que nós não fazemos e que não devemos permitir” (Financial Times, 7 de setembro de 2013, p. 4)
Que credibilidade têm os argumentos pró-bombardeio?
Tais argumentos aduzidos pela Administração Obama, entretanto, têm escassa credibilidade. Na verdade, o governo federal dos EUA foi um dos governos que utilizou com mais frequência armamento químico (e biológico) nas frentes de batalha. O caso mais notório foi a utilização, por parte das Forças Armadas dos EUA no Vietnã, Laos e Camboja, de 45 milhões de litros do Agente Laranja (uma dioxina altamente tóxica), afetando mais de meio milhão de pessoas (matando-as ou ferindo-as e deformando-as) entre as populações bombardeadas no Vietnã, Camboja e Laos. Ainda hoje, e como sequela daqueles bombardeios, existe um grande número de nascimentos de crianças com enormes deformidades entre as populações daqueles países expostas a tal arma química, que continua no solo de mais de quatro milhões de acres desses territórios.
O governo federal dos EUA utilizou também, além de armas químicas, armas bacteriológicas (também proibidas nos tratados internacionais) contra vários países na América Latina (incluindo Cuba, causa da epidemia de dengue em 1981, que matou 188 pessoas, incluindo 88 crianças). E inclusive, mais recentemente, o caso mais notório de utilização massiva de armas químicas foi o que levou a cabo o governo iraquiano (liderado então por Saddam Hussein) contra o Irã, utilização com pleno conhecimento e apoio do governo federal dos EUA, que apoiava ao ditador iraquiano naquele conflito (ver Jeffrey St. Clair “Germ War: The U.S. Record”, CounterPunch. 03.09.13). E o mesmo governo federal dos EUA tem, entre seus aliados, alguns dos maiores violadores de direitos humanos hoje no mundo, tais como a Arábia Saudita, que tem um enorme arsenal de armas químicas que, segundo várias cadeias de informação, foram fornecidas aos extremistas islâmicos, na oposição ao ditador sírio (ver Eric Draitser “Debunking Obama’s Chemical Weapons Case Against the Syrian Government” CounterPunch Sept.02, 2013), os quais possuem esse tipo de armas como indicou também Carla del Ponte, membro da Comissão Internacional de Investigação das Nações Unidas para investigar casos anteriores de utilização de armas químicas na Síria, que afirmou que existiu a posse e utilização de tais armas no passado pelos rebeldes (ver David Lindorff “While House Document Proving Syria’s Guilt does not pass Small text” CounterPunch, Sep.3, 2013). Na verdade, ditas armas foram utilizadas pelos dois lados do conflito na Síria.
Nem precisa dizer que a utilização de tais armas deve ser denunciada e condenada, sem ser seletivos e discriminatórios em tal denúncia, como é o caso notório de Bernard Henri Levi, o filósofo francês que adquiriu grande notoriedade por seu oportunismo e seletiva denúncia da utilização dessas armas, sem nunca haver feito a denúncia de sua utilização por parte dos estados estadunidense ou europeus, incluindo o estado francês (tal como afirma Diana Johnstone em seu artigo “France’s Philosopher Bombardier: No War for Bernard Henri Levi”, Counter Punch, Sept. 3. 2013).
Por que agora e não antes?
Que tem que penalizar a utilização desse armamento em qualquer parte do mundo e por qualquer estado é um ponto sobre o qual existe bastante acordo internacional. Mas, por que agora e não antes? E por que os EUA e não outros países? E, por que não fazê-lo através de outros meios não militares ou inclusive, em caso de que fossem militares por que o governo federal dos EUA e não outros? Para responder essas perguntas, tem que entender, como disse antes, a situação dos EUA e dos momentos históricos que este país está vivendo, o que raramente se faz nos meios de comunicação. Vejamos os dados.
Hoje os EUA estão em um momento de profunda crise, tendo acentuado ainda mais a deslegitimação do establishment financeiro, econômico, e político daquele país a partir do período de imposição de medidas sumamente impopulares sem nenhum mandato popular. A enorme influência do establishment financeiro e econômico (o que nos EUA se chama Corporate Class) na vida política e midiática do país e o impacto sumamente impopular das políticas públicas realizadas pelas instituições chamadas representativas criaram um repúdio generalizado à esses establishments. Hoje, desde a Seguridade Social (o sistema de pensões públicas) até os serviços públicos do Estado do Bem-estar estão em perigo. Nunca antes o Estado do Bem-estar estadunidense havia estado tão ameaçado como agora (uma situação que também ocorre na União Europeia e que alcança dimensões extremas na Espanha). Os cortes nas áreas sociais são enormes e, tal como indiquei anteriormente, o Congresso acaba de aprovar um corte de 40 bilhões de dólares ao programa Food Stamps, que alimenta quase uma de cada três crianças nos EUA (20 milhões de crianças assistidas). Esses cortes vão acompanhados de intervenções públicas que beneficiam enormemente a Corporate Class e as rendas superiores do país, tendo alcançado níveis de desigualdade sem precedentes desde princípios do século XX, no início da Grande Depressão. Hoje, uma pessoa do decil superior de renda nos EUA vive quinze anos a mais que uma pessoa do decil inferior (na Espanha são dez anos e na média da União Europeia dos Quinze são sete anos).
A Corporate Class e seu complexo militar industrial
Um eixo central da Corporate Class, que é enormemente poderoso (tal como já alertou em seu dia o General Eisenhower, mais tarde Presidente do país), é o complexo militar industrial. A voz mais crítica desse complexo foi Martin Luther King, que o havia denunciado como o grande defensor da Corporate Class dos EUA e que, para realizar sua missão, consumia enormes recursos a custa de empobrecer o escassamente financiado estado de bem-estar do país. Consumiu 20% do orçamento federal (718 bilhões de dólares), dos quais 159 bilhões foram gastos nas guerras do Iraque e Afeganistão (esta cifra não inclui os benefícios sociais dos veteranos das guerras e outros serviços militares, cifra que alcança outros 127 bilhões). O governo federal dos EUA gasta mais em suas Forças Armadas que a soma em gastos militares dos 13 países que lhe seguem depois, por nível de gasto militar. É um investimento enorme, que se deve ao poder da indústria armamentista. Mais de 350 bilhões de dólares foram a contratos por equipamento e manutenção de material militar consumido no Iraque e no Afeganistão (estes dados procedem de Brad Plumer, “America’s staggering Defense Budget in Charts”, The Washingto n Post January 7, 2013). É um gasto público enorme que configura a economia dos EUA e grande parte de suas políticas públicas. Na verdade (segundo os cálculos de Dean Baker e David Rosnick, do Center for Economic and Policy Research de Washington), mais de 26% do déficit público do estado federal se deve ao gasto nas intervenções militares do Afeganistão e Iraque, assim como o pagamento de outras intervenções que estiveram acontecendo a uma frequência de um conflito a cada três anos nos últimos trinta anos.
E esse grande poder deriva de sua função que é a de defender global e mundialmente os interesses primordiais da Corporate Class daquele país. Todo esse gasto público se realiza as custas de um enorme sacrifício do bem-estar das próprias classes populares dos EUA (como denunciou Martin Luther King, tal como indico em meu artigo “Lo que no se dijo sobre Martin Luther King”, Público, 3 de setembro de 2013). Não existe plena consciência fora dos EUA de que as classes populares deste país são as primeiras vítimas de tal “sistema imperial”, tal e como o definiu Martin Luther King. Hoje, ao mesmo tempo em que se estão reduzindo os fundos alimentares para a população pobre, se estão fazendo preparativos militares que custarão mais de 1 bilhão de dólares.
A enorme crise de legitimidade do sistema político estadunidense
O enorme descrédito da Corporate Class, de suas instituições representativas (a maioria de fundos que os políticos gastam em suas campanhas, procedem de membros de tal classe social, situação legalizada pela Corte Suprema dos EUA), acentuado pela grande crise atual, onde o padrão de vida das famílias estadunidenses vem diminuindo nos últimos trinta anos (e muito marcadamente nestes anos de crises), explica a crescente insatisfação da população com as instituições políticas. Já antes de que aparecesse a Síria no horizonte, o Stimson Center publicou, em maio, uma pesquisa na qual se pedia a opinião dos cidadãos sobre sua percepção e desejos sobre o gasto militar. A grande maioria dos cidadãos queria uma redução radical do gasto militar muito mais acentuada que qualquer proposta feita no Congresso ou pela Casa Branca. Na verdade, já em resposta a este enfado generalizado e saturação de guerras, a Administração Obama havia feito propostas (consideradas muito insuficientes pela maioria da população) de baixar tal gasto, havendo-o reduzido nos últimos anos.
O bombardeio da Síria, entretanto, custará, segundo cálculos iniciais, mais de 1 bilhão de dólares (o qual incrementou imediatamente, tal como informou o Boston Herald de 31 Agosto 2013), o valor das ações – que estavam baixando – das empresas produtoras de material militar tais como General Dynamics, Boeing, BAE Systems, Raytheon e muitas outras). Enquanto isso, como indiquei no parágrafo anterior, o próprio governo federal está cortando fundos para alimentar crianças que passam fome.
A chamada à intervenção militar na Síria
O argumento utilizado pela Administração Obama para bombardear a Síria – a penalização ao governo Asaad pelo emprego de armas químicas - carece, como disse antes, de credibilidade, pois tais armas foram utilizadas anteriormente no conflito sírio por ambas as partes, tal como documentou a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas em sua investigação da situação na Síria assim como em muitos outros conflitos levados a cabo pelos EUA (como no Vietnã), ou por seus aliados, como Israel em 2009, em sua repressão da população palestina de Gaza (tal como denunciou a Anistia Internacional e afirmou Chris Hedges, chefe do escritório do Middle East do The New York Times (ver a entrevista em meu blog www.vnavarro.org)), ou, como afirmei anteriormente, pelos aliados dos EUA, como o então aliado Saddam Hussein em sua luta contra o Irã em 1988. Na verdade, a história dos EUA está cheia de casos de utilização de armas biológicas e químicas, tanto por seu governo como por seus aliados.
Qual é, então, o motivo real para iniciar tal bombardeio da Síria? Há vários motivos, todos eles relacionados com a situação nos EUA. A perda de legitimidade do establishment daquele país é enorme e se encontra em uma situação muito defensiva, encurralada. Sente que tem que fazer algo, tanto no interior como no exterior do país. O Oriente Médio (de enorme importância estratégica para o establishment estadunidense e europeu) está em uma situação vulcânica, na qual os EUA está perdendo o controle. Hoje essa zona do mundo é um vulcão que está explodindo.
Para aquele establishment dos EUA e europeu, Irã é o centro do mal, que quer dizer que pode afetar mais negativamente seus interesses. A aliança Síria-Irã, apoiada pela Rússia, representa uma ameaça à hegemonia dos EUA naquela zona. E ultimamente pareceria que o ditador Asaad, em sua luta contra os rebeldes, poderia prevalecer e ganhar naquele conflito. Daí que se tente agora aproveitar o incidente das armas químicas para atacar e debilitar tal governo. Esse é o objetivo da intervenção: tentar recuperar a hegemonia que o governo federal dos EUA (e da Europa) está perdendo, tanto no exterior como no interior.
E uma das primeiras mobilizações contra essa recuperação do domínio procede precisamente das classes populares dos EUA. Para o Presidente Obama, tal decisão de bombardear a Síria significará um enorme custo político. Como muito bem afirmou aquele que foi Ministro de Trabalho do governo Clinton, Robert Reich (ver Robert Reich “Obama’s Political Capital And the Slippery Stone of Syria”), tal intervenção, que lhe cairia muito bem ao establishment estadunidense para desviar a atenção do país ao exterior, (em um momento de grandes tensões dentro do país), lhe debilitará enormemente, independentemente de que seja ou não aprovada pelo Congresso dos EUA (uma instituição que só goza de 15% de apoio popular, precisamente por perceber-se, por parte da população, estar instrumentalizada pela Corporate America).
É provável que a Câmara Baixa do Congresso (a menos afastada da população) vote contra devido ao enorme enfado que a população tem mostrado à maioria de congressistas em seus distritos. Tem sido precisamente as bases do Partido Democrata (o movimento sindical, o movimento de direitos civis, o movimento feminista e o ecológico progressista) as que vem se opondo mais a tal bombardeio. E hoje, a mobilização popular contra tal intervenção (que está bombardeando o Congresso com chamadas e mensagens contra a intervenção militar) está generalizada. Mas o establishment estadunidense está mobilizando-se através dos meios de informação para que o Congresso autorize tal intervenção. Hoje, a população recebe constantemente mensagens que a credibilidade do país está em jogo, indicando que o repúdio se lerá como uma negação por parte do povo estadunidense a continuar liderando as forças que representam a democracia e a liberdade, uma mensagem que se repetiu continuamente para defender ditaduras e regimes feudais (e que vão da Arábia Saudita e Qatar à Honduras e antes Haiti) que estiveram oprimindo precisamente a liberdade e a democracia.
Aconteça o que acontecer, se inicia uma nova etapa nos EUA (inclusive em caso de que a Câmara Baixa apoiasse a intervenção), em que a população, e muito em particular as classes populares, estão fartas das guerras e intervenções do governo dos EUA para defender o que Martin Luther King chamava o “rol imperial” da Corporate Class, que está perdendo muito rapidamente seu apoio popular. E esse é o ponto chave que marcará claramente uma mudança importante na história dos EUA (e acho que também do mundo).
*Catedrático de Políticas Públicas, Universidade Pompeu Fabra e Professor de Public Policy na The Johns Hopkins University. Coluna “Pensamiento Crítico” no jornal PÚBLICO, 10 de setembro de 2013
Tradução: Liborio Júnior
Por outro lado, o Presidente Obama está pedindo a aprovação do Congresso dos EUA para levar a cabo um ato de intervenção militar contra o governo da Síria, aduzindo que dito governo cometeu um ato (a utilização de armas químicas em um conflito armado) que deveria ser penalizado. Não sancioná-lo implicaria - segundo o Presidente Obama - uma perda de credibilidade, não apenas dos EUA, mas da comunidade internacional, pois tanto o governo dos EUA como a comunidade internacional haviam se comprometido em vários tratados internacionais a não autorizar tais armas nas frentes de batalha. Na recente reunião do G-20, o Presidente Obama afirmou que “gasear gente inocente com armas químicas, inclusive contra crianças, é algo que nós não fazemos e que não devemos permitir” (Financial Times, 7 de setembro de 2013, p. 4)
Que credibilidade têm os argumentos pró-bombardeio?
Tais argumentos aduzidos pela Administração Obama, entretanto, têm escassa credibilidade. Na verdade, o governo federal dos EUA foi um dos governos que utilizou com mais frequência armamento químico (e biológico) nas frentes de batalha. O caso mais notório foi a utilização, por parte das Forças Armadas dos EUA no Vietnã, Laos e Camboja, de 45 milhões de litros do Agente Laranja (uma dioxina altamente tóxica), afetando mais de meio milhão de pessoas (matando-as ou ferindo-as e deformando-as) entre as populações bombardeadas no Vietnã, Camboja e Laos. Ainda hoje, e como sequela daqueles bombardeios, existe um grande número de nascimentos de crianças com enormes deformidades entre as populações daqueles países expostas a tal arma química, que continua no solo de mais de quatro milhões de acres desses territórios.
O governo federal dos EUA utilizou também, além de armas químicas, armas bacteriológicas (também proibidas nos tratados internacionais) contra vários países na América Latina (incluindo Cuba, causa da epidemia de dengue em 1981, que matou 188 pessoas, incluindo 88 crianças). E inclusive, mais recentemente, o caso mais notório de utilização massiva de armas químicas foi o que levou a cabo o governo iraquiano (liderado então por Saddam Hussein) contra o Irã, utilização com pleno conhecimento e apoio do governo federal dos EUA, que apoiava ao ditador iraquiano naquele conflito (ver Jeffrey St. Clair “Germ War: The U.S. Record”, CounterPunch. 03.09.13). E o mesmo governo federal dos EUA tem, entre seus aliados, alguns dos maiores violadores de direitos humanos hoje no mundo, tais como a Arábia Saudita, que tem um enorme arsenal de armas químicas que, segundo várias cadeias de informação, foram fornecidas aos extremistas islâmicos, na oposição ao ditador sírio (ver Eric Draitser “Debunking Obama’s Chemical Weapons Case Against the Syrian Government” CounterPunch Sept.02, 2013), os quais possuem esse tipo de armas como indicou também Carla del Ponte, membro da Comissão Internacional de Investigação das Nações Unidas para investigar casos anteriores de utilização de armas químicas na Síria, que afirmou que existiu a posse e utilização de tais armas no passado pelos rebeldes (ver David Lindorff “While House Document Proving Syria’s Guilt does not pass Small text” CounterPunch, Sep.3, 2013). Na verdade, ditas armas foram utilizadas pelos dois lados do conflito na Síria.
Nem precisa dizer que a utilização de tais armas deve ser denunciada e condenada, sem ser seletivos e discriminatórios em tal denúncia, como é o caso notório de Bernard Henri Levi, o filósofo francês que adquiriu grande notoriedade por seu oportunismo e seletiva denúncia da utilização dessas armas, sem nunca haver feito a denúncia de sua utilização por parte dos estados estadunidense ou europeus, incluindo o estado francês (tal como afirma Diana Johnstone em seu artigo “France’s Philosopher Bombardier: No War for Bernard Henri Levi”, Counter Punch, Sept. 3. 2013).
Por que agora e não antes?
Que tem que penalizar a utilização desse armamento em qualquer parte do mundo e por qualquer estado é um ponto sobre o qual existe bastante acordo internacional. Mas, por que agora e não antes? E por que os EUA e não outros países? E, por que não fazê-lo através de outros meios não militares ou inclusive, em caso de que fossem militares por que o governo federal dos EUA e não outros? Para responder essas perguntas, tem que entender, como disse antes, a situação dos EUA e dos momentos históricos que este país está vivendo, o que raramente se faz nos meios de comunicação. Vejamos os dados.
Hoje os EUA estão em um momento de profunda crise, tendo acentuado ainda mais a deslegitimação do establishment financeiro, econômico, e político daquele país a partir do período de imposição de medidas sumamente impopulares sem nenhum mandato popular. A enorme influência do establishment financeiro e econômico (o que nos EUA se chama Corporate Class) na vida política e midiática do país e o impacto sumamente impopular das políticas públicas realizadas pelas instituições chamadas representativas criaram um repúdio generalizado à esses establishments. Hoje, desde a Seguridade Social (o sistema de pensões públicas) até os serviços públicos do Estado do Bem-estar estão em perigo. Nunca antes o Estado do Bem-estar estadunidense havia estado tão ameaçado como agora (uma situação que também ocorre na União Europeia e que alcança dimensões extremas na Espanha). Os cortes nas áreas sociais são enormes e, tal como indiquei anteriormente, o Congresso acaba de aprovar um corte de 40 bilhões de dólares ao programa Food Stamps, que alimenta quase uma de cada três crianças nos EUA (20 milhões de crianças assistidas). Esses cortes vão acompanhados de intervenções públicas que beneficiam enormemente a Corporate Class e as rendas superiores do país, tendo alcançado níveis de desigualdade sem precedentes desde princípios do século XX, no início da Grande Depressão. Hoje, uma pessoa do decil superior de renda nos EUA vive quinze anos a mais que uma pessoa do decil inferior (na Espanha são dez anos e na média da União Europeia dos Quinze são sete anos).
A Corporate Class e seu complexo militar industrial
Um eixo central da Corporate Class, que é enormemente poderoso (tal como já alertou em seu dia o General Eisenhower, mais tarde Presidente do país), é o complexo militar industrial. A voz mais crítica desse complexo foi Martin Luther King, que o havia denunciado como o grande defensor da Corporate Class dos EUA e que, para realizar sua missão, consumia enormes recursos a custa de empobrecer o escassamente financiado estado de bem-estar do país. Consumiu 20% do orçamento federal (718 bilhões de dólares), dos quais 159 bilhões foram gastos nas guerras do Iraque e Afeganistão (esta cifra não inclui os benefícios sociais dos veteranos das guerras e outros serviços militares, cifra que alcança outros 127 bilhões). O governo federal dos EUA gasta mais em suas Forças Armadas que a soma em gastos militares dos 13 países que lhe seguem depois, por nível de gasto militar. É um investimento enorme, que se deve ao poder da indústria armamentista. Mais de 350 bilhões de dólares foram a contratos por equipamento e manutenção de material militar consumido no Iraque e no Afeganistão (estes dados procedem de Brad Plumer, “America’s staggering Defense Budget in Charts”, The Washingto n Post January 7, 2013). É um gasto público enorme que configura a economia dos EUA e grande parte de suas políticas públicas. Na verdade (segundo os cálculos de Dean Baker e David Rosnick, do Center for Economic and Policy Research de Washington), mais de 26% do déficit público do estado federal se deve ao gasto nas intervenções militares do Afeganistão e Iraque, assim como o pagamento de outras intervenções que estiveram acontecendo a uma frequência de um conflito a cada três anos nos últimos trinta anos.
E esse grande poder deriva de sua função que é a de defender global e mundialmente os interesses primordiais da Corporate Class daquele país. Todo esse gasto público se realiza as custas de um enorme sacrifício do bem-estar das próprias classes populares dos EUA (como denunciou Martin Luther King, tal como indico em meu artigo “Lo que no se dijo sobre Martin Luther King”, Público, 3 de setembro de 2013). Não existe plena consciência fora dos EUA de que as classes populares deste país são as primeiras vítimas de tal “sistema imperial”, tal e como o definiu Martin Luther King. Hoje, ao mesmo tempo em que se estão reduzindo os fundos alimentares para a população pobre, se estão fazendo preparativos militares que custarão mais de 1 bilhão de dólares.
A enorme crise de legitimidade do sistema político estadunidense
O enorme descrédito da Corporate Class, de suas instituições representativas (a maioria de fundos que os políticos gastam em suas campanhas, procedem de membros de tal classe social, situação legalizada pela Corte Suprema dos EUA), acentuado pela grande crise atual, onde o padrão de vida das famílias estadunidenses vem diminuindo nos últimos trinta anos (e muito marcadamente nestes anos de crises), explica a crescente insatisfação da população com as instituições políticas. Já antes de que aparecesse a Síria no horizonte, o Stimson Center publicou, em maio, uma pesquisa na qual se pedia a opinião dos cidadãos sobre sua percepção e desejos sobre o gasto militar. A grande maioria dos cidadãos queria uma redução radical do gasto militar muito mais acentuada que qualquer proposta feita no Congresso ou pela Casa Branca. Na verdade, já em resposta a este enfado generalizado e saturação de guerras, a Administração Obama havia feito propostas (consideradas muito insuficientes pela maioria da população) de baixar tal gasto, havendo-o reduzido nos últimos anos.
O bombardeio da Síria, entretanto, custará, segundo cálculos iniciais, mais de 1 bilhão de dólares (o qual incrementou imediatamente, tal como informou o Boston Herald de 31 Agosto 2013), o valor das ações – que estavam baixando – das empresas produtoras de material militar tais como General Dynamics, Boeing, BAE Systems, Raytheon e muitas outras). Enquanto isso, como indiquei no parágrafo anterior, o próprio governo federal está cortando fundos para alimentar crianças que passam fome.
A chamada à intervenção militar na Síria
O argumento utilizado pela Administração Obama para bombardear a Síria – a penalização ao governo Asaad pelo emprego de armas químicas - carece, como disse antes, de credibilidade, pois tais armas foram utilizadas anteriormente no conflito sírio por ambas as partes, tal como documentou a Comissão de Direitos Humanos das Nações Unidas em sua investigação da situação na Síria assim como em muitos outros conflitos levados a cabo pelos EUA (como no Vietnã), ou por seus aliados, como Israel em 2009, em sua repressão da população palestina de Gaza (tal como denunciou a Anistia Internacional e afirmou Chris Hedges, chefe do escritório do Middle East do The New York Times (ver a entrevista em meu blog www.vnavarro.org)), ou, como afirmei anteriormente, pelos aliados dos EUA, como o então aliado Saddam Hussein em sua luta contra o Irã em 1988. Na verdade, a história dos EUA está cheia de casos de utilização de armas biológicas e químicas, tanto por seu governo como por seus aliados.
Qual é, então, o motivo real para iniciar tal bombardeio da Síria? Há vários motivos, todos eles relacionados com a situação nos EUA. A perda de legitimidade do establishment daquele país é enorme e se encontra em uma situação muito defensiva, encurralada. Sente que tem que fazer algo, tanto no interior como no exterior do país. O Oriente Médio (de enorme importância estratégica para o establishment estadunidense e europeu) está em uma situação vulcânica, na qual os EUA está perdendo o controle. Hoje essa zona do mundo é um vulcão que está explodindo.
Para aquele establishment dos EUA e europeu, Irã é o centro do mal, que quer dizer que pode afetar mais negativamente seus interesses. A aliança Síria-Irã, apoiada pela Rússia, representa uma ameaça à hegemonia dos EUA naquela zona. E ultimamente pareceria que o ditador Asaad, em sua luta contra os rebeldes, poderia prevalecer e ganhar naquele conflito. Daí que se tente agora aproveitar o incidente das armas químicas para atacar e debilitar tal governo. Esse é o objetivo da intervenção: tentar recuperar a hegemonia que o governo federal dos EUA (e da Europa) está perdendo, tanto no exterior como no interior.
E uma das primeiras mobilizações contra essa recuperação do domínio procede precisamente das classes populares dos EUA. Para o Presidente Obama, tal decisão de bombardear a Síria significará um enorme custo político. Como muito bem afirmou aquele que foi Ministro de Trabalho do governo Clinton, Robert Reich (ver Robert Reich “Obama’s Political Capital And the Slippery Stone of Syria”), tal intervenção, que lhe cairia muito bem ao establishment estadunidense para desviar a atenção do país ao exterior, (em um momento de grandes tensões dentro do país), lhe debilitará enormemente, independentemente de que seja ou não aprovada pelo Congresso dos EUA (uma instituição que só goza de 15% de apoio popular, precisamente por perceber-se, por parte da população, estar instrumentalizada pela Corporate America).
É provável que a Câmara Baixa do Congresso (a menos afastada da população) vote contra devido ao enorme enfado que a população tem mostrado à maioria de congressistas em seus distritos. Tem sido precisamente as bases do Partido Democrata (o movimento sindical, o movimento de direitos civis, o movimento feminista e o ecológico progressista) as que vem se opondo mais a tal bombardeio. E hoje, a mobilização popular contra tal intervenção (que está bombardeando o Congresso com chamadas e mensagens contra a intervenção militar) está generalizada. Mas o establishment estadunidense está mobilizando-se através dos meios de informação para que o Congresso autorize tal intervenção. Hoje, a população recebe constantemente mensagens que a credibilidade do país está em jogo, indicando que o repúdio se lerá como uma negação por parte do povo estadunidense a continuar liderando as forças que representam a democracia e a liberdade, uma mensagem que se repetiu continuamente para defender ditaduras e regimes feudais (e que vão da Arábia Saudita e Qatar à Honduras e antes Haiti) que estiveram oprimindo precisamente a liberdade e a democracia.
Aconteça o que acontecer, se inicia uma nova etapa nos EUA (inclusive em caso de que a Câmara Baixa apoiasse a intervenção), em que a população, e muito em particular as classes populares, estão fartas das guerras e intervenções do governo dos EUA para defender o que Martin Luther King chamava o “rol imperial” da Corporate Class, que está perdendo muito rapidamente seu apoio popular. E esse é o ponto chave que marcará claramente uma mudança importante na história dos EUA (e acho que também do mundo).
*Catedrático de Políticas Públicas, Universidade Pompeu Fabra e Professor de Public Policy na The Johns Hopkins University. Coluna “Pensamiento Crítico” no jornal PÚBLICO, 10 de setembro de 2013
Tradução: Liborio Júnior
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