sábado, 14 de setembro de 2013

Entrevista com Luis Corvalán, do Chile

"A direita e os EUA não queriam um socialismo com democracia no Chile. Seria contagioso"
Luís Corvalán, principal dirigente do Partido Comunista do Chile por mais de trinta anos, foi o segundo homem do governo Allende. Nesta entrevista inédita, realizada há vinte anos, ele analisa os momentos cruciais da Unidade Popular, do golpe e fala do projeto de sociedade que tinham em mente. “Queremos um socialismo com democracia e liberdade, com sabor de vinho tinto e cheiro de empanada”, como dizia Allende. Por Gilberto Maringoni.
Data: 11/09/2013
Luís Alberto Corvalán Lepe (1916-2010) foi quase uma lenda na esquerda mundial. Senador, coordenador da campanha presidencial e articulador da Unidade Popular, ele foi o segundo homem do governo de Salvador Allende (1970-73).

Durante 78 anos, a vida desse dirigente de olhos claros e inquietos e não mais que 1m65 de altura se confundiu com a história das lutas populares de seu país.

Entre 1958 e 1990, Corvalán foi Secretário-Geral do Partido Comunista do Chile. Juntamente com o Partido Socialista, a agremiação compôs a espinha dorsal do governo da Unidade Popular. Sua militância teve início, em 1932, e se estendeu por 78 anos, até sua morte, aos 93.

Preso várias vezes e clandestino por largos períodos, Corvalán transformou o PCCh numa agremiação articulada e de grande densidade eleitoral.

Preso nos dias iniciais do golpe de 11 de setembro de 1973, Corvalán tornou-se – depois de seu amigo Victor Jara – a principal figura pública nos cárceres da ditadura. Sairia dali três anos depois, no bojo de intensa campanha internacional, para um exílio na então União Soviética. Voltaria à sua terra clandestinamente em 1988, pouco antes do fim do regime.

A entrevista abaixo foi realizada na tarde de 9 de setembro de 1993, numa modesta casa de San Bernardo, cidadezinha localizada a 27 quilômetros ao sul de Santiago.

Aos 77 anos, Corvalán estava no meio de uma campanha para senador. Não se elegeu. Uma draconiana lei eleitoral, herança dos tempos de Pinochet – cujas bases ainda se mantêm – dificultam enormemente o avanço eleitoral da esquerda.

Fui ao Chile por conta própria, para fazer uma grande reportagem sobre os vinte anos do golpe e os personagens remanescentes do governo Allende.

A intenção era publicá-la na revista Teoria & Debate, do Partidos dos Trabalhadores.

O projeto foi abortado. No meio do trabalho, fortes febres e um indizível mal estar me obrigaram a voltar. Diagnóstico: uma hepatite C, que me deixou de molho por mais de um mês.

A entrevista com Corvalán permaneceu inédita. Seguem agora os principais trechos de duas horas de conversa com um personagem risonho e amabilíssimo, realizada quando o continente vivia o auge dos tempos neoliberais

UM CORTE NA HISTÓRIA

“O golpe chileno tem a ver com certas tendências existentes no continente. Sempre houve períodos de democratização relativa e outros de golpes de Estado na América Latina, com intervalo de um ou dois anos, a depender de cada país. A situação no Chile foi mais a brutal de todas. Aqui não se tratava simplesmente de mudar um governo por outro e nem de se trocar um regime civil por um militar. Tratava-se de impor um corte brutal nos rumos e na história do país. Surgira o governo da Unidade Popular, que tinha levado a cabo profundas transformações, propondo-se a construir uma sociedade socialista, nacionalizando todas as riquezas básicas e extrativas do solo, como as minas de cobre, de ferro, de carvão e a produção de cimento.

Allende nacionalizou 79 grandes empresas industriais, 16 dos 18 bancos comerciais existentes, expropriou cem milhões de hectares de terra, completando-se assim o processo de reforma agrária iniciado no governo de Eduardo Frei (1964-70). Além disso, foram incorporadas às instâncias do poder, à cúpula do Estado, à administração pública e à direção das estatais representantes do povo e da classe operária. Foi o primeiro governo da história do Chile que contou com a participação de quatro ministros operários, três comunistas e um socialista. A direita não tolerou isso”.

A UNIDADE POPULAR
“Todos nós – os Partidos Socialista, Comunista, Radical, Democrático Nacional e a Ação Popular Independente – estávamos unidos em torno de um programa comum que compreendia todas as áreas da política nacional e internacional, com destaque para os setores da economia, da educação, da saúde e da agricultura. As relações entre nós, no primeiro momento, eram positivas e construtivas. Havia, vez ou outra, dificuldades e diferenças. Essas se acentuaram com o tempo, à medida que a contrarrevolução foi ganhando força.

No final, as dissensões ficaram mais evidentes, principalmente entre os comunistas e socialistas. Nós não compartilhávamos das tendências ultraesquerdistas que começavam a surgir no interior do PS e que, de alguma maneira, precipitaram a situação posterior. Mas as diferenças não eram o essencial no interior do governo”.

O ONZE
“No dia do golpe, eu estava em casa e, muito cedo, recebi a informação do subsecretário do Interior, companheiro Daniel Vergara, sobre o movimento das tropas, particularmente em Valparaíso [tomada de assalto pela Marinha no dia anterior]. Rapidamente montamos uma reunião da Comissão Política do Comitê Central. O encontro durou até 10h30. Aí percebemos que o golpe estava consumado e que não havia condições de desbaratá-lo. Decidimos que a direção entraria para a clandestinidade, e seria encabeçada pelo Subsecretário-geral, Víctor Diaz, que figura entre os desaparecidos [descobriu-se posteriormente que ele foi jogado ao mar, de helicóptero, em 1976]. Definimos também que eu, por ser uma figura mais conhecida, , passaria a uma clandestinidade absoluta. Fui preso em 27 de setembro. Após três anos e dois meses no cárcere, fui para o exílio”.

MOTIVOS DO GOLPE
“Como já afirmei, a ditadura militar impôs um corte muito grande na história de nosso país. O Chile marchava rumo a uma sociedade socialista, por um caminho próprio e original. Allende dizia: “Queremos construir o socialismo com democracia e liberdade, com sabor de vinho tinto e cheiro de empanada”, aludindo a dois de nossos produtos tradicionais. O socialismo começaria a partir de uma vitória eleitoral, de acordo com a Constituição e as leis do país.

Acima de tudo, essa construção ocorria com liberdade política, reconhecendo os direitos da oposição e com a existência de pluripartidarismo. Nunca sustentamos a tese do partido único. Essa condição sine qua non que defendemos não está nos livros de Lenin e de seus continuadores. Tínhamos, assim, um regime especial, que despertou grande simpatia em todo o mundo.

E essa foi precisamente uma das razões do golpe, pois a Revolução Cubana já havia sido um grande problema para os Estados Unidos e para a direita. Um problema maior ainda seria a constituição de um exemplo contagioso no Chile.

A ditadura militar veio para estabelecer as posições do capitalismo e do imperialismo que haviam sido derrotadas. Devo lembrar que anteriormente, as minas de cobre estavam em mãos norte-americanas. Com Allende, elas passaram para o controle do país. Para reverter esse quadro, utilizaram a força das armas.

OBJETIVOS DA DITADURA
O golpe coincide com o fim do ciclo desenvolvimentista na América Latina e com o início da economia neoliberal. E isso, Pinochet impões a ferro e fogo. Esta a razão do golpe! Durante a ditadura, o Chile passou por momentos muito difíceis, também do ponto de vista econômico, com uma grande crise entre 1981-82. O resultado posterior, segundo eles, é que o país teve um grande crescimento, que chegou a 9% , em 1992, e com um desemprego baixo, na casa dos 5%. Passaram a dizer que existiria aqui um “nilagre chileno”, a exemplo do “milagre brasileiro”, do início dos anos 1970. Mas quem se beneficia deste “milagre”? O grande capital nacional e transnacional.

O número de pobres duplicou em relação a 1970. Tínhamos 22% da população nessas condições e hoje (1993), temos 40%! A participação dos salários na renda nacional era de 50% durante o governo Frei, subiu para 62% com Allende e no auge da ditadura, baixou para 34%. Os trabalhadores perderam conquistas importantes, houve redução do salário-mínimo e das aposentadorias.

O FIM DA URSS
Escrevi um livro expondo minha visão sobre o fim da URSS [“El derrumbe Del poder soviético”]. Em poucas palavras penso o seguinte: a Revolução de Outubro foi a maior transformação social de toda a História e a União Soviética foi um país socialista. Nasceu como um poder democrático e popular e representou um grande papel no mundo. O socialismo converteu um país atrasadíssimo na segunda potência industrial do globo em duas décadas.

Porém, uma série de fenômenos se cruzaram, ela viveu o tempo todo sob o assédio e o ataque das potências capitalistas, enfrentou o nazismo na II Guerra Mundial (1939-45) e passou pelos desafios da Guerra Fria (1947-91). Proliferaram nesse quadro várias tendências internas negativas, como o burocratismo e o antidemocratismo, que criaram as condições para o seu desmantelamento.

FUTURO
Vamos seguir sustentando as bandeiras do socialismo, da classe operária e das transformações sociais. Isso não é fácil. Nunca foi fácil ser revolucionário. Porém, eu sempre compartilhei de um pensamento externado por Marx, quando lhe perguntaram onde estava a felicidade. Ele respondeu: “Na luta. Na luta pela transformação social em favor das maiorias”.

Passamos por um processo muito duro para o Partido, porém não nos dividimos e mantivemos nossas bandeiras. Não temos a mesma força e influência de antes, mas voltaremos a ter. Provavelmente não verei este momento, mas com o apoio do povo e de outras forças democráticas, voltaremos a empreender o caminho da construção de uma sociedade mais justa. De uma sociedade socialista, como queria Salvador Allende.

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