Por Adib Jatene, na “Folha”
Desenvolver o Estado de Bem-Estar Social em país que convive com ampla desigualdade tem-se demonstrado como algo irrealizável.
Conforme constatou Sonia Fleury em artigo publicado no "Le Monde Diplomatique Brasil" ("Do Welfare ao Warfare State"),
apesar de a nossa Constituição ter estabelecido o objetivo da
democracia social, sob o primado da justiça social, o que assistimos é a
uma regressão.
De fato, passados 25 anos de promulgação da Constituição Federal, observa-se, segundo a autora, "uma
transmutação regressiva do social, com a presença de valores
conservadores, além do incentivo ao empreendedorismo individual e ao
consumismo, em detrimento de formas solidárias de sociabilidade e da
existência de mecanismos institucionais de proteção social pública".
Por
que trilhamos caminhos que conflitam com o espírito da Constituição e
nos conduzem a situações inaceitáveis? A indagação me leva à conclusão
de que a nossa Constituição é uma formulação teórica que não consegue se
realizar na prática, porque o país é muito desigual.
O Orçamento
Federal não permite correção das desigualdades porquanto resta para
despesas discricionárias pouco mais de 10% do total orçado. Isso
significa que quase 90% estão comprometidos com despesas obrigatórias.
Dos
recursos discricionários, 43% completam os orçamentos da saúde e
educação e 29% se destinam ao PAC (Programa de Aceleração do
Crescimento) e ao Bolsa Família.
De um Orçamento de R$ 2
trilhões, restam, portanto, apenas R$ 56 bilhões, com os quais o governo
federal tem de atender a pleitos de 39 ministérios, do Poder
Legislativo e do Poder Judiciário.
Enquanto isso, na área
privada, crescem sinais de opulência, como se constata pela construção
de prédios luxuosos que deixam áreas da cidade parecendo as de um país
com US$ 60 mil de renda per capita. Por outro lado, observa-se a
ampliação assustadora da frota de veículos, a ponto de faltar ruas para
abrigar o tráfego crescente.
Dos proclamados 36% de carga
tributária do PIB (Produto Interno Bruto), cerca de 14% são dos
aposentados e pensionistas. Ao governo se destinam 22% da carga --número totalmente insuficiente para atender às demandas urbanas criadas pela transição demográfica.
Isso só pode ocorrer porque os que geram receita se apropriam dela [sonegam, praticam evasão e elisão fiscal, isto é, roubam já na origem o dinheiro que deveria ser público]
em vez de transferir ao governo boa parte dos recursos que seriam
destinados a atender as necessidades da população. Por isso, convivemos
com opulência e pobreza.
Não sei como se pode falar em Estado de
Bem-Estar Social nessas condições. Enquanto grupos nacionais e
internacionais vivem na opulência, parte significativa da população se
rejubila por sair da miséria para a pobreza. E o governo federal faz
disso sua meta maior.
Conta-se por bilhões o lucro de entidades
financeiras, mas os verdadeiros responsáveis pela produção,
especialmente a agropecuária, cuja participação tem impulsionado o
balanço positivo de pagamentos, mantêm-se assustados e inseguros quanto
ao futuro.
Como não se consegue ativar a economia, talvez se
possa reduzir a desigualdade aplicando parte do montante destinado a
perpetuá-la e agravá-la em medidas que, ao contrário, a mitiguem.
O
governo já dá sinais nessa direção quando aceita as parcerias
público-privadas e caminha no sentido de transferir para a iniciativa
privada investimentos que até recentemente considerava exclusivos do
poder público.
Resta saber se os que se apropriam de boa parte da
receita gerada estão dispostos a correr o risco de se envolverem nas
mudanças sinalizadas, que, ao final, irão reduzir a desigualdade e criar
ambiente mais saudável, combatendo a violência que a todos incomoda.”
FONTE:
escrito por Adib D. Jatene, 84, cardiologista, professor emérito da USP
e diretor-geral do Hospital do Coração. Foi ministro da Saúde (governos
Collor e FHC), secretário estadual da Saúde de SP (governo Maluf) e
diretor do InCor (Instituto do Coração). Artigo publicado na “Folha de
São Paulo”
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