São Paulo - Em entrevista à Carta Maior, o
documentarista chileno Patrício Guzmán fala sobre as relações entre a
direita e a esquerda no periodo do golpe contra o presidente Salvador
Allende em 1973 e as medidas tomadas pelo ditador Augusto Pinochet para
tentar apagar da história a memória do presidente deposto.
Durante
a exibição de seu filme “Nostalgia da Luz” que fechou o evento “Memória
e Transformação”, promovido pelo Instituto Vladimir Herzog e Cinemateca
Brasileira, Guzmán falou sobre a importância e necessidade da memória,
como instrumento politico de identidade do país e de seus indivíduos.
Sua obra, segundo ele, é permeada pela tensão entre memória e
esquecimento.
Conhecido por seus filmes sobre o Chile, os anos
Allende e o golpe militar de Pinochet, o documentarista, também falou
sobre o movimento estudantil chileno, que em suas palavras, “quer não só
melhor educação, mas uma sociedade mais humana”. Guzmán ainda falou
sobre a mídia e o papel vital do documentário na história de uma nação,
“um país sem documentário é como uma família sem álbum de fotografias”.
Veja acima vídeo com a entrevista e, abaixo, a transcrição da fala de Guzmán.
"Eu
cheguei muito tarde na política, quero dizer, que quando fui para
Espanha para estudar Cinema não tinha uma posição clara. Eu queria
mudança, não a mudança radical. Era, se preferir, uma pessoa neutra. Eu
me conscientizei estando em Madri, porque a ditadura franquista estava
vivendo seus últimos momentos e a Escola del Cine estava no meio da
faculdade de Ciências Políticas, de História e Filosofia para chegar até
a faculdade tinha que atravessar o campus e via os policiais em
confronto com os estudantes, digamos que estávamos em meio um campo de
guerra urbana, portanto, foi dentro da faculdade que comecei a entender o
que estava passando na América Latina.
Nesse espaço de cultura
efervescente que comecei a ter uma consciência mais forte. E quando
Allende saiu, eu disse a mim mesmo “tenho que voltar imediatamente, não
posso ficar aqui”. Cheguei tarde, cheguei tarde. 4 meses depois que
Allende já tinha tomado o poder. Então, os postos já estavam todos
ocupados e como não era militante tinha menos possibilidade. Então fui
até a escola de Cinema onde tinha estudado no Chile, e disse ao diretor :
“O que está passando é tão bonito, tão extraordinário, há uma
efervescência tão grande, uma participação massiva enorme que temos que
filmar. Imediatamente”
Tratava-se que Allende tinha que renovar o
parlamento e a direita queria destituí-lo. A direita pensava que ao
obter 60% dos votos e com isso podiam destituir o presidente… Então
saímos às ruas e filmamos imediatamente, porque não podíamos não
filmá-lo. Bom, Allende conseguiu 43, 44%, ou seja, conseguiu a mais alta
votação depois de dois anos de desgastes de um governo chileno. E não
puderam destituí-lo, a partir daí a direita entende que precisa dar um
golpe de estado, que já não se pode tirar pela via legal um governo
popular. E aí eu parei, deixei de filmar e nos reunímos.
Fizemos
uma semana de reunião para estabelecer um método de trabalho. Pusemos,
fizemos um esquema em cartolinas com os principais problemas, divididos
em políticos, ideológicos e econômicos, que é uma análise marxista
elementar, então colocamos muitas chaves com tudo o que derivava dali.
Se era economia, era a nacionalização das riquezas básicas, a fábrica, a
produção, a batalha da produção. Se era ideologia: as rádios, as
televisões, os novos partidos da direita etc. E no outro lado, outro
esquema íamos colocando o que filmávamos e comparando uma coisa com a
outra. O resultado foi um filme com muitos contra-pontos, digo, a uma
ação da esquerda uma resposta da direita. A um contra ataque da direito
outra resposta da esquerda, o qual era um documentário ideal. Digamos…
que haja um diálogo de contrários, se não há diálogo de contrários não
existe linha de desenvolvimento. O filme fica monótono.
Era tal a
aceleração da história que Allende produziu, e tal a quantidade de
acontecimentos que passava que você acreditava que estava vivendo em um
caos total.
Digamos que tínhamos que filmar dois rolos (de filme)
diários, essa era minha divisão, se de repente sobrava, então teríamos
3 para o próximo dia. E se no terceiro dia havia outro dia ruim,
teríamos 4 para uma boa sequência. E assim fomos equilibrando a tal
ponto que quando veio o Golpe de Estado só nos sobraram dois rolos, ou
seja, quando se acabou o filme, acabou-se o projeto político. Isso foi
muito curioso.
O Chile dos anos 70, o Chile Allende é um dos
países mais cultos politicamente que existiu na América Latina, com um
desenvolvimento, um amadurecimento da esquerda insólito, com um partido
comunista de quase cem anos, partido socialista igualmente velho, uma
social-democracia avançada,uma esquerda radical interessante e uma
leitura política entre os trabalhadores e estudantes alta.
Depois da repressão de Pinochet não ficou nada.
E
os dezoito anos de completa amnésia, Pinochet quis fazer tábula-rasa,
apagou a história, apagou Allende da história e transformou comunismo,
demonizou o comunismo a graus grotescos. Insultou Allende de todas as
maneira que quis, disse tudo o que lhe passou na cabeça contra Allende.
Quase tudo falso. E deixou o país, portanto, como que em uma espécie de
deserto de memória, de recordações políticas até hoje. De tal maneira
que a única coisa que temos é um movimento estudantil magnífico, é a
quarta geração que já não tem medo, são inteligentes, querem ir adiante,
são contestadores e querem não só melhor educação, mas também querem
melhor saúde, melhor moradia, melhores condições de trabalho, melhor
vida, uma sociedade mais humana. Não lutam só pelos seus.
Mas só
dependemos deles, digamos que não há nenhum outro grupo da sociedade que
esteja em plano de luta frontal contra a amnésia, contra os
torturadores que andam soltos, contra uma justiça lenta, contra uma
Constituição que todavia tenha inimigos internos que é um conceito que
causa divisão e ódio, contra uma constituição que fala que os mapuches
(etnia indígena) são terroristas. Então, há muito coisa a fazer.
A
televisão nasceu como o meio mais importante e pedagógico do século XX e
foi convertido em um terrorismo áudio-visual espantoso, nossa televisão
latino-americana é imoral e insuportável.
Acredito que a memória
não é um conceito intelectual, não é um conceito universitário, não é
um conceito acadêmico. A memória é completamente dinâmica, digamos, está
dentro do nosso corpo. Os países que praticam a memória são mais
vívidos, mais criativos, fazem melhores negócios, melhor turismo, são
mais distintos, são melhores. Os países sem memória são anêmicos, não se
movem, são conformistas, e caem numa espécie de cultura de sofá, gente
que está sentada no sofá assistindo a televisão… E não se movem.
Acredito que a memória é um conceito tão importante quanto a circulação
do sangue.
Existe uma historiografia científica na América Latina
que se pode chamar de moderna? Não. Foi a classe alta que escreveu a
história a seu próprio gosto, como no Chile. Eu não acredito em nenhum
herói chileno. Não acredito em nenhum deles. Tenho certeza que nos
mentiram sistematicamente. Como nos mentiram sobre Allende, sobre
Balmaceda, sobre tantos outros heróis que tivemos no Chile.
Tem
que se começar apoiando uma nova geração de historiadores que revisem o
que passou de um ponto de vista moderno… para estabelecer as bases onde
nos apoiaremos e ter um plano de fundo de verdadeiros heróis para
seguir adiante. Assim como a ecologia não se conhecia há 30 anos, os
direitos das mulheres não eram conhecidos, ou não eram respeitados, há
70 anos… Assim como os direitos dos indígenas ou a liberdade sexual não
eram reconhecidos.. Hoje em dia a memória chegou ao mundo contemporâneo
para ficar. Não é passageira, já está instalada. E vai ficar até que nós
mesmos a desenvolvamos. É fundamental.
O documentário é um
direito do cidadão. Assim como há um dever público em prover saneamento
básico, tem que haver documentários, por lei, por obrigação. É o
registro de um país, é o álbum de fotos de um país.
Tradução: Caio Sarack
Nenhum comentário:
Postar um comentário