segunda-feira, 25 de março de 2013

PREFÁCIO À DÉCIMA EDIÇÃO de Geografia da Fome

Nos dois artigos,* ora transcritos nesta nova edição de uma das obras clássicas de nossa literatura, a Geografia da Fome de Josué de Castro (1956), artigos esses publicados em 1973, tive ocasião de apreciar a atualidade, a originalidade e o sentido profético da sua obra. O regime político ditatorial, que o perseguiu em vida, longe de afetar o valor de sua obra monumental em prospetiva, não fez senão ressaltar seu valor permanente. Passados 25 anos da publicação desse livro-chave, representa ele ainda hoje o retrato mais trágico e igualmente mais fiel de nossa realidade nacional. Comparável a ele, somente Os Sertões de Euclides da Cunha. Durante esses 25 anos nada foi feito para que a carência alimentar do nosso povo fosse atendida. A grande novidade do momento é... a volta à agricultura. Nunca deveríamos ter saído dela. O primado da agricultura, da mineração e da pecuária, em um país de tão vastas dimensões e de natureza tão diversificada, não prejudica em nada, e antes incentiva, a organização de um grande parque industrial. Campo e cidade devem sempre estar intimamente ligados. O que faz a sua separação é a antítese de classes, como é a política de recurso contínuo aos capitais estrangeiros, para promover o progresso nacional. Quando este deve ter sempre, por base, o trabalho e não o capital. Foi o segredo [pg. 19] do Japão. Pois o capital, para ser sólido e não atentar contra a independência nacional, prejudicando outrossim a própria interdependência, deve ter por base o trabalho. A política da primazia do recurso ao capital estrangeiro é, sem dúvida, uma das fontes desse drama da fome, que Josué de Castro foi o primeiro a colocar como o problema básico do Brasil. Hoje se fala muito na primazia do Homem. É bom que se fale, pois a verdadeira filosofia social se baseia nessa primazia. Mas, para que isso não seja apenas uma figura de retórica, é preciso partir do problema da alimentação desse homem, em
cujo trabalho reside a riqueza nacional. Foi tudo isso que levou Josué de Castro a levantar esse monumento de sabedoria social, que tanto entusiasmou o Padre Lebret e é, até hoje, como será para sempre, uma das pedras angulares de nosso edifício social.
* Os dois artigos a que se refere o prefaciador foram publicados no Jornal do Brasil, em 1973, sob o pseudônimo de Tristão de Athayde.
Hoje também se invertem outros valores que Josué de Castro sempre colocou como fundamentais. Procuram, hoje, reduzir artificialmente a população, para melhor alimentá-la. Josué de Castro, pelo contrário, partia do elemento qualitativo e não do elemento quantitativo. Não é preciso reduzir artificialmente a população, para melhor alimentá-la. E sim alimentá-la melhor, para que o seu aumento quantitativo se processe normalmente e não artificialmente. Invertendo a equação, colocando o carro da quantidade adiante dos bois da qualidade, altera-se completamente o equilíbrio da situação homem-alimento, que Josué de Castro coloca numa base racional e moral e não irracional e amoral. Colocaram a pirâmide com a ponta para baixo. Menos habitantes para melhor alimentação. Quando o racional é melhor alimentação (base), para mais habitantes (ponta). Chesterton propôs, com humour, a seguinte fórmula: quando existem 7 crianças e 6 chapéus, ou se arranja mais um chapéu, ou se corta a cabeça de uma criança...
Por essas e outras é que a obra clássica de Josué de Castro merece ser relida e aproveitada, pois sua inspiração é, ao mesmo tempo, científica e moral, como deve ser toda fórmula social, para o bem de uma nacionalidade de vasto futuro como a nossa. Josué de Castro pagou caro sua sabedoria. Mas a posteridade lhe faz justiça e há de aproveitar-se de sua ciência. Como a tragédia da fome não é privilégio do Brasil, nem do Sahel, Josué de Castro [pg. 20] deixou, para a posteridade, aquela sua frase famosa, já citada em um dos meus artigos: “Metade da humanidade não come e a outra não dorme com medo da que não come...”
Alceu Amoroso Lima
Rio, 1980

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