sábado, 9 de março de 2013

A crueldade dos EUA no Vietnã

Por Lucas Mendes   da Rede Globo

De Nova York para a BBC Brasil
“No meio da entrevista, o veterano do Vietnã foi atrás do enorme alto-falante, tirou um maço de Marlboro, abriu e nos ofereceu. Meu colega, da revista ‘Stern’, e eu acendemos os cigarros e levamos um susto. Pelo maço ou pelo cigarro, era impossível distinguir. Maconha vietnamita. Para um primário como eu, parecia da melhor qualidade e potência. Isso foi em 71 ou 72.
A entrevista foi inútil e não por culpa da maconha. Os depoimentos do veterano que mais tarde se tornou amigo íntimo e professor de vinho - era um provador profissional - não tinham sido testemunhados por ele. Não estava envolvido em combate. As histórias pavorosas foram contadas a ele por outros soldados que participaram e viram chacinas no chão ou dos helicópteros: "fuzilavam tudo que mexia", conforme ordens dos comandantes.
Um dos massacres mais chocantes foi o de “My Lai”, onde entre 347 e 504 vietnamitas, na maioria crianças, mulheres e velhos, foram fuzilados por soldados do Exército americano comandados por um tenente, William Calley. O jornalista que levantou a história, Seymour Hersh, bateu de porta em porta na grande imprensa. Rejeição em massa. Quem teve coragem de publicar a matéria foi uma nova e ainda obscura agência de notícias, “Dispatch News Service” - 32 jornais publicaram. Uma bomba.
Houve até punições, mas a máquina de propaganda do Exército era poderosa. O massacre, na versão oficial, foi uma atrocidade isolada: "Infelizmente, acontecem".
Nick Turse, escritor e jornalista, quase por acaso, tropeçou em uma coleção de documentos no porão do Arquivo Nacional. Eram casos encerrados. Na época, ele era um estudante escrevendo uma tese de pós-graduação sobre o Vietnã e já estava na página 200 quando encontrou as pastas. Todo dinheiro que tinha, mais o que o professor deu a ele, gastou copiando páginas às pressas. Dormia no carro no estacionamento, era o primeiro a entrar e o último a sair, com medo que fossem recolhidas. E sumiram das estantes quando publicou o primeiro artigo.
O resultado é o livro “Kill Anything That Moves: The Real American War in Vietnam”. Enquanto o país ainda está chocado com as cenas de tortura do filme “Zero Dark Thirty” (no Brasil, “A Hora Mais Escura”) e debate se os Estados Unidos perderam a liderança moral no mundo, a história da desumana crueldade americana no Vietnã é uma leitura repugnante que Hollywood jamais vai colocar nas telas.
A estratégia, ditada pelo secretário (de Defesa, Robert) McNamara, era a "contagem de corpos".
Pela lógica empresarial dele, se os vietnamitas vissem diariamente os números de mortos comparados com os americanos, perceberiam que estavam perdidos.
Para o secretário americano, quanto maior o número, melhor. Um comandante no Delta do Mekong era o campeão da contagem. Seus comandados saíam de helicópteros e sobrevoavam as plantações de arroz cheias de camponeses nas colheitas. Os helicópteros baixavam até apavorar os vietnamitas que corriam em busca de abrigos. Eram metralhados com a justificativa: "guerrilheiro tentou ação evasiva". Mexia, morria.
No final do dia, centenas de vietnamitas mortos. Armas capturadas: uma dúzia.
A matança de civis deixou mais de 2 milhões de mortos, 5,3 milhões de feridos, 11 milhões de refugiados e mais de 4 milhões expostos ao agente tóxico desfolhador laranja.
Dezenas de americanos denunciariam a violência e centenas foram investigados pelo Exército, mas arquivados. Foram as pastas que Nick Turse encontrou no porão.
Quase na mesma semana do lançamento do livro sobre a violência e o fracasso americano no Vietnã, foi lançado “The Insurgents: David Petraeus and the Plot to Change the American Way of War”, do escritor e jornalista Fred Kaplan, que escreve a coluna “War Stories” para o site “Slate”.
O foco é no general hoje em desgraça por conduta imoral quando dirigia a CIA e teve um affair com uma biógrafa. Kaplan acompanha o general da guerra na Bósnia, as guerras do Iraque e Afeganistão. [No Iraque], enquanto os americanos enfrentavam insurreições diárias [para a "Globo", a resistência dos nacionais contra as tropas norte-americanas invasoras é chamada de "insurreição" de "terroristas"] em quase todo país, o território comandado por Petraeus, um dos mais perigosos, estava pacificado e próspero. Ele reabriu as escolas, a universidade e a fronteira com a Síria. A população apoiava o Exército e apontava os "terroristas".
Mais tarde, no comando de toda a operação no Iraque, teve resultados excepcionais que permitiram a saída dos americanos, mas a situação já voltou à instabilidade. Petraeus estava conseguindo resultados parecidos no Afeganistão quando foi chamado de volta para dirigir a CIA.
A fórmula dele, ao contrário dos americanos no Vietnã e nos primeiros anos no Iraque, não era capturar e/ou matar insurgentes. O importante era mudar as condições sociais, o que agora se chama "nation building", construir nação, que exige sensibilidade cultural, convivência com as pessoas no território ocupado, proteção e conquista da confiança da população. Os comandantes que sucederam Petraeus não tiveram o mesmo talento de liderança e administração. O futuro é incerto e perigoso nos dois países.
Como em todas situações de conflitos, há oportunistas e empreendedores do bem e do mal como o fabricante do Marlboro com maconha que pode voltar a qualquer momento. Pouco depois daquele encontro com o veterano do Vietnã, levei um maço de Marlboro para o Brasil com um cigarro vietnamita que dei, sem prevenir, para meu pai. Estávamos num restaurante e depois da primeira tragada, ele olhou o cigarro, cheirou a fumaça: "Marlboro diferente este, tem um cheirinho gostoso de mato". Algumas pessoas na mesa sacaram e começaram a rir. A querida velha, muito esperta, percebeu algo errado e jogou o cigarro fora. Pena.
Anos depois, ele ainda perguntava se ainda existia aquele Marlboro especial”.

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