Por Lucas Mendes da Rede Globo
De Nova York para a BBC Brasil
“No meio da entrevista, o veterano
do Vietnã foi atrás do enorme alto-falante, tirou um maço de Marlboro, abriu e
nos ofereceu. Meu colega, da revista ‘Stern’,
e eu acendemos os cigarros e levamos um susto. Pelo maço ou pelo cigarro, era
impossível distinguir. Maconha vietnamita. Para um primário como eu, parecia da
melhor qualidade e potência. Isso foi em 71 ou 72.
A entrevista foi inútil e não por
culpa da maconha. Os depoimentos do veterano que mais tarde se tornou amigo
íntimo e professor de vinho - era um
provador profissional - não tinham sido testemunhados por ele. Não estava
envolvido em combate. As histórias pavorosas foram contadas a ele por outros
soldados que participaram e viram chacinas no chão ou dos helicópteros: "fuzilavam tudo que mexia", conforme
ordens dos comandantes.
Um dos massacres mais chocantes foi
o de “My Lai”, onde entre 347 e 504 vietnamitas, na maioria crianças, mulheres
e velhos, foram fuzilados por soldados do Exército americano comandados por um
tenente, William Calley. O jornalista que levantou a história, Seymour Hersh,
bateu de porta em porta na grande imprensa. Rejeição em massa. Quem teve
coragem de publicar a matéria foi uma nova e ainda obscura agência de
notícias, “Dispatch
News Service” - 32 jornais publicaram. Uma bomba.
Houve até punições, mas a máquina de
propaganda do Exército era poderosa. O massacre, na versão oficial, foi uma
atrocidade isolada: "Infelizmente,
acontecem".
Nick Turse, escritor e jornalista,
quase por acaso, tropeçou em uma coleção de documentos no porão do Arquivo
Nacional. Eram casos encerrados. Na época, ele era um estudante escrevendo uma
tese de pós-graduação sobre o Vietnã e já estava na página 200 quando encontrou
as pastas. Todo dinheiro que tinha, mais o que o professor deu a ele, gastou
copiando páginas às pressas. Dormia no carro no estacionamento, era o primeiro
a entrar e o último a sair, com medo que fossem recolhidas. E sumiram das
estantes quando publicou o primeiro artigo.
O resultado é o livro “Kill Anything That Moves: The Real
American War in Vietnam”. Enquanto o país ainda está chocado com as
cenas de tortura do filme “Zero
Dark Thirty” (no Brasil, “A Hora Mais Escura”) e debate se os Estados
Unidos perderam a liderança moral no mundo, a história da desumana crueldade
americana no Vietnã é uma leitura repugnante que Hollywood jamais vai colocar
nas telas.
A estratégia, ditada pelo secretário
(de Defesa, Robert) McNamara, era a "contagem
de corpos".
Pela lógica empresarial dele, se os
vietnamitas vissem diariamente os números de mortos comparados com os
americanos, perceberiam que estavam perdidos.
Para o secretário americano, quanto
maior o número, melhor. Um comandante no Delta do Mekong era o campeão da
contagem. Seus comandados saíam de helicópteros e sobrevoavam as plantações de
arroz cheias de camponeses nas colheitas. Os helicópteros baixavam até apavorar
os vietnamitas que corriam em busca de abrigos. Eram metralhados com a
justificativa: "guerrilheiro tentou
ação evasiva". Mexia, morria.
No final do dia, centenas de
vietnamitas mortos. Armas capturadas: uma
dúzia.
A matança de civis deixou mais de 2
milhões de mortos, 5,3 milhões de feridos, 11 milhões de refugiados e mais de 4
milhões expostos ao agente tóxico desfolhador laranja.
Dezenas de americanos denunciariam a
violência e centenas foram investigados pelo Exército, mas arquivados. Foram as
pastas que Nick Turse encontrou no porão.
Quase na mesma semana do lançamento
do livro sobre a violência e o fracasso americano no Vietnã, foi lançado “The Insurgents: David Petraeus and
the Plot to Change the American Way of War”, do escritor e
jornalista Fred Kaplan, que escreve a coluna “War Stories” para o site “Slate”.
O foco é no general hoje em desgraça
por conduta imoral quando dirigia a CIA e teve um affair com uma biógrafa.
Kaplan acompanha o general da guerra na Bósnia, as guerras do Iraque e
Afeganistão. [No Iraque], enquanto os americanos enfrentavam insurreições diárias [para
a "Globo", a resistência dos nacionais contra as tropas
norte-americanas invasoras é chamada de "insurreição" de "terroristas"] em quase
todo país, o território comandado por Petraeus, um dos mais perigosos, estava
pacificado e próspero. Ele reabriu as escolas, a universidade e a fronteira com
a Síria. A população apoiava o Exército e apontava os "terroristas".
Mais tarde, no comando de toda a
operação no Iraque, teve resultados excepcionais que permitiram a saída dos
americanos, mas a situação já voltou à instabilidade. Petraeus estava
conseguindo resultados parecidos no Afeganistão quando foi chamado de volta
para dirigir a CIA.
A fórmula dele, ao contrário dos
americanos no Vietnã e nos primeiros anos no Iraque, não era capturar e/ou
matar insurgentes. O importante era mudar as condições sociais, o que agora se
chama "nation
building", construir nação, que exige sensibilidade cultural,
convivência com as pessoas no território ocupado, proteção e conquista da
confiança da população. Os comandantes que sucederam Petraeus não tiveram o
mesmo talento de liderança e administração. O futuro é incerto e perigoso nos
dois países.
Como em todas situações de
conflitos, há oportunistas e empreendedores do bem e do mal como o fabricante
do Marlboro com maconha que pode voltar a qualquer momento. Pouco depois
daquele encontro com o veterano do Vietnã, levei um maço de Marlboro para o
Brasil com um cigarro vietnamita que dei, sem prevenir, para meu pai. Estávamos
num restaurante e depois da primeira tragada, ele olhou o cigarro, cheirou a
fumaça: "Marlboro diferente este,
tem um cheirinho gostoso de mato". Algumas pessoas na mesa sacaram e
começaram a rir. A querida velha, muito esperta, percebeu algo errado e jogou o
cigarro fora. Pena.
Anos depois, ele ainda perguntava se
ainda existia aquele Marlboro especial”.
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