Fátima Mello (*)
FASE, Brasil
Março de 2013
Os governos do Brasil, Japão e Moçambique estão iniciando a execução
de um grande
programa no norte de Moçambique, no chamado Corredor de Nacala,
região que possui
características físicas e ambientais muito similares ao Cerrado
brasileiro. Apesar do
padrão vigente de falta de informação às comunidades que serão
afetadas ou, muito pior,
da disseminação de informações distorcidas e contraditórias, o que
se diz é que o
ProSavana tem um horizonte de duração de 30 anos, abrangerá uma área
estimada em 14,5
milhões de hectares nas províncias de Nampula, Niassa e Zambezia,
onde cerca de 5
milhões de camponeses vivem e produzem alimentos para o
abastecimento local e regional.
As comunidades camponesas estão concentradas exatamente onde está
prevista a chegada dos
investimentos do ProSavana.
Apesar da ABC (Agência Brasileira de Cooperação) insistir na tese de
que as críticas em
curso decorrem de falhas de comunicação, o diálogo com organizações
e movimentos sociais
parceiros em Moçambique evidencia que o problema é mais grave: o
Brasil está exportando
para a savana moçambicana seus históricos conflitos entre o modelo
de monoculturas em
larga escala do agronegócio voltadas para exportação e o sistema de
produção de
alimentos de base familiar e camponesa. Em recente divulgação de
informações sobre o
ProSavana em Maputo os responsáveis pelo programa apresentaram um
mapa do Corredor de
Nacala dividido em áreas que serão destinadas a atração de
investidores privados para
“culturas de alto valor” e “clusters agrícolas” para a produção de
grãos (entre eles a
soja) pela agricultura “empresarial”, produção familiar de
alimentos pela “agricultura
familiar”, grãos e algodão pela “agricultura empresarial de média e
grande escalas”,
caju e chá pela “agricultura empresarial média e familiar”, e a
“produção integrada de
alimentos e grãos” por todas as categorias. Ou seja, a velha tese da
convivência
possível e harmônica entre os sistemas de produção do grande
agronegócio e da
agricultura familiar e camponesa, que no Brasil é fonte de intensos
conflitos.
Enquanto os governos garantem que o programa trabalhará com a
pequena produção camponesa
em Moçambique, em 2011 a ABC ajudou a organizar a viagem de um grupo
de 40 empresários
da CNA (Confederação Nacional da Agricultura), da região do Cerrado,
estado de Mato
Grosso, para identificarem oportunidades de negócios no Corredor de
Nacala. O presidente
da Associação Mato-Grossence dos Produtores de Algodão (Ampa)
afirmou que “Moçambique é
um Mato Grosso no meio da África, com terra de graça, sem tanto
impedimento ambiental e
frete mais barato para a China” . São inúmeras as notícias de
imprensa que falam de uma
reprodução em Moçambique do Prodecer, o desastre socioambiental
implantado pela
cooperação japonesa no Cerrado brasileiro, que expulsou populações
tradicionais de seus
territórios, abriu um oceano de monoculturas para exportação e
inundou a região de
agrotóxicos.
Até agora se diz que o ProSavana terá 3 eixos: um de fortalecimento
institucional e
pesquisa; um segundo de montagem de um estudo base para a elaboração
do Plano Diretor (a
instituição escolhida para elaborar o estudo é a GV Agro); e um
terceiro de extensão e
modelos onde afirma-se que MDA, Emater entre outros atuariam a favor
das demandas da
sociedade civil de apoio aos pequenos produtores. Em resposta às
demandas de entidades e
redes como UNAC, ORAM, ROSA, Plataforma de Organizações da Sociedade
Civil de Nampula,
MUGED, Fórum Terra, União Provincial de Camponeses de Niassa,
Justiça Ambiental entre
muitas outras por informações, acesso às versões do Plano Diretor em
elaboração e que as
comunidades camponesas sejam consultadas, as autoridades brasileiras
afirmam que o Plano
Diretor será divulgado da melhor forma possível quando estiver
finalizado. Ou seja, um
estudo com base na GV Agro está em elaboração sem que as entidades
que representam os
milhões de camponeses que vivem na região sejam sequer consultadas.
Apenas receberão a
informação quando o Plano Diretor estiver pronto. Eventos de
lançamento de versões do
Plano Diretor são realizados, visando transmitir alguma informação,
mas não para um
diálogo qualificado nem para colher demandas e propostas das
organizações e movimentos
sociais. Conversando com camponeses ao longo do Corredor de Nacala
fica claro que
brasileiros e japoneses estão indo às comunidades para avisar que o
ProSavana está
chegando. Depois afirmarão que fizeram as chamadas consultas a
sociedade civil. Isso que
estão fazendo não é consulta; até agora o que existe é um grave
problema de metodologia
na definição dos conteúdos e dos interesses que serão atendidos pelo
programa, que estão
sendo definidos de cima para baixo, pelos governos e empresas
interessadas.
Percorrendo o Corredor de Nacala fica muito claro o que afirmam as
organizações e
movimentos sociais de Moçambique: a região é toda povoada por
comunidades camponesas,
que com seus sistemas de produção em pousio cultivam milho (o
principal alimento do
país), mandioca, feijão, amendoim. Ali vivem, produzem, realizam
suas festas,
desenvolvem em seus territórios relações familiares e comunitárias.
Na região vivem
cerca de 5 milhões de camponeses. As entidades e movimentos que os
representam
identificam a insegurança alimentar como um grande problema no país,
e desejam que a
produção de alimentos realizada pelo sistema da agricultura familiar
e camponesa seja
fortalecida. Suas propostas incluem crédito para o fortalecimento de
sua produção, apoio
a comercialização e compra da produção por preço justo, apoio às
associações de pequenos
produtores e entidades criadas pelas comunidades. Todos querem
participar de programas
que apóiem seus sistemas de produção. Depois de escutar e dialogar
com eles ao longo do
Corredor e ver suas esperanças de que o ProSavana poderia ir ao
encontro de suas
propostas, quando se chega a Nacala o choque é gritante: uma cidade
tomada pela
construção de uma gigantesca infraestrutura de mega armazéns, portos
(e um aeroporto
construído pela Odebrecht) para exportar a produção da região.
Muitos problemas precisam ser enfrentados. O direito dos camponeses
a terra é o
principal. A Lei de Terras de Moçambique lhes dá o direito de uso da
terra, que é
pública. O direito de uso será concedido ás empresas? Como ficará a
situação dos
camponeses? Como diz um membro da Plataforma de Organizações da
Sociedade Civil de
Nampula, do centro do Corredor até Nampula “não existe área com mais
de 10 hectares de
terras desocupada”. Em Niassa as entidades afirmam que a província é
toda povoada,
exceto nas montanhas, e que todo o Corredor onde está prevista a
chegada do ProSavana é
a área mais habitada. Os governos admitem que haverá
reassentamentos. As entidades
estão vigilantes e mobilizadas para não permitirem mudanças
contrárias aos interesses
dos camponeses na Lei de Terras e na legislação sobre sementes que
corre o risco de ser
alterada para viabilizar o uso de transgênicos. Estão preocupados
com o modelo de
monocultivos em larga escala e intensivo em uso de agrotóxicos que
conheceram quando
visitaram o estado do Mato Grosso e a área do Prodecer. Enquanto
isso, realizam ações de
resistência produtiva e de fortalecimento de alternativas, como é o
caso do intercâmbio
entre UNAC e MPA/Via Campesina sobre sementes nativas.
Há uma década por orientação do presidente Lula a política externa
brasileira começou a
se abrir ao diálogo com organizações e movimentos sociais. Com isso
se fortaleceu a
necessária disputa de rumos sobre a presença do Brasil no mundo,
pois ela é o espelho da
correlação de forças existente em nossa sociedade. O caso do
ProSavana é crucial para
que as conquistas dos movimentos sociais do campo brasileiro a favor
da segurança e
soberania alimentar, traduzidas em programas de apoio a produção e
comercialização da
produção familiar e camponesa, sejam refletidas na presença
brasileira no Corredor de
Nacala. Afinal, é disso que os camponeses e pequenos produtores
precisam, no Brasil e em
Moçambique, para se fortalecerem contra as injustiças sociais e
ambientais e violações
de direitos cometidas pelo modelo do agronegócio, para garantirem o
direito a terra, a
segurança e soberania alimentar da população. Que a presença do
Brasil em Moçambique
fortaleça os direitos dos camponeses, e que assim o Brasil seja
capaz de demonstrar na
prática que sua crescente presença como ator global visa de fato
reduzir as
desigualdades e fazer justiça.
(*) Agradecimentos a UNAC, ORAM e Oxfam Internacional no Brasil e
Moçambique.
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