sábado, 9 de março de 2013

Choque necessário - entrevista com Hugo Chávez


Publicado na Carta Capital em janeiro de 2006

Há qualquer coisa de meticuloso no comportamento de Hugo Chávez, o bolivariano presidente da Venezuela. De muito preciso, como é próprio de quem não se permite gestos inúteis e conhece o papel de cor e salteado. Sobre a mesa da entrevista, com movimento pausado, depositou uma edição de CartaCapital de quase dez anos atrás. Soletrava a chamada de capa: “O Brasil na periferia da rede”. Falava-se ali de como os senhores do mundo pretendiam conduzir a globalização à sombra do neoliberalismo.
Nem por isso, houve qualquer pauta prévia. Perguntamos o que quisemos e tudo teve resposta. A única pergunta que faltou poderia ser a seguinte: “O senhor admira Lula e quer ser seu aliado, mas como explica a política neoliberal do ministro Palocci?” Não a fizemos porque a esta Chávez não responderia. Por razões óbvias.
O presidente venezuelano demonstra saber a que veio. No contato direto, surpreende a diferença com a imagem das fotos. Menos corpulento. Ele é um índio sólido, quase sempre sorridente. Afável, elegante no trato, fluente na palavra, comedido no uso da retórica.
CartaCapital: Entrevistamos Lula há mais ou menos dois meses...
Hugo Chávez: Sim, ele me deu a revista.
CC: Ele disse então que a direita da Venezuela e do Brasil são golpistas. É verdade?
HC: Creio que as direitas são muito parecidas em todo o mundo. As direitas falam de democracia quando lhes convém. A elite, a direita sempre é a elite. O poder tradicional. Elite política, militar, empresarial. Formam a direita, é a gente que se opõe às mudanças. Nesta última década do século XX, na América Latina, a direita se subordinou ainda ao Consenso de Washington.
CC: Ao neoliberalismo.
HC: Isso. O neoliberalismo veio para arrasar este continente. Disse Eduardo Galeano, o escritor uruguaio, que a direita vem nos arrasando há séculos. Eu li a entrevista com Lula e ele comentou comigo aquela idéia, e voltou a expô-la ultimamente. No dia 16 de dezembro nos encontramos em Pernambuco, colocando a pedra fundamental da Refinaria Abreu de Lima. Ele discursou e voltou a repetir o que dissera a CartaCapital. Voltou a apontar a semelhança. Eu creio que a direita geralmente oferece uma “lua-de-mel”. Um período de trégua. E depois te “ganha”.
CC: Depois das eleições.
HC: Claro. É aquela coisa: “Se não pode vencer seu inimigo, una-se a ele”. Ou o atraia. Foi o meu caso, igualzinho. Os dois primeiros anos foram uma lua-de-mel. A lua-de-mel no plano interno e no plano mundial. Aznar (José María, primeiro-ministro da Espanha), Clinton (Bill, ex-presidente dos Estados Unidos), as grandes figuras da oligarquia da Venezuela. Se você se entrega, bem-vindo. Mas, se você se mantém firme no propósito de alavancar a transformação em seu país, então eles o condenam à morte.
CC: Quando cessou a lua-de-mel com a direita na Venezuela?
HC: Lá sempre houve esse choque de opiniões. Mas, em 1999, tivemos um pouco de lua-de-mel. Foi um processo distinto, porque ganhamos as eleições e logo veio a Constituinte. Mas não havia esse confronto mortal. Não pregavam “fora Chávez”, “morte a Chávez”. Dos hierarcas católicos até a alguns militares e os grandes meios de comunicação. Mas logo em 2001, quando se deram conta, depois que aprovamos a Constituição, que nós estávamos decididos a aplicar a Constituição... porque há muitas Constituições no mundo, boas, mas a questão está em aplicá-las. Dizia Montesquieu, no “Espírito das Leis”, que a Constituição é como uma nuvem e as leis são como a água quando cai sobre a terra. A lei é que põe a Constituição em prática. Pode-se ter uma bela Constituição, mas se não se fazem leis que possam impactar a realidade, ela vira letra morta. E foi assim com a Venezuela, nos anos 2000 e 2001, quando começamos a fazer leis.
CC: Que leis?
HC: As leis para cumprir o que determinava a Constituição. A lei de hidrocarbonetos, que afetou, sobretudo, as transnacionais. A lei de bancos, para quebrar com sua hegemonia. Ou seja, começar a acabar, porque o processo é gradual. A hegemonia da maior oligarquia financeira, que controlava os bancos privados e públicos e o Banco Central conforme seus caprichos. Fizemos uma lei de terras para combater o latifúndio, resgatar as terras para reparti-las com os camponeses. Fizemos uma lei de microfinanças, para dar crédito aos pobres, à pequena empresa e à média empresa. Fizemos uma lei de cooperativismo, para incentivar essa forma de organização coletiva dos trabalhadores. A lei de pesca, para que a pesca de arrastão se desse em alto-mar e deixasse as 3 milhas costeiras livres para os pequenos pescadores artesanais. Fizemos a lei da costa e de águas, proibindo a privatização da costa e das praias. Na Argentina privatizaram toda a costa. Há pouco tempo estivemos em Montevidéu. Fomos ao rio da Prata com Kirchner (Néstor, presidente da Argentina) e ele me disse: “Chávez, a água aqui é toda privatizada, a costa do rio, o grande balneário. Os uruguaios se salvaram, deixaram na mão do Estado como deve ser”. Passe para o coletivo e não para o setor privado que cobra da população o acesso para desfrutar a paisagem. Enfim, fizemos um conjunto de leis, e foi como destapar o ninho da serpente. Aí vieram na jugular. Já vamos ter Evo (Morales, presidente eleito da Bolívia), então eu propus a Lula e a Kirchner darmos apoio político a Evo, porque mais cedo do que se pensa começará a investida da direita boliviana, impulsionada pela direita de Washington, pela direita que quer dominar o mundo.
Fonte: Mino Carta e Maurício Dias - trechos da entrevista publicada na revista Carta

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