por Lenio Luiz Streck
Explico. Há vários modos de analisar um fato. O presidente Lincoln contava uma história que
mostra os diversos lados de uma narrativa: Um rapaz disputava um
emprego público e, para tal, precisava responder a um questionário.
Estava indo muito bem até que esbarrou numa questão delicada: qual a
causa da morte do pai? É que seu pai tinha sido enforcado como ladrão de cavalos. O candidato pensou, pensou, até que veio a luz: “Meu pai participava de uma cerimônia pública, quando a plataforma cedeu”. Dizem que dali é que veio a palavra “bingo”. Algo como “eureca”. Epifânico.
Pronto. É isso. Pois eu
tentarei comentar a indignação de parte da comunidade jurídica (e dos
assinantes do documento que já deve ter passado de 200 mil na hora de
fechar este texto) com a indicação do ministro Moraes também de um modo
diferente. Vamos lá. Por que a surpresa se:
1) O ministro AM escreveu
um manual que vem sendo um dos mais – se não o mais – vendido sobre
Direito Constitucional; foram centenas de milhares de exemplares;
2) Critica-se esse tipo de
cultura manualesca – particularmente, faço esse tipo de crítica há 20
anos – mas AM é repetidamente citado pelos ministros do STJ e STF, por
juízes, tribunais, advogados e membros do MP (então, onde a surpresa?);
3) AM dominou, antes dos outros, o mercado concurseiro;
4) Ninguém vendeu tantos livros como ele;
5) Seu livro principal está em 99% das bancadas dos fóruns e tribunais (o que mostra que foi comprado com dinheiro público);
6) Durante anos – agora parece que surgiram dezenas de concorrentes – não havia concurso sem AM na bibliografia obrigatória;
7) Convidado –
principalmente depois que assumiu o Ministério da Justiça – para falar
nos principais congressos de direito e aplaudido muitas vezes de pé pela
estudantada; nem falo das filas para selfie e autógrafos;
8) Suas palestras são
leves e simples; os estudantes gostam de suas anedotas, porque
facilmente entendíveis pelo “homo juridicus” médio, em um país no qual
os estudantes sequer entendem uma ironia ou sarcasmo;
9) AM atende, desde os
anos 1990, as demandas do imaginário jurídico, escrevendo de forma
simples e facilitada – tudo tão ao gosto da malta concurseira e do senso
comum teórico – que, e isso é inegável, fez “escola” e, por isso, é/foi
tão imitado; não há dúvida de que AM foi precursor nesse ramo;
10) Sem medo de errar, 80% dos alunos e professores que estão lecionando por aí não escreveram coisa melhor que AM;
11) AM faz uma dogmática
jurídica semelhante àquela que domina as práticas jurídicas, isto é,
seus livros fazem uma glosa das decisões tribunalícias, com baixo senso
crítico, cujo resultado é um imenso sucesso de público e renda;
12) Em termos
teórico-dogmáticos, AM é a favor da relativização da presunção da
inocência (e daí? O STF também é em sua maioria – então, surpresa por
que?);
13) AM já se colocou a
favor da relativização da prova ilícita (e daí? Isso é igual ao que
pensa o MPF – vejam o livro do Dallagnol e as decisões de Moro);
14) Fazendo rigorosamente o
que faz grande parte da doutrina, AM escreve sem seguir qualquer matriz
teórica, fazendo uma mixagem própria da dogmática jurídica; daí a
pergunta: no que ele faz diferente de outras teses e livros que enchem
as prateleiras por aí?);
15) AM confunde o sentido
do que foi a República de Weimar (mas quantos dos alunos e professores
sabem o que representou esse evento histórico?);
16) Sobre interpretação constitucional, AM faz o que 90% da doutrina e tribunais fazem — reproduz os cânones mais conservadores e fragilizadores da autonomia do Direito (de novo: onde está, pois, a surpresa? Querem uma lista de livros que fazem pior que isso?);
17) AM gosta da tese de
que princípios são valores (ora, há ministros no STF que pensam
exatamente isso, além desse mantra ser dominante na doutrina e até na
Pós-graduação de Pindorama – portanto, mais um ponto a favor de AM);
18) AM acredita na
ponderação à brasileira (ups – no que ele difere do jurista médio de
Pindorama? Isso foi posto até no novo Código de Processo Civil; de novo,
ponto para ele);
19) Ao que li nos seus
livros, AM acha que valores podem valer mais do que a lei, ou seja, a
moral podem filtrar o Direito – claro que não com essas palavras (e digo
mais uma vez: e daí? Querem que eu elenque decisões das cortes nessa
linha? Mais um ponto a favor de AM);
20) AM, quando secretário
de segurança e recentemente ministro da Justiça, deixou claro ser da
linha dura do Direito, algo como “lei e ordem”; permito-me dizer: e
daí? Qual é a diferença do que
vem sendo feito hoje em matéria penal, quando temos 700 mil presos, dos
quais 350 mil provisórios, que, somados aos que cumprem pena domiciliar,
chega a um milhão? Grande coisa. No STF há votos que não aceitam
insignificância se houver reincidência; portanto, o novo ministro AM se
sentirá em casa);
21) Não recebeu o veto do Sergio Moro (claro, ao que li, também não foi elogiado, mas é mais um ponto a favor).
A lista a favor da escolha
de Alexandre de Moraes poderia ser – e é – muito maior. Relatei isso
para mostrar que isso que o indicado ao STF pensa e escreve não é diferente do que pensa a maioria dos juristas e o que se ensina nas faculdades e cursinhos do país. AM é produto e produtor de seu meio. O indicado representa um padrão dominante no imaginário jurídico. E ele não está só.
Então: a) Por que a
surpresa? b) A dogmática jurídica média praticada no país é melhor do
que isso que relatei? c) Se é, então está bem escondida, porque sequer
conseguimos fazer cumprir o NCPC (leiam os livros sobre isso; leiam a
verdadeira desobediência civil que o discurso standard da dogmática vem
fazendo...). O que quero dizer – e com isso acuso (j’accuse, para lembrar E. Zola) o ensino jurídico prêt-à-porter e a dogmática fabricante de próteses para fantasmas (o conceito é de Warat) que construímos nesses 27 anos mesmo tendo a melhor CF do mundo. Um país em que é necessário um tribunal proibir revistas coletivas nas casas nas vilas e favelas é, efetivamente, um país que é isso aí mesmo. Portanto,
caros leitores, nada de surpresa e indignação de fariseu. A propósito:
não foi o STF que decidiu, não faz muito, que , à noite, a casa não é
assim um “asilo tão inviolável”? E o que fez a comunidade jurídica?
Quedou-se silente. Como se quedou silente com o total esvaziamento do
artigo 212 do Código de Processo Penal, que diz que perguntas às
testemunhas somente podem ser complementares. E o que fizeram os
tribunais? Nada. Aliás, foram apoiados por parcela da doutrina
processual penal.
Daí a minha lista de pontos a favor de AM para ir ao Supremo. Não há nada do que hoje se faz – lato sensu —
no direito brasileiro que, de algum modo, já não tenha tido relação
com o imaginário jurídico proporcionado por juristas como Alexandre de
Moraes. Parcela considerável dos que criticam o indicado fazem a mesma
coisa que ele já escreveu há mais de vinte anos e continua escrevendo e
praticando. Vi juízes indignados com a indicação. Pois é. Mas vendo como
muitos deles decidem, não há nada de diferente do que AM (e da
literatura que ele representa no contexto da produção jurídica) vem
dizendo, pregando e escrevendo. E ele levará isso para a Suprema Corte.
Ou seja, ele representa magnificamente o imaginário jurídico
predominante nas práticas de salas de aulas e nos fóruns e tribunais do
país.
Numa palavra: AM não
representa àquilo que eu venho escrevendo há mais de 20 anos. Se ele é
tese, eu sou antítese. E vice-versa. Mas o presidente indica quem ele
quer. Ele simplesmente olhou o panorama do Direito praticado no pais. Do
Planalto – ao qual ele chegou do modo como todos sabemos –, olhou a
rasa planície e fez sua indicação. Foi coerente, convenhamos. E o
indicado representa o cerne do imaginário-jurídico-senso-comum-dominante
no direito brasileiro (embora muita gente “senso comum” agora negue
isso). De novo: por que a surpresa? Basta verificar no que se
transformou o direito. Ou alguém acredita que “isso que está aí”
(desmonte da CF, descumprimentos das leis, caos no sistema
penitenciário, prisão de ofício em pedido de HC, motorista se
aposentando na Bahia com o salário de R$ 20 mil reais, etc) é fruto de
geração espontânea? Milhares de juízes e promotores (e agentes públicos
em geral) passaram nos concursos estudando Alexandre de Moraes e
literatura semelhante, a cada ano mais e mais reciclada, chegando ao ápice com os direitos mastigados, simplificados, simplificadinhas, resuminhos e resumões,
além dos resumos dos resumos e do direito sendo ensinado por música e
por milhares de cursos de especialização que rendem rios de dinheiro
para os, quem sabe, professores que agora mostram sua indignação com a
indicação de AM para o STF. Deveriam vibrar: o mestre chegou lá.
Em vezes de críticas, homenagens. E mesmo muita gente crítica (ou
sedizente crítica) deveria reler seus (deles) livros e no que ali está
escrito sobre “valores”, “ponderação”, “livre convencimento”, princípios
como valores, pamprincipiologismo, etc. Se defendem esses conceitos,
não diferem do que estão criticando. Vai ver, difere apenas no estilo,
mas o conteúdo é muito próximo.
Eis, portanto, meu outro
modo de dizer algo. É paradoxal, mas parece que Michel Temer ajudou em
muito o Direito indicando AM. Se a comunidade jurídica souber ler o
fenômeno, pode dele tirar lições. Ou não (o que é mais provável, em face
da tese do paradoxo do Cretense: o conjunto dos enunciados aos quais eu
me refiro...o meu não faz parte).
Pois é. A plataforma, em
cerimonias públicas, as vezes cede. Mas, se não gostaram da metáfora do
enforcamento contada pelo presidente Lincoln, relembro a do cego de
Paris: Um cego mendigava em Paris; colocou um pequeno cartaz que dizia:
“Sou cego. Ajudem-me”. O
povo passava e ninguém se compadecia. Passou um poeta (que, segundo a
lenda, podia ser um publicitário, mas não importa: prefiro esta versão),
que, pegando o cartaz, reescreveu-o. E lá se foi, deixando o mendigo a
mendigar. Horas depois, retornou ao local e viu que a bandeja do mendigo
estava repleta de moedas. Ao sentir a aproximação do poeta (através de
seus outros aguçados sentidos), o mendigo lhe perguntou acerca do que
escrevera no cartaz... E o poeta respondeu: “em lugar de ‘sou cego. Ajudem-me’, escrevi: ‘É primavera em Paris... e eu não posso vê-la’”.
Que a cegueira dos juristas não impeça de vermos a primavera do Direito no Brasil, que um dia há de florescer.
Lenio Luiz Streck - jurista e professor
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