no site Carta Maior
Martín Granovsky - Página/12
postado em: 03/06/2014
Chicago - Ele vive, pesquisa e leciona em Havana, onde integra o Comitê Acadêmico do Mestrado em Relações Internacionais, responsável pelo Instituto Superior de Relações Internacionais Raúl Roa García, que faz parte do Ministério de Relações Exteriores de Cuba. E, ao mesmo tempo, o cientista político Luis Suárez Salazar desfruta não apenas de intercâmbios na América Latina (foi membro diretivo do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais e é um participante ativo de seus encontros), mas também dos Estados Unidos.
Em Nova York, Suárez Salazar participou de um seminário sobre Cuba organizado pela Clacso e pelo observatório latino-americano da New School. Depois, voou a Chicago para o congresso da Associação de Estudos Latino-amerianos. Ali, no espaço da Clacso, conversou com o Página/12 sobre o que Cuba chama desde 2011 de “atualização”, que é a mudança econômica – mas não apenas isso.
Nos últimos anos, os cubanos com quem se pode falar – funcionários ou pesquisadores, ou cidadãos que andam por Havana – parecem conjeturar, próximos aos cenários de tentativa e erro, e estão esperançosos de que as transformações sociais deem certo. Dizem bastante “acredito que” e “tomara”.
Realmente, hoje, em diferentes setores da sociedade cubana, é possível encontrar muitas margens de incerteza relacionadas ao impacto da atualização. Na vida cotidiana, na família... Em tudo.
Por que justo agora?
Porque é o momento em que a atualização está enfrentando um de seus temas mais complexos, que é a eliminação da dualidade monetária. Não é um ato simplesmente administrativo. Não é uma decisão abstrata sobre se a economia continua com o peso cubano conversível ou com o não conversível. Tem a ver com um fato real, e se a estrutura econômica do país não puder sustentar essa decisão, ao final se poderão reproduzir fenômenos que já ocorreram em outros países. Pode ser que mude a moeda, mas a inflação a devora e você vai cortando os zeros. Por isso, é melhor não simplificar a realidade.
Não é um jogo de letras entre o peso cubano, o CUP, e o peso cubano conversível, o CUC.
Não. No fim do caminho de eliminação da dualidade, nos campos econômico e social, o problema maior é saber qual será o poder aquisitivo real da moeda, seja ela qual for. Quantos bens e serviços poderei adquirir para satisfazer as necessidades básicas e essenciais. Isso gera incerteza em muitas pessoas. Já existe uma espécie de costume à dualidade monetária. As pessoas e as famílias vivem estabelecendo estratégias diante dessa realidade. Sem considerar o mercado negro, que é outro assunto – um cubano domina o panorama de quatro mercados, incluindo o dos autônomos.
Seja ela má ou boa, essa é a realidade do costume cotidiano.
E a partir daí pode haver um elemento de contradição porque todo processo complexo gera contradições. O essencial, é claro, é que a economia tenha capacidade de sustentação. Que setores-chave, como o alimentício, não dependam tanto das importações, porque importariam inflação. E que, simultaneamente, se realize com êxito o reordenamento empresarial para a chamada empresa estatal socialista. Se não há uma medida única para avaliar a eficácia, tudo se distorce. O setor estatal continua sendo um componente enorme da economia e funciona com mais de uma moeda.
Mas o plano de atualização econômica quer reduzir o peso do setor estatal na economia.
Sim, a aposta é de que o setor estatal mantenha um peso de apenas 60 ou 70 por cento. Cuba era uma das economias mais estatizadas dos processos socialistas. Estavam fora os pequenos agricultores e as cooperativas agrícolas. O Estado mantém o controle do comércio exterior.
Os cubanos, funcionários e não funcionários, também parecem metidos em uma dinâmica que terá muito de tentativa e erro.
Não há apenas incerteza. Os desejos e as expectativas também contam. Embora os projetos aprovados pelo congresso do Partido Comunista tenham estipulado um grupo grande de objetivos, ficou claro que de fato haveria espaço para uma certa dose de tentativa e erro. Também haveria espaço para que surgissem novas demandas ou exigências que – ainda que não tivessem sido expressadas – deveriam ser abordadas. Não sou adivinho, mas acredito que a perspectiva é importante, e para a análise eu me movo em uma gama de cenários. Mas, em última instância, tudo se moverá com tempos políticos.
Qual é o pior cenário?
É aquele no qual o impacto da atualização for muito adverso, e isso com independência da vontade coletiva. Se for muito adverso, pode criar custos sociais e políticos que a sociedade não esteja disposta a absorver.
Há outro cenário menos crítico?
Bem, o processo de atualização se baseia em uma sequência política. Deverá ir criando a cada momento os consensos políticos necessários para avançar. Sem consensos, não se pode construir os 40 por cento da economia que não estiver nas mãos do Estado.
Isso pressupõe a ação de novos atores. De novos sujeitos que hoje sequer existem.
Mais atores, sim, e sobretudo mais atores convertidos em sujeitos com capacidade de elaborar politicamente os consensos. E, por sua vez, sujeitos capazes de servir como elemento de diálogo para permitir que as pessoas sejam ouvidas.
Não há um consenso único, se uma vez e para sempre.
Não existem os consensos ad eternum. E acrescento outra coisa, como se a complexidade não bastasse. É algo que, em minha análise, tem a ver com um fato real e objetivo: em Cuba, estamos em uma transição geracional. Neste momento, ainda estão atuando cinco gerações políticas. Não falo de demografia. Falo de uma geração determinada como tal por conta do momento em que cada um entrou na vida política. Uma é a geração histórica.
Essa primeira geração seria, suponho, aquela que protagonizou a revolução.
Essa mesma. Tem peso não apenas na liderança, mas também no conjunto da sociedade cubana. Como fruto da obra da revolução, a expectativa de vida aumentou, e tem muita gente politicamente ativa com mais de 75 anos, desde o cenário nacional até o comunitário. Meu pai tem 90 anos e ainda está fazendo política.
O que ele faz?
A emissora local do seu bairro pede opiniões e ele fala. Também trabalha no Conselho de Defesa da Revolução dentro da comunidade.
E qual é a segunda geração?
É a chamada geração guevarista. É a minha. Os que entramos na vida política nos primeiros anos posteriores ao triunfo da revolução. A primeira tarefa política que minha geração teve foi se alfabetizar. Falo de “geração guevarista” por conta da influência sobre nós da personalidade de Che, seu pensamento, suas ideias sobre o papel específico da juventude, sua concepção sobre o homem novo... Sentimos que ele nos entregava um projeto de vida ético e associado ao internacionalismo, aos valores morais, a pensar de maneira distinta do marxismo.
E a terceira geração?
É a da revolução institucionalizada. A que começa a fazer política com a primeira Constituição, em 1976, quando também outorga o direito de voto às pessoas com 16 anos. Essa geração colocou os sargentos e soldados em Angola. E começaram a ser deputados, e foram assumindo responsabilidade sociais às vezes com idades pouco imagináveis.
Vamos à quarta geração.
Depois vem a geração do período especial. A que entrou para a política quando tudo estava desmoronando. Caía o campo socialista, os sonhos, as ideias... uma etapa enormemente complexa. Nesse período, uma coisa se desarticulou: a ideia de que, com o estudo contínuo e com o trabalho, se poderia conseguir progresso material e social, ascensão social. Que se poderia aspirar a melhores salários e a outro nível de vida, inclusive em relação a seus pais. Essa desarticulação foi percebida quando muitos universitários graduados tiveram que procurar empregos diferentes daqueles que queriam exercer quando estavam estudando. Ou quando muitos interromperam suas carreiras. Os homens abandonaram mais do que as mulheres, e isso se nota no mundo atual do Estado cubano.
As mulheres terminaram sua qualificação naquele momento e atualmente são funcionárias do Estado.
Sim, em níveis distintos. Com todas as quedas que sofreu e presenciou, essa quarta geração continuou participando de um milagre político. O milagre é o fato de a Revolução Cubana ter continuado sustentável. Eu falo do heroísmo cotidiano de um povo como sujeito coletivo.
E a quinta geração, professor?
A geração da batalha de ideias, para usar uma expressão que Fidel utiliza há muitíssimos anos. A geração que entrou na vida política no começo do século XXI. O caso Elián mobilizou muitos jovens, muitos estudantes.
Claro, essa história é exatamente do ano 2000. Elián Gonzáles tinha seis anos e sua mãe o tirou de Cuba em uma balsa, mas ela morreu no caminho, e seu pai, que havia ficado em Cuba, pediu aos Estados Unidos a devolução do menino.
Foi uma batalha enorme. Bem, volto ao comentário inicial sobre as gerações e sua atuação na construção de consenso políticos: essas cinco gerações ainda estão participando. Mas na ordem lógica e natural das coisas, uma geração histórica está terminando seu ciclo político e a geração guevarista está em um nível intermediário. Para mim, o peso maior da atualização recairá sobre as outras três gerações: a da institucionalização, a do período especial e a nova, que está a no mínimo dez anos fazendo política. Quem estuda as juventudes cubanas argumenta que há uma inversão de prioridades. Descobriram que, hoje, vem primeiro a formação profissional e a família, e logo depois o projeto social. Antes, era o inverso: o projeto social vinha primeiro. Mas não paramos por aqui. A pesquisadora María Isabel Domínguez argumenta que, quando se pergunta sobre as identidades, prevalece o sentido de pertencimento. Eles têm identidade nacional: “Sou cubano”, dizem. Seria melhor se eles se identificassem como latino-americanos nascidos em Cuba, mas essa é a minha vontade, não é? O certo é que, antes de se definirem como mulheres, trabalhadores do campo ou qualquer outra coisa, eles apontam um território: Cuba. Às vezes, há desconfiança, mas não se leva em conta que essa geração também participou de uma discussão sobre os alinhamentos dos quais fizeram parte sete milhões de cubanos. Volto ao tema dos consensos. Quando falamos em um socialismo próspero e sustentável, o que essas gerações vão entender por “prosperidade”?
O que vão entender?
Veremos. Insisto: não falo com desconfiança, mas com a ideia de que o futuro não está fechado, entre outras coisas, por conta do peso que a participação tem. A participação é um dos grandes consensos atuais da sociedade cubana. Na primeira eleição popular – as eleições gerais de 2012/2013 –, 85% dos cidadãos exerceram seu direito ao voto. E o voto é voluntário, o que implica que há uma grande massa de pessoas comprometidas com o processo de atualização. Assim como há população economicamente ativa, há população politicamente ativa. São cubanos que participam de distintas maneiras, e muitas vezes desde muito jovens, em organizações estudantis. Eu tenho confiança de que o cenário mais provável seja que a revolução continue contando com o consenso e com o tempo necessário para redefinir o futuro. Nessa lógica, elevar o nível da participação e a qualidade dela é importante. Em cuba, há muitos canais de participação cidadã. Votam os que têm mais de 16 anos, mas não se participa apenas votando. É necessário criar mecanismos institucionais para incrementar a participação na tomada de decisões.
E em uma dinâmica de tentativa e erro, quem terá a legitimidade de apontar o que é um erro e o que não é?
A classificação do que é um erro precisa ser coletiva. Isso carrega consigo um processo maior de descentralização. Acredito que o planejamento e o plano precisam ser mantidos. Mas esse planejamento deve ter um nível maior de descentralização e um nível maior de democratização para o debate. Discutamos a participação dos trabalhadores nas empresas estatais. Não tiremos a responsabilidade dos administradores, mas reativemos o movimento sindical. Que os estudantes tenham maior participação. Em uma sociedade complexa, não pretenda que tudo se realize em grandes discussões nacionais. Não basta. E tampouco ache que nada do que ocorre deixa de se relacionar com os tempos políticos.
E assim está o mundo, que continua caminhando.
E a revolução é o que é hoje (talvez não é o que queríamos, mas é assim) porque faz parte de uma revolução inconclusiva, em processo ou em desenvolvimento, da América Latina e do Caribe. Como hoje o entorno é favorável a Cuba, toda a atualização vai se desenvolvendo dentro de um contexto favorável.
O que, exatamente, é favorável?
Ações como as do novo governo mexicano, de reestruturar a dívida. A transformação do Brasil no primeiro investidor privado. O entorno global importa bastante. Evidentemente, um dos problemas permanentes encontrados ao longo da nação cubana – agora falo da história da nação e não da história da revolução – é como interagir entre uma pequena ilha que primeiro quis ser independente e depois quis ser socialista e uma potência que tem um projeto radicalmente oposto: a dependência, e inclusive em algum momento, a anexação. Aí importa o novo papel da China, essa posição da Rússia no mundo, a eventual ampliação do grupo Brics, de Brasil, Rússia, China e África do Sul. A Argentina e outros países se somarão. Se esse grupo se ampliar e aprofundar seu trabalho, melhor para Cuba.
O país avançou muitíssimo em relação à América Latina e ao Caribe. Hoje mantém dentro da região as melhores relações históricas não apenas durante a revolução, mas em toda a sua história: Celac, Carisom, Alba, visita de Estado do presidente mexicano no começo do mandato. Cuba é uma ilha, mas não uma ínsula. Não vive em um tubo de ensaio. Para mim, é importante que, quando falemos do futuro possível, nós o olhemos em associação com os futuros que ocorrerão na América Latina, no Caribe, nas relações com os Estados Unidos, no mundo multipolar que está sendo construído, na aposta por uma América Latina unida e por um mundo multipolar. Tomara que consigamos evitar que não voltem a ocorrer reconcentrações econômicas perniciosas, que em um momento determinado podem provocar transtornos políticos e sociais.
Tradução: Daniella Cambaúva
Chicago - Ele vive, pesquisa e leciona em Havana, onde integra o Comitê Acadêmico do Mestrado em Relações Internacionais, responsável pelo Instituto Superior de Relações Internacionais Raúl Roa García, que faz parte do Ministério de Relações Exteriores de Cuba. E, ao mesmo tempo, o cientista político Luis Suárez Salazar desfruta não apenas de intercâmbios na América Latina (foi membro diretivo do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais e é um participante ativo de seus encontros), mas também dos Estados Unidos.
Em Nova York, Suárez Salazar participou de um seminário sobre Cuba organizado pela Clacso e pelo observatório latino-americano da New School. Depois, voou a Chicago para o congresso da Associação de Estudos Latino-amerianos. Ali, no espaço da Clacso, conversou com o Página/12 sobre o que Cuba chama desde 2011 de “atualização”, que é a mudança econômica – mas não apenas isso.
Nos últimos anos, os cubanos com quem se pode falar – funcionários ou pesquisadores, ou cidadãos que andam por Havana – parecem conjeturar, próximos aos cenários de tentativa e erro, e estão esperançosos de que as transformações sociais deem certo. Dizem bastante “acredito que” e “tomara”.
Realmente, hoje, em diferentes setores da sociedade cubana, é possível encontrar muitas margens de incerteza relacionadas ao impacto da atualização. Na vida cotidiana, na família... Em tudo.
Por que justo agora?
Porque é o momento em que a atualização está enfrentando um de seus temas mais complexos, que é a eliminação da dualidade monetária. Não é um ato simplesmente administrativo. Não é uma decisão abstrata sobre se a economia continua com o peso cubano conversível ou com o não conversível. Tem a ver com um fato real, e se a estrutura econômica do país não puder sustentar essa decisão, ao final se poderão reproduzir fenômenos que já ocorreram em outros países. Pode ser que mude a moeda, mas a inflação a devora e você vai cortando os zeros. Por isso, é melhor não simplificar a realidade.
Não é um jogo de letras entre o peso cubano, o CUP, e o peso cubano conversível, o CUC.
Não. No fim do caminho de eliminação da dualidade, nos campos econômico e social, o problema maior é saber qual será o poder aquisitivo real da moeda, seja ela qual for. Quantos bens e serviços poderei adquirir para satisfazer as necessidades básicas e essenciais. Isso gera incerteza em muitas pessoas. Já existe uma espécie de costume à dualidade monetária. As pessoas e as famílias vivem estabelecendo estratégias diante dessa realidade. Sem considerar o mercado negro, que é outro assunto – um cubano domina o panorama de quatro mercados, incluindo o dos autônomos.
Seja ela má ou boa, essa é a realidade do costume cotidiano.
E a partir daí pode haver um elemento de contradição porque todo processo complexo gera contradições. O essencial, é claro, é que a economia tenha capacidade de sustentação. Que setores-chave, como o alimentício, não dependam tanto das importações, porque importariam inflação. E que, simultaneamente, se realize com êxito o reordenamento empresarial para a chamada empresa estatal socialista. Se não há uma medida única para avaliar a eficácia, tudo se distorce. O setor estatal continua sendo um componente enorme da economia e funciona com mais de uma moeda.
Mas o plano de atualização econômica quer reduzir o peso do setor estatal na economia.
Sim, a aposta é de que o setor estatal mantenha um peso de apenas 60 ou 70 por cento. Cuba era uma das economias mais estatizadas dos processos socialistas. Estavam fora os pequenos agricultores e as cooperativas agrícolas. O Estado mantém o controle do comércio exterior.
Os cubanos, funcionários e não funcionários, também parecem metidos em uma dinâmica que terá muito de tentativa e erro.
Não há apenas incerteza. Os desejos e as expectativas também contam. Embora os projetos aprovados pelo congresso do Partido Comunista tenham estipulado um grupo grande de objetivos, ficou claro que de fato haveria espaço para uma certa dose de tentativa e erro. Também haveria espaço para que surgissem novas demandas ou exigências que – ainda que não tivessem sido expressadas – deveriam ser abordadas. Não sou adivinho, mas acredito que a perspectiva é importante, e para a análise eu me movo em uma gama de cenários. Mas, em última instância, tudo se moverá com tempos políticos.
Qual é o pior cenário?
É aquele no qual o impacto da atualização for muito adverso, e isso com independência da vontade coletiva. Se for muito adverso, pode criar custos sociais e políticos que a sociedade não esteja disposta a absorver.
Há outro cenário menos crítico?
Bem, o processo de atualização se baseia em uma sequência política. Deverá ir criando a cada momento os consensos políticos necessários para avançar. Sem consensos, não se pode construir os 40 por cento da economia que não estiver nas mãos do Estado.
Isso pressupõe a ação de novos atores. De novos sujeitos que hoje sequer existem.
Mais atores, sim, e sobretudo mais atores convertidos em sujeitos com capacidade de elaborar politicamente os consensos. E, por sua vez, sujeitos capazes de servir como elemento de diálogo para permitir que as pessoas sejam ouvidas.
Não há um consenso único, se uma vez e para sempre.
Não existem os consensos ad eternum. E acrescento outra coisa, como se a complexidade não bastasse. É algo que, em minha análise, tem a ver com um fato real e objetivo: em Cuba, estamos em uma transição geracional. Neste momento, ainda estão atuando cinco gerações políticas. Não falo de demografia. Falo de uma geração determinada como tal por conta do momento em que cada um entrou na vida política. Uma é a geração histórica.
Essa primeira geração seria, suponho, aquela que protagonizou a revolução.
Essa mesma. Tem peso não apenas na liderança, mas também no conjunto da sociedade cubana. Como fruto da obra da revolução, a expectativa de vida aumentou, e tem muita gente politicamente ativa com mais de 75 anos, desde o cenário nacional até o comunitário. Meu pai tem 90 anos e ainda está fazendo política.
O que ele faz?
A emissora local do seu bairro pede opiniões e ele fala. Também trabalha no Conselho de Defesa da Revolução dentro da comunidade.
E qual é a segunda geração?
É a chamada geração guevarista. É a minha. Os que entramos na vida política nos primeiros anos posteriores ao triunfo da revolução. A primeira tarefa política que minha geração teve foi se alfabetizar. Falo de “geração guevarista” por conta da influência sobre nós da personalidade de Che, seu pensamento, suas ideias sobre o papel específico da juventude, sua concepção sobre o homem novo... Sentimos que ele nos entregava um projeto de vida ético e associado ao internacionalismo, aos valores morais, a pensar de maneira distinta do marxismo.
E a terceira geração?
É a da revolução institucionalizada. A que começa a fazer política com a primeira Constituição, em 1976, quando também outorga o direito de voto às pessoas com 16 anos. Essa geração colocou os sargentos e soldados em Angola. E começaram a ser deputados, e foram assumindo responsabilidade sociais às vezes com idades pouco imagináveis.
Vamos à quarta geração.
Depois vem a geração do período especial. A que entrou para a política quando tudo estava desmoronando. Caía o campo socialista, os sonhos, as ideias... uma etapa enormemente complexa. Nesse período, uma coisa se desarticulou: a ideia de que, com o estudo contínuo e com o trabalho, se poderia conseguir progresso material e social, ascensão social. Que se poderia aspirar a melhores salários e a outro nível de vida, inclusive em relação a seus pais. Essa desarticulação foi percebida quando muitos universitários graduados tiveram que procurar empregos diferentes daqueles que queriam exercer quando estavam estudando. Ou quando muitos interromperam suas carreiras. Os homens abandonaram mais do que as mulheres, e isso se nota no mundo atual do Estado cubano.
As mulheres terminaram sua qualificação naquele momento e atualmente são funcionárias do Estado.
Sim, em níveis distintos. Com todas as quedas que sofreu e presenciou, essa quarta geração continuou participando de um milagre político. O milagre é o fato de a Revolução Cubana ter continuado sustentável. Eu falo do heroísmo cotidiano de um povo como sujeito coletivo.
E a quinta geração, professor?
A geração da batalha de ideias, para usar uma expressão que Fidel utiliza há muitíssimos anos. A geração que entrou na vida política no começo do século XXI. O caso Elián mobilizou muitos jovens, muitos estudantes.
Claro, essa história é exatamente do ano 2000. Elián Gonzáles tinha seis anos e sua mãe o tirou de Cuba em uma balsa, mas ela morreu no caminho, e seu pai, que havia ficado em Cuba, pediu aos Estados Unidos a devolução do menino.
Foi uma batalha enorme. Bem, volto ao comentário inicial sobre as gerações e sua atuação na construção de consenso políticos: essas cinco gerações ainda estão participando. Mas na ordem lógica e natural das coisas, uma geração histórica está terminando seu ciclo político e a geração guevarista está em um nível intermediário. Para mim, o peso maior da atualização recairá sobre as outras três gerações: a da institucionalização, a do período especial e a nova, que está a no mínimo dez anos fazendo política. Quem estuda as juventudes cubanas argumenta que há uma inversão de prioridades. Descobriram que, hoje, vem primeiro a formação profissional e a família, e logo depois o projeto social. Antes, era o inverso: o projeto social vinha primeiro. Mas não paramos por aqui. A pesquisadora María Isabel Domínguez argumenta que, quando se pergunta sobre as identidades, prevalece o sentido de pertencimento. Eles têm identidade nacional: “Sou cubano”, dizem. Seria melhor se eles se identificassem como latino-americanos nascidos em Cuba, mas essa é a minha vontade, não é? O certo é que, antes de se definirem como mulheres, trabalhadores do campo ou qualquer outra coisa, eles apontam um território: Cuba. Às vezes, há desconfiança, mas não se leva em conta que essa geração também participou de uma discussão sobre os alinhamentos dos quais fizeram parte sete milhões de cubanos. Volto ao tema dos consensos. Quando falamos em um socialismo próspero e sustentável, o que essas gerações vão entender por “prosperidade”?
O que vão entender?
Veremos. Insisto: não falo com desconfiança, mas com a ideia de que o futuro não está fechado, entre outras coisas, por conta do peso que a participação tem. A participação é um dos grandes consensos atuais da sociedade cubana. Na primeira eleição popular – as eleições gerais de 2012/2013 –, 85% dos cidadãos exerceram seu direito ao voto. E o voto é voluntário, o que implica que há uma grande massa de pessoas comprometidas com o processo de atualização. Assim como há população economicamente ativa, há população politicamente ativa. São cubanos que participam de distintas maneiras, e muitas vezes desde muito jovens, em organizações estudantis. Eu tenho confiança de que o cenário mais provável seja que a revolução continue contando com o consenso e com o tempo necessário para redefinir o futuro. Nessa lógica, elevar o nível da participação e a qualidade dela é importante. Em cuba, há muitos canais de participação cidadã. Votam os que têm mais de 16 anos, mas não se participa apenas votando. É necessário criar mecanismos institucionais para incrementar a participação na tomada de decisões.
E em uma dinâmica de tentativa e erro, quem terá a legitimidade de apontar o que é um erro e o que não é?
A classificação do que é um erro precisa ser coletiva. Isso carrega consigo um processo maior de descentralização. Acredito que o planejamento e o plano precisam ser mantidos. Mas esse planejamento deve ter um nível maior de descentralização e um nível maior de democratização para o debate. Discutamos a participação dos trabalhadores nas empresas estatais. Não tiremos a responsabilidade dos administradores, mas reativemos o movimento sindical. Que os estudantes tenham maior participação. Em uma sociedade complexa, não pretenda que tudo se realize em grandes discussões nacionais. Não basta. E tampouco ache que nada do que ocorre deixa de se relacionar com os tempos políticos.
E assim está o mundo, que continua caminhando.
E a revolução é o que é hoje (talvez não é o que queríamos, mas é assim) porque faz parte de uma revolução inconclusiva, em processo ou em desenvolvimento, da América Latina e do Caribe. Como hoje o entorno é favorável a Cuba, toda a atualização vai se desenvolvendo dentro de um contexto favorável.
O que, exatamente, é favorável?
Ações como as do novo governo mexicano, de reestruturar a dívida. A transformação do Brasil no primeiro investidor privado. O entorno global importa bastante. Evidentemente, um dos problemas permanentes encontrados ao longo da nação cubana – agora falo da história da nação e não da história da revolução – é como interagir entre uma pequena ilha que primeiro quis ser independente e depois quis ser socialista e uma potência que tem um projeto radicalmente oposto: a dependência, e inclusive em algum momento, a anexação. Aí importa o novo papel da China, essa posição da Rússia no mundo, a eventual ampliação do grupo Brics, de Brasil, Rússia, China e África do Sul. A Argentina e outros países se somarão. Se esse grupo se ampliar e aprofundar seu trabalho, melhor para Cuba.
O país avançou muitíssimo em relação à América Latina e ao Caribe. Hoje mantém dentro da região as melhores relações históricas não apenas durante a revolução, mas em toda a sua história: Celac, Carisom, Alba, visita de Estado do presidente mexicano no começo do mandato. Cuba é uma ilha, mas não uma ínsula. Não vive em um tubo de ensaio. Para mim, é importante que, quando falemos do futuro possível, nós o olhemos em associação com os futuros que ocorrerão na América Latina, no Caribe, nas relações com os Estados Unidos, no mundo multipolar que está sendo construído, na aposta por uma América Latina unida e por um mundo multipolar. Tomara que consigamos evitar que não voltem a ocorrer reconcentrações econômicas perniciosas, que em um momento determinado podem provocar transtornos políticos e sociais.
Tradução: Daniella Cambaúva
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