Rogério Dultra dos Santos (*)
A vaia que o Presidente Getúlio Vargas recebeu no Jóquei Clube de São Paulo em agosto de 1954 foi apenas o sintoma de um descontentamento. Naquele mês Vargas entrava no seu inferno astral. O seu ex-ministro do Trabalho, João Goulart, havia se demitido após elevar em 100% o salário-mínimo numa estratégia combinada com Vargas. O atentado da Rua Tonelero contra o jornalista Carlos Lacerda (da UDN, na época) iria desencadear uma espiral golpista que somente seria refreada com o corpo do Presidente, sacrificado em benefício de seu projeto nacionalista e social. O Estado de São Paulo – a “locomotiva” do Brasil, como se considerava – há mais de um ano alijado do processo decisório central, perdida a hegemonia que mantivera na Primeira República pela política do café-com-leite. O descontentamento era, assim, regional e de classe. São Paulo representava, em agosto de 1954, não somente o núcleo da ofensiva contra o governo Vargas, mas a sua classe dominante sentia-se fortemente ameaçada pelo processo de regulação da atividade produtiva, expresso pelo controle da inflação e pelos direitos sociais e trabalhistas.
Vargas, diante das vaias, se fez de desentendido.
Em 2014, o cenário aparenta semelhança. No final de seu primeiro mandato, respaldada por doze anos dos governos do PT, a Presidente Dilma Rousseff inaugura a maior e – já hoje, em seu sexto dia – uma das mais festejadas Copas do Mundo de Futebol. Os ataques ao seu governo se intensificaram. Um ódio virulento ao PT tem sido estimulado pelos veículos da grande imprensa e está disseminado nas redes sociais, embora não tenha acontecido nenhum evento parecido com o atentado da Tonelero, que pôs a termo o governo Vargas. A Presidente reagiu positivamente aos protestos de junho de 2013 – em especial, com a proposta de plebiscito e de reforma política – e seus opositores, apesar do ódio, caem de maduros mesmo, sem maiores surpresas.
Assim, num dos estádios construídos por conta da Copa, e em São Paulo – que mais uma vez é o reduto da oposição –, as vaias de outrora se transformam hoje em xingamento de baixo calão. A qualidade do público é facilmente identificada: a dita “elite”, seja por nome próprio, filiação empresarial ou preço do ingresso. E por que quem já é favorecido pela lex mercatoria ou mesmo quem tira vantagem da volatilidade especulativa, parece não ter o que comemorar? Não seriam estes os mais recentes privilegiados pelo governo? Talvez o problema seja mais embaixo.
Disputam hoje o acesso a bens e direitos classes sociais cujas origens são bastante distintas. Uns são filhos e netos de um extrato médio mais “tradicional”, desde sempre almejando mais status. Na história recente do país foi dali que veio o apoio ao golpe em 1964, por exemplo. Ciosos de suas origens e desejosos de sucesso, não suportam compartilhar o bônus com seus novos companheiros de faixa social. Estes, a “nova” classe média, emergiram em um surpreendente pouco tempo de políticas de crédito e pleno emprego e “invadiram” um espaço antes considerado “exclusivo”. Querem mais do que já possuem e não têm medo de usar o que têm.
E isto choca os filhos da tradição.
O xingamento localizado na área vip não é somente contra a Presidente. Também não é contra a Copa do Mundo (todos estavam na estréia da Copa para torcer, imagina-se). É um xingamento que destila uma questão mais profunda: talvez porque este governo represente uma movimentação sensível no cotidiano e na vida social dos que sempre se sentiram de alguma forma privilegiados, embora talvez não sejam tão vip’s assim. Antes, estes olhavam para cima, para as verdadeiras elites econômicas, e almejavam ser parte das mesmas – se não de fato, pelo menos simbolicamente, e se viam como uma incontrastável nata. Agora, olhando para baixo, não notam mais a diferença, a distância e o estranhamento de cor e de status. Vêem iguais, cada vez buscando mais igualdade. Vêem os alunos cotistas nas Universidades públicas fazendo bonito. Vêem os negros médicos cubanos dando o exemplo. Vêem os subalternos vestindo-se com as mesmas roupas e freqüentando aeroportos. Reduziram-se os “privilégios” simbólicos que marcavam uma “diferença” de classe. Confundem-se a “locomotiva” e seus vagões. Talvez, por isto, xinguem e não apenas vaiem.
A Presidente Dilma recebeu os impropérios soberana.
Diferentemente de Vargas, já acossado pela UDN – e pelos interesses golpistas, que vinham também dos EUA –, não precisou tergiversar ou fazer de conta que não era com ela. A aprovação de seu governo é alta e as intenções de voto lhe favorecem. Esses indicadores apontam que o “povo” está com ela e, numa democracia, o povo decide. A estratégia “mar de lama”, que colou em Vargas, não alcança a Presidente. Depois de xingada, pôde responder serenamente, deixando claro que não tem porque temer ou se perturbar com o episódio. Pôde, inclusive, comemorar de forma efusiva os gols da Seleção. Passadas as eleições, talvez possamos celebrar – por ora – o fim dos golpes à democracia brasileira.
O xingamento do Itaquerão entra para a história política do país como uma espécie de parábola da humildade. Os convidados, ao invés de se sentarem em seus lugares e se sentirem como iguais numa torcida de futebol, agiram de acordo com o privilégio que os permitiu acesso à abertura da Copa: numa auto-glorificação arrogante e cheia de razão, assumiram seus assentos de protagonistas e moralizadores. O resultado é que estão sendo chamados a se retirar de forma envergonhada, porque ali não mereciam estar. Demonstraram ser muito mais baixos do que aqueles que, no fundo, queriam desprezar com o destilar de seu ódio. E mais: o fracasso do “não vai ter copa” comprova-se à larga não só pelo acontecimento em si, mas pelo novo brado da oposição: “não vai ter Olimpíadas”. Seria triste se não fosse cômico. Como consequência, é esta oposição que se encontra, agora, em seu inferno astral.
(*) Rogerio Dultra dos Santos, Doutor em Ciência Política pelo antigo IUPERJ e Professor de Teoria do Direito e Teoria da Constituição da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense.
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