terça-feira, 17 de junho de 2014

O "Itaquerazo" foi um tiro no pé

   Dario Pignotti, do Página 12 transcrito do Carta Maior

  
Dizem que o "futebol é a pátria de chuteiras". Essa frase se encaixa perfeitamente na fúria branca despertada nos espectadores (um tanto descafeinados para serem torcedores) por conta da presença da presidenta Dilma Rousseff no jogo inaugural da Copa, disputado na Arena Corinthians. A arena foi construída em uma luta contra o relógio em um dos bairros mais humildes de São Paulo, onde o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto assentou 5 mil pessoas demandando moradias populares.

Com um fervor patriótico, uma parte possivelmente majoritária dos 62 mil espectadores do jogo entre Brasil e Croácia cantaram na íntegra a letra do hino nacional – algo pouco comum para o público verde e amarelo e mais habitual para o uruguaio ou mexicano. E encaixaram versos com insultos tão grosseiros a Dilma que só poderiam ser proferidos por sujeitos barbarizados.

Vestida de verde "esperança" e cumprindo uma promessa feita aos jogadores, Dilma permaneceu imóvel na Arena Corinthians, popularmente conhecida como Itaquerão, enquanto choviam desagravos surgidos no setor VIP e logo disseminados pelo estádio diante da observação desconcertada de Diego Maradona, do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, e do chefe da FIFA, Joseph Blatter.

"Foi uma coisa absurda", lamentou Maradona, em consonância com a opinião do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, para quem "o que essa gente fez é coisa de cretinos".

"Duvido que nem 1% dos trabalhadores brasileiros tenham a falta de vergonha de dizer o que se disse (ali). A elite brasileira quer despertar o ódio de classe", defendeu o corinthiano Lula.

Na sexta-feira, um dia depois de assistir à vitória brasileira por 3 a 1 sobre a Croácia e de ter suportado o "Itaquerazo" de insultos vociferados por um público majoritariamente de classe média-alta, e branca, Dilma, desta vez brilhando num laranja holandês, como o dos tempos de Johan Cruyff, foi recebida por centenas de operários de uma obra em Brasília, diante dos quais esteve à vontade.

"Eu já suportei muito mais agressões verbais, suportei agressões físicas quase insuportáveis... e posso lhes dizer que nada me tirou do meu rumo. Não são esses insultos de ontem que vão me intimidar ou me atemorizar, tenham certeza de que não vou deixar que isso consiga me abater".

"Quero lembrar que durante toda a minha vida tive que enfrentar as adversidades mais difíceis, inclusive situações que chegaram ao limite do sofrimento físico", reforçou Dilma, uma ex-guerrilheira submetida à prisão e a torturas entre 1970 e 1973, durante a ditadura empresarial-militar.

Não há dúvidas de que, para a presidenta e candidata à reeleição pelo Partido dos Trabalhadores (PT), o "Itaquerazo" de 12 de junho foi uma derrota política significativa. Mais que isso, foi um revés midiático que será aproveitado pela oposição durante a campanha para as eleições de 5 de outubro.

No Palácio do Planalto, sede do governo, estima-se que as imagens de Dilma na (má) companhia de Blatter enquanto são repudiados pelo público ilustrarão as propagandas do candidato Aécio Neves, herdeiro do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, ambos do PSDB.

"Dilma é uma presidenta sitiada, arrogante, não pode sair do palácio por conta do mal humor permanente da sociedade brasileira", investiu Aécio, que ainda se lembra da queda do seu Cruzeiro diante do Estudiantes, dirigido por Sabella na final da Libertadores de 2009. Aécio é o candidato preferido de boa parte dos banqueiros e do ex-craque Ronaldo.

O bloco das forças conservadoras que o apoia e o próprio Aécio Neves apenas escondem sua intenção de transformar o "Itaquerazo" da semana passada em uma tragédia político-esportiva equivalente ao Maracanazo de 1950, quando o Brasil foi derrotado por 2 a 1 pelo Uruguai na final da Copa do Mundo.

"A direita imagina que pode haver um Maracanazo que acabe com Dilma e com o governo do PT. Vai usar todas as armas a seu alcance, mas acredito que seja difícil conseguirem. Acredito que, no final, Dilma vencerá. Não será fácil. Somos conscientes de que temos que enfrentar dois mundiais, o de futebol e o eleitoral, mas no final ganharemos", disse tempos atrás ao Página 12 o secretário-geral da Presidência, ministro Gilberto Carvalho.

Por ora, e para além da pirotecnia de quinta-feira, na abertura da Copa, Dilma continua à frente nas pesquisas de intenção de voto com 34%, 15 pontos acima de seu adversário Aécio, conforme informou o Datafolha há dez dias.

Certamente, a transição automática do Itaquerazo ao Maracanazo é um pouco forçada, como se os incidentes de quinta-feira anunciassem uma inexorável derrota de Dilma e do PT em outubro.

Isso porque aquela tragédia de 1950 aconteceram em outro país, quando os cenários social e futebolístico eram muito diferentes dos atuais.

O público que assistiu àquela final no Maracanã era, em grande medida, representativo daquele país de 51 milhões de habitantes: foram cerca de 200 mil pessoas, que pagaram ingressos relativamente acessíveis e permaneceram em pé em um estágio construído para as massas.

Em contrapartida, essa Arena Corinthians, erguida segundo os padrões excludentes da FIFA, acolhe apenas 62 mil pessoas, capazes de pagar ingressos de 350 dólares (média aproximada entre o mais barato, o mais caro e a revenda) em um país de 200 milhões de habitantes cujo salário mínimo é de 300 dólares.

Nos arredores do estádio, do outro lado do muro, os vizinhos do bairro de Itaquera e as favelas próximas viram a estreia da seleção brasileira pela televisão e, quando terminou o hino nacional, que foi bastante cantado nos bares, eles não se somaram aos insultos surgidos das áreas VIP: houve vivas, queima de fogos artificiais e gritos.


Como se vê, a "pátria (brasileira) de chuteiras" não está retratada nos estádios construídos para esta Copa.



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