Saul Leblon no site Carta Maior
postado em: 24/06/2014
Os caosnáticos que durante meses anunciaram o apocalipse para os 32 dias em que o país sediaria a Copa do Mundo devem estar duplamente arrependidos.
Vencido 1/3 do torneio a apreensão cedeu lugar à agradável sensação de que, afinal, com todas as deficiências sabidas, esse lugar não é a montanha desordenada de incompetência, corrupção e conflagração anunciada – incentivada- - por seus vocalizadores desinteressados.
O cenário de terra arrasada, que faria a autoestima nacional beber água num pé da mesa, em meia cuia de queijo Palmira, passa ao largo do que se vê, se ouve e se vive dentro e fora dos estádios.
Sobretudo, porém, o maior gol contra foi a aposta de que o fracasso da Copa serviria como credenciamento antecipado para o conservadorismo ‘consertar o Brasil corroído pelo PT’.
A menos que um acontecimento inesperado inverta o quadro em curso, a verdade é que estamos diante de um efeito bumerangue em espiral ascendente. Nem mesmo uma eventual eliminação brasileira do torneio poderá modificá-lo.
O revés não é café pequeno.
Ele desqualifica de forma importante o discurso derrotista da turma do Brasil aos cacos.
O caos na Copa era (atenção: ‘é’) acalentando como um precioso passaporte emocional para garantir o livre trânsito do discurso conservador no imaginário brasileiro, na disputa presidencial de outubro.
O que emerge das ruínas anunciadas, ao contrário, é outra coisa, na forma de uma pergunta bastante incomoda.
Como dar crédito às avaliações mais abrangentes --e às propostas ‘mudancistas’-- de quem não consegue sequer enxergar o país em que vive, tanto quanto não consegue diferenciar um Felipão falso de um verdadeiro?
A verdade é que a emissão conservadora criou um sósia do Brasil, tentou espetá-lo na alma nacional e agora se tornou refém de seu próprio ardil.
Quanto custa a uma sociedade ter uma elite que, nas horas decisivas, aposta quase sempre contra as suas potencialidades? Seja por interesses unilaterais, seja por incapacidade histórica, mantem-se impermeável à compreensão do lugar em que vive, da época em curso e dos seus desafios?
O paradoxo da Copa, que de excelente oportunidade para o Brasil, quase foi soterrada como um estorvo contagioso , encerra, portanto, angulações mais graves do que apenas o fla-flu eleitoral da superfície.
Só o inexcedível descompromisso com a sorte da nação e o destino de sua gente poderia menosprezar, como se fez, o conjunto de projetos e possibilidades associados ao evento – que no caso do legado logístico reúne projetos ainda inacabados, mas em curso.
No fundo, trava-se aqui um embate visceral entre lógicas antagônicas embutidas na disputa histórica entre dois projetos para o país.
Grandes obras e investimentos públicos constituem a melhor maneira de socializar e regular a curva do investimento na sociedade, impedindo uma oscilação desastrosa ao emprego, ao consumo e ao crescimento.
As grandes obras do PACs, os projetos em torno da Copa, o financiamento subsidiado para aquisição de máquinas e equipamentos (PSI), do BNDES, por exemplo – o maior banco estatal de investimento do mundo foi criado há 62 anos, em 20 de junho de 1952, por Getúlio Vargas, exatamente com essa finalidade-- são formas de amortecer a tendência errática, intrínseca à incerteza que cerca as inversões privadas no capitalismo em geral. E mais acentuadamente em nações em luta pelo desenvolvimento.
Um dos grandes gargalos brasileiros , ao contrário do que ruge o jogral ortodoxo, é justamente o reduzido fôlego fiscal do Estado ( subtraído em parte pelo rentismo), que o impede de exercer uma coordenação de mercado que propicie a curva estável e sustentada do crescimento.
O movimento anti-Copa, ainda que inclua parcelas bem intencionadas à esquerda, reflete no fundo o velho antagonismo entre os que buscam viabilizar o papel do interesse público sobre o erratismo privado, e os que recusam essa prerrogativa ao Estado.
Por que recusam se inclusive seriam beneficiados por ela?
Porque para exerce-lo o Estado deve controlar uma fatia significativa do gasto social. Deve socializar o comando sobre grandes massas de investimentos, que lhe permitam coordenar as expectativas da sociedade, sobretudo as do investimento privado.
Isso requer, entre outras providências, desmontar a linha Maginot do rentismo.
Entrincheirada em taxas de juros sempre mais rentáveis do que a aplicação produtiva , ela suga o fôlego fiscal do país e inibe o planejamento do interesse público, ademais de fixar um piso elevado para a desigualdade social, como ensinou Thomas Piketty.
A cortina de fogo contra a Copa --contra ‘a gastança’ de um modo geral-- filia-se a essa corrente.
Trata-se de impedir que a racionalidade social se imponha sobre o salve-se quem puder característico do ambiente de competição, incerteza e, em decorrência disso, de obsessão mórbida pela liquidez rentista, que move o capital privado aqui e em todos os lugares.
Ademais dos desequilíbrios estruturais irradiados por essa lógica, a economia brasileira reúne distorções específicas que os acentuam e reproduzem, como a segunda taxa de juros mais elevada do planeta, câmbio fora do lugar e livre mobilidade de capitais.
O quão equivocado era o garrote anti-Copa se vê agora pelo desmentido do desastre nas ruas e nos campos.
Mas também nas entrelinhas do noticiário econômico.
O pouco que escapa –somente agora-- da pauta catastrofista serve como ilustração de um benefício que talvez pudesse ter sido muito superior, caso as expectativas do país não tivessem sido garroteadas pela coleira da ortodoxia derrotista.
Abaixo, algumas evidências de um dinamismo torpedeado durante meses pelas previsões de fiasco da Copa e de quem apostasse no seu sucesso:
1) Faturamento médio das empresas de turismo cresceu 7,1% no 1º trimestre –antes mesmo de começar a Copa. Levantamento do Ministério do Turismo, em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), mostra que a área de turismo receptivo cresceu 14,7%, agências de viagem e parques temáticos, mais 9,6% de faturamento e setor de hotelaria, mais 9% no período.
2)Mais de 600 mil estrangeiros vieram para o Mundial, além de 3,1 milhões de brasileiros que vão se deslocar para as 12 cidades-sede dos jogos. A previsão é de que os gastos do conjunto somem R$ 6,7 bilhões (Valor)
3)Bons negócios com a Copa elevaram em 16% os planos de investimento do setor de turismo para o 2º trimestre.
4)Em média, a projeção dos 80 maiores conglomerados de turismo do país é de um crescimento da ordem de 6,5% este ano.
5) Para quem acreditou no fiasco vaticinado pela mídia, o sucesso inesperado do evento trouxe gargalos por falta de capacidade de atendimento. Sintomas: em Brasília, segundo o jornal Valor, ‘restaurantes do Pontão do Lago Sul já não têm chope –“os colombianos tomaram tudo", diz um garçom ouvido pelo jornal. Em Fortaleza, sobraram poucas opções no cardápio de restaurantes na avenida Beira Mar, relata o mesmo jornal que engole agora o pessimismo estampado em sua linha editorial por meses: ‘ Lá, a culpa era dos mexicanos, segundo a garçonete’.
6) A subestimação da demanda atingiu até a prosaica produção de brindes, que se deixou contagiar pelo jogral derrotista. ‘Nos aeroportos de São Paulo e Brasília, por exemplo, produtos como chaveiro do Fuleco, o mascote da Copa, já estão em falta’, admite o mesmo Valor, sem explica o motivo.
7)Fogo de palha? Não é essa a percepção de quem está na linha de frente dos acontecimentos. Hotéis, bares, restaurantes e agências de viagens afirma que o Mundial proporcionará outros ganhos, nem sempre mensuráveis.: ‘a experiência de receber turistas de todas as partes e a superexposição do país no exterior são alguns desses legados que ficam para as empresas e deverão reverberar por muitos anos’ (Valor).
8)No dia de abertura da Copa, no Itaquerão, na zona leste de São Paulo, a capital paulista tinha 76,6% de suas vagas de hospedagem ocupadas ; 93% dos restaurantes e bares dos bairros Bela Vista, Jardins e Pinheiros festejavam o movimento; 98,7% das mensagens sobre a cidade postadas nas principais redes sociais foram positivas. Durante a partida Brasil e Croácia, foram publicados 12,2 milhões de comentários sobre o jogo somente no Twitter.
9) Em apenas três dias , de 12 a 15 de junho, na abertura da Copa, segundo a Visa, visitantes internacionais movimentaram US$ 27 milhões com seus cartões, alta de 73% em relação ao mesmo período do ano .
10) Por fim, diz Walter Ferreira, assessor da presidência do Instituto Brasileiro de Turismo (Embratur),enquanto a bola rolar, o Brasil concentrará as atenções de 3,6 bilhões de espectadores, quase metade da população mundial. ‘ O evento terá o poder de quebrar estereótipos e revelar ao mundo um país moderno, com empresas globais importantes, que investe em ciência de ponta e que tem um povo acolhedor e alegre. A cena dos jogadores holandeses abraçando brasileiros em Ipanema, por exemplo, ou as inúmeras cenas de confraternização entre os torcedores contagiam o mundo. Este é o nosso maior legado de imagem’, diz Ferreira (Valor)
Os caosnáticos que durante meses anunciaram o apocalipse para os 32 dias em que o país sediaria a Copa do Mundo devem estar duplamente arrependidos.
Vencido 1/3 do torneio a apreensão cedeu lugar à agradável sensação de que, afinal, com todas as deficiências sabidas, esse lugar não é a montanha desordenada de incompetência, corrupção e conflagração anunciada – incentivada- - por seus vocalizadores desinteressados.
O cenário de terra arrasada, que faria a autoestima nacional beber água num pé da mesa, em meia cuia de queijo Palmira, passa ao largo do que se vê, se ouve e se vive dentro e fora dos estádios.
Sobretudo, porém, o maior gol contra foi a aposta de que o fracasso da Copa serviria como credenciamento antecipado para o conservadorismo ‘consertar o Brasil corroído pelo PT’.
A menos que um acontecimento inesperado inverta o quadro em curso, a verdade é que estamos diante de um efeito bumerangue em espiral ascendente. Nem mesmo uma eventual eliminação brasileira do torneio poderá modificá-lo.
O revés não é café pequeno.
Ele desqualifica de forma importante o discurso derrotista da turma do Brasil aos cacos.
O caos na Copa era (atenção: ‘é’) acalentando como um precioso passaporte emocional para garantir o livre trânsito do discurso conservador no imaginário brasileiro, na disputa presidencial de outubro.
O que emerge das ruínas anunciadas, ao contrário, é outra coisa, na forma de uma pergunta bastante incomoda.
Como dar crédito às avaliações mais abrangentes --e às propostas ‘mudancistas’-- de quem não consegue sequer enxergar o país em que vive, tanto quanto não consegue diferenciar um Felipão falso de um verdadeiro?
A verdade é que a emissão conservadora criou um sósia do Brasil, tentou espetá-lo na alma nacional e agora se tornou refém de seu próprio ardil.
Quanto custa a uma sociedade ter uma elite que, nas horas decisivas, aposta quase sempre contra as suas potencialidades? Seja por interesses unilaterais, seja por incapacidade histórica, mantem-se impermeável à compreensão do lugar em que vive, da época em curso e dos seus desafios?
O paradoxo da Copa, que de excelente oportunidade para o Brasil, quase foi soterrada como um estorvo contagioso , encerra, portanto, angulações mais graves do que apenas o fla-flu eleitoral da superfície.
Só o inexcedível descompromisso com a sorte da nação e o destino de sua gente poderia menosprezar, como se fez, o conjunto de projetos e possibilidades associados ao evento – que no caso do legado logístico reúne projetos ainda inacabados, mas em curso.
No fundo, trava-se aqui um embate visceral entre lógicas antagônicas embutidas na disputa histórica entre dois projetos para o país.
Grandes obras e investimentos públicos constituem a melhor maneira de socializar e regular a curva do investimento na sociedade, impedindo uma oscilação desastrosa ao emprego, ao consumo e ao crescimento.
As grandes obras do PACs, os projetos em torno da Copa, o financiamento subsidiado para aquisição de máquinas e equipamentos (PSI), do BNDES, por exemplo – o maior banco estatal de investimento do mundo foi criado há 62 anos, em 20 de junho de 1952, por Getúlio Vargas, exatamente com essa finalidade-- são formas de amortecer a tendência errática, intrínseca à incerteza que cerca as inversões privadas no capitalismo em geral. E mais acentuadamente em nações em luta pelo desenvolvimento.
Um dos grandes gargalos brasileiros , ao contrário do que ruge o jogral ortodoxo, é justamente o reduzido fôlego fiscal do Estado ( subtraído em parte pelo rentismo), que o impede de exercer uma coordenação de mercado que propicie a curva estável e sustentada do crescimento.
O movimento anti-Copa, ainda que inclua parcelas bem intencionadas à esquerda, reflete no fundo o velho antagonismo entre os que buscam viabilizar o papel do interesse público sobre o erratismo privado, e os que recusam essa prerrogativa ao Estado.
Por que recusam se inclusive seriam beneficiados por ela?
Porque para exerce-lo o Estado deve controlar uma fatia significativa do gasto social. Deve socializar o comando sobre grandes massas de investimentos, que lhe permitam coordenar as expectativas da sociedade, sobretudo as do investimento privado.
Isso requer, entre outras providências, desmontar a linha Maginot do rentismo.
Entrincheirada em taxas de juros sempre mais rentáveis do que a aplicação produtiva , ela suga o fôlego fiscal do país e inibe o planejamento do interesse público, ademais de fixar um piso elevado para a desigualdade social, como ensinou Thomas Piketty.
A cortina de fogo contra a Copa --contra ‘a gastança’ de um modo geral-- filia-se a essa corrente.
Trata-se de impedir que a racionalidade social se imponha sobre o salve-se quem puder característico do ambiente de competição, incerteza e, em decorrência disso, de obsessão mórbida pela liquidez rentista, que move o capital privado aqui e em todos os lugares.
Ademais dos desequilíbrios estruturais irradiados por essa lógica, a economia brasileira reúne distorções específicas que os acentuam e reproduzem, como a segunda taxa de juros mais elevada do planeta, câmbio fora do lugar e livre mobilidade de capitais.
O quão equivocado era o garrote anti-Copa se vê agora pelo desmentido do desastre nas ruas e nos campos.
Mas também nas entrelinhas do noticiário econômico.
O pouco que escapa –somente agora-- da pauta catastrofista serve como ilustração de um benefício que talvez pudesse ter sido muito superior, caso as expectativas do país não tivessem sido garroteadas pela coleira da ortodoxia derrotista.
Abaixo, algumas evidências de um dinamismo torpedeado durante meses pelas previsões de fiasco da Copa e de quem apostasse no seu sucesso:
1) Faturamento médio das empresas de turismo cresceu 7,1% no 1º trimestre –antes mesmo de começar a Copa. Levantamento do Ministério do Turismo, em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV), mostra que a área de turismo receptivo cresceu 14,7%, agências de viagem e parques temáticos, mais 9,6% de faturamento e setor de hotelaria, mais 9% no período.
2)Mais de 600 mil estrangeiros vieram para o Mundial, além de 3,1 milhões de brasileiros que vão se deslocar para as 12 cidades-sede dos jogos. A previsão é de que os gastos do conjunto somem R$ 6,7 bilhões (Valor)
3)Bons negócios com a Copa elevaram em 16% os planos de investimento do setor de turismo para o 2º trimestre.
4)Em média, a projeção dos 80 maiores conglomerados de turismo do país é de um crescimento da ordem de 6,5% este ano.
5) Para quem acreditou no fiasco vaticinado pela mídia, o sucesso inesperado do evento trouxe gargalos por falta de capacidade de atendimento. Sintomas: em Brasília, segundo o jornal Valor, ‘restaurantes do Pontão do Lago Sul já não têm chope –“os colombianos tomaram tudo", diz um garçom ouvido pelo jornal. Em Fortaleza, sobraram poucas opções no cardápio de restaurantes na avenida Beira Mar, relata o mesmo jornal que engole agora o pessimismo estampado em sua linha editorial por meses: ‘ Lá, a culpa era dos mexicanos, segundo a garçonete’.
6) A subestimação da demanda atingiu até a prosaica produção de brindes, que se deixou contagiar pelo jogral derrotista. ‘Nos aeroportos de São Paulo e Brasília, por exemplo, produtos como chaveiro do Fuleco, o mascote da Copa, já estão em falta’, admite o mesmo Valor, sem explica o motivo.
7)Fogo de palha? Não é essa a percepção de quem está na linha de frente dos acontecimentos. Hotéis, bares, restaurantes e agências de viagens afirma que o Mundial proporcionará outros ganhos, nem sempre mensuráveis.: ‘a experiência de receber turistas de todas as partes e a superexposição do país no exterior são alguns desses legados que ficam para as empresas e deverão reverberar por muitos anos’ (Valor).
8)No dia de abertura da Copa, no Itaquerão, na zona leste de São Paulo, a capital paulista tinha 76,6% de suas vagas de hospedagem ocupadas ; 93% dos restaurantes e bares dos bairros Bela Vista, Jardins e Pinheiros festejavam o movimento; 98,7% das mensagens sobre a cidade postadas nas principais redes sociais foram positivas. Durante a partida Brasil e Croácia, foram publicados 12,2 milhões de comentários sobre o jogo somente no Twitter.
9) Em apenas três dias , de 12 a 15 de junho, na abertura da Copa, segundo a Visa, visitantes internacionais movimentaram US$ 27 milhões com seus cartões, alta de 73% em relação ao mesmo período do ano .
10) Por fim, diz Walter Ferreira, assessor da presidência do Instituto Brasileiro de Turismo (Embratur),enquanto a bola rolar, o Brasil concentrará as atenções de 3,6 bilhões de espectadores, quase metade da população mundial. ‘ O evento terá o poder de quebrar estereótipos e revelar ao mundo um país moderno, com empresas globais importantes, que investe em ciência de ponta e que tem um povo acolhedor e alegre. A cena dos jogadores holandeses abraçando brasileiros em Ipanema, por exemplo, ou as inúmeras cenas de confraternização entre os torcedores contagiam o mundo. Este é o nosso maior legado de imagem’, diz Ferreira (Valor)
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