Sucesso de seu governo revela
algo ao Brasil: é possível ousar mais, na redistribuição de riquezas e
descolonização, sem perder governabilidade
Por Pablo Stefanoni*, na Carta Maior | Tradução: Daniella Cambaúva
Uma pesquisa publicada recentemente deu a Evo Morales mais de 45% das
intenções de voto e 32 pontos de diferença com seu concorrente mais
próximo para as eleições do final deste ano, o político e empresário
Samuel Doria Medina. Como as populações rurais não estão inclusas neste
tipo de pesquisa, estima-se que poderia ampliar essa porcentagem e
superar os 50%. Inclusive, mesmo se isso não acontecesse, já ganharia,
segundo a lei boliviana, no primeiro turno. Mas a que se deve, em seu
oitavo ano de governo, o fato de o “primeiro presidente indígena”
colher tais resultados em um país conhecido pela instabilidade política e
onde, em 17 de outubro de 2003, o então presidente –Gonzalo Sánchez de
Lozada– precisou abandonar apressadamente o poder e fugir de
helicóptero, primeiro a Santa Cruz e, mais tarde, para os EUA? Sem
dúvidas, a resposta reside em dois planos: o econômico e o político
simbólico.
Morales conta com recursos públicos com os que nenhum de seus
antecessores se atreveu sequer a sonhar graças ao “vento da cola”, mas
também a uma política econômica que combinou nacionalização de
hidrocarbonetos, aumento dos impostos para as petroleiras e uma gestão
macroeconômica cuidadosa dos equilíbrios fiscais que lhe permitiu
acumular reservas recorde: quase 15 bilhões de dólares, equivalente a
mais de 50% do PIB (porcentualmente uma das mais altas do mundo). Isto
lhe dá, sem dúvidas, uma grande blindagem, ainda que não deixe de
representar uma visão bastante ortodoxa da administração da
macroeconômica nacional. Não se pode esquecer que a esquerda boliviana
ficou marcada pelo “trauma da hiperinflação” depois que, em 1985, o
então governo, presidido por Hernán Siles Zuazo, devia ter adiantado a
transmissão do mandato.
Mas, além disso, Morales transformou exitosamente cada uma de suas
medidas em “atos de refundação”. Para isso, contou com a vantagem de
ser, além de um chefe de Estado, um “presidente símbolo” de ruptura dos
tetos e paredes de cristal que excluíam as maiorias indígena de muitos
espaços da vida social. Seu projeto de reeleição vai dar continuidade a
várias medidas de alto impacto, uma delas é o primeiro satélite
boliviano.
Em dezembro do ano passado, foi lançado, na China, o satélite de
comunicações Tupac Katari (TKsat 1). Morales presenciou o ato –
transmitido por telões gigantes na frente do Palácio do Governo – abri –
abrigado para o polar inverno chinês.
Antes do lançamento do satélite – construído pela Corporação
Industrial Grande Muralha por um valor de 300 milhões de dólares –
colocou em funcionamento a Agência Boliviana Espacial e enviou 64
engenheiros para serem capacitados na Agência Espacial Chinesa. Já em
sua órbita geoestacionária, os chineses deram à Bolívia o controle do
satélite que tem o nome do líder aimará que, no século dezoito,
encabeçou um emblemático levante contra o domínio colonial espanhol.
Sua meta é expandir os serviços de internet e de telefonia celular,
especialmente nas áreas rurais, e o material publicitário não economizou
em exageros e falou em “descolonizar” o espaço.
A conjuntura política deste ano eleitoral é muito diferente da de
2009, quando Evo ganhou com 64% dos votos em meio a uma guerra regional
com Santa Cruz. Se naqueles anos o presidente podia somente pisar
naquela região agroindustrial do país, no ano passado foi convidado para
inaugurar a Expocruz, a principal feira da “oligarquia” local,
revelando que um setor do empresariado abandonou sua postura radical e
decidiu aproveitar o boom econômico para fazer mais negócios e menos
política. Outros deixaram o país. Ganhar as regiões autonomistas é parte
da meta de seu governo.
A próxima reunião do G77 em Santa Cruz de la Sierra será também
aproveitada pelo governo para selar aproximações com as elites locais
com a promessa de recursos, negócios e exposição internacional.
Recentemente, um programa de negócios da CNN deu à Bolívia a “medalha de
ouro” por seu desempenho econômico e o FMI lhe deu vários elogios; o
New York Times destaca que muitos consideram Evo “prudente”, apesar das
expropriações de empresas privadas. E destaca que “do acordo com o Fundo
Monetário, a Bolívia tem a maior proporção no mundo das reservas
internacional para o tamanho de sua economia, depois de ter superado
recentemente, destaca que “de acordo com o Fundo Monetário, a Bolívia
tem a maior proporção do mundo das reservas internacionais para o
tamanho de sua economia, depois de ter recentemente superado a China
nesse sentido”, publicou o jornal norte-americano. (“Turnabout in
Bolivia as Economy Rises From Instability”, NYT, 15/2/12014).
Luis Arce Catacora é um dos ministros de economia que mais durou no
cargo: está no gabinete desde 2006 e disse que é possível ter “uma
política socialista com o equilíbrio macroeconômico”.
Para intelectuais radicais como James Petras, tudo isso evidencia a
traição do “mais radical dos conservadores ou o mais conservador dos
radicais” – como definiu Morales –, mas, à luz do que acontece na
Venezuela, essa administração “ortodoxa” da economia poderia ser
agradecida por parte da população. Tudo isso não tira, sem dúvidas, o
fato de que “o que falta” ainda ser muito na Bolívia: saúde, novo modelo
produtivo – menos dependente das matérias-primas e do comércio
informal, sobretudo se o boom internacional das commodities diminuir –
trabalho infantil, institucionalidade mais sólida e vários et ceteras.
Evo Morales já não é “a mudança” como em 2005, nem o “enterrador da
oligarquia” de 2009. Sua meta agora é convencer os eleitores dos
benefícios da “estabilidade” – como se percebe no aumento do consumo e
em um longo período de crescimento. Se conseguir, terá o recorde de ser o
presidente boliviano que durou mais tempo no poder, por cima de Andrés
de Santa Cruz, o fundador da pátria.
*Pablo Stefanoni é jornalista e chefe de redação da revista Nueva Sociedad
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