Da Folha de São Paulo
Ricardo Melo
É difícil encarar com naturalidade a cobertura dispensada a presos do chamado mensalão
Irritados com o que consideram
manipulação da mídia, vários interlocutores afirmam ter deixado de ler a
publicação x ou y. Trata-se de um luxo vedado a jornalistas.
Concordando ou discordando, somos permanentemente obrigados a passar os
olhos, que seja, pelo maior número possível de publicações. Até para
poder comentar, criticar, elogiar ou simplesmente nos informar.
Ainda assim, é difícil encarar com
naturalidade a cobertura dispensada a presos do chamado mensalão. Sim, é
dela mesma que eu falo: da reportagem de capa da revista de maior
circulação nacional sobre a vida na cadeia do ex-ministro José Dirceu e
outros condenados.
Com um tom acusatório, a revista brinda
os seus leitores com frases do tipo: "Lá ele [José Dirceu] gasta o tempo
em animadas conversas, especialmente com seus companheiros do mensalão
[....] só interrompe as sessões de leitura para receber visitas, muitas
delas fora do horário regulamentar e sem registro oficial algum, e para
fazer suas refeições, especialmente preparadas para ele e os comparsas.
"O cardápio? Aqui já teve até picanha e peixada feitas exclusivamente
para eles', conta um servidor".
A lista de pretensas mordomias não tem
fim, bem como o ridículo da reportagem. "Como o lugar fica longe dos
olhos dos presos comuns, os mensaleiros podem desfrutar o tratamento
especial sem que seus colegas de prisão reclamem. Dentro da cela, já
foram recolhidos restos de lanche do McDonald's". Não, não escrevi
errado. A transcrição está exata. Prova do tratamento diferenciado,
especial, transgressor, ilegal dos presos estão "restos de lanche do
McDonald's"!
A coisa não fica por aí. "No banheiro,
em vez da latrina encravada no chão, que os detentos chamam de boi', há
um civilizado vaso sanitário." A reportagem não esclarece se entre os
privilégios está o uso de papel higiênico. Mas Dirceu não é o único
alvo. Sobra também para o ex-deputado petista José Genoino. "Numa
conversa entreouvida por um servidor, um médico que atendia Genoino
revelou ter escutado do próprio petista a admissão de que deixara de
tomar alguns remédios para provocar uma arritmia cardíaca e, assim,
poder pleitear a prisão domiciliar."
O sigilo de fontes é salvaguarda crucial
para o trabalho dos jornalistas e geralmente é usado como ponto de
partida de uma investigação. Deve ser defendido incondicionalmente. Isso
não isenta o autor de medir a gravidade do que escreve. O malabarismo
verbal costuma ser uma defesa antecipada de quem faz denúncias
impactantes sem ter como prová-las. Exemplo: "Uma conversa entreouvida
por um servidor" serve de base para acusar um preso de arriscar a
própria vida para ter acesso a benefícios aos quais, por sua vez, já
teria direito.
Tão espantoso quanto tudo isso é o fato
de, em nenhum momento, a reportagem lembrar ao distinto público que José
Dirceu está preso ilegalmente. Mérito do julgamento à parte, queira-se
ou não, concorde-se ou não, o ex-ministro foi condenado ao regime
semiaberto. Pois bem: desde que a sentença foi promulgada, Dirceu vive
em regime fechado ao arrepio da lei. "Ah, mas ele come McDonald's"...
Cinquenta anos depois do golpe de 1º de
abril de 1964, paralelos surgem de todos os lados. Um governo com rótulo
de popular, lideranças conservadoras insatisfeitas com tanto tempo
longe do Planalto, uma nova derrota eleitoral se desenhando no
horizonte. Há diferenças importantes, contudo. Algumas: no momento
presente, não se fala da estatização de empresas, reforma agrária
radical e ampliação de mecanismos de poder da população. Os donos do
dinheiro não têm muito do que reclamar. Agora, ficar esperto não
atrapalha ninguém. Nunca é bom dar sopa para o azar.
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