Do sítio Carta Capital
O Nobel Paul Krugman discorda do relatório do Banco Central dos EUA e vê solidez nos dados da economia do País.
por Eduardo Garça
O Brasil de hoje não é um caso típico
de país vulnerável a ataques especulativos.” Quem afirma é Paul Krugman,
Prêmio Nobel de 2008, colunista de CartaCapital e um dos mais
brilhantes economistas em atividade. Na terça-feira 18, Krugman fará a
abertura, em São Paulo, do Fórum Brasil, evento organizado por esta
revista com o objetivo de discutir temas cruciais sobre o futuro do
País, da Justiça à infraestrutura. Da capital paulista, o professor de
Princeton segue por um tour pela América do Sul. Além de refutar o
relatório do Fed, o banco central norte-americano, que incluiu o Brasil
entre as economias mais frágeis entre os emergentes, Krugman elogia a
reforma do sistema de saúde promovido pelo governo Barack Obama e
enxerga um cenário “menos catastrófico” na Europa, à exceção de
Portugal. “Quando olho para Lisboa, vejo as marcas de um longo processo
de ruína fiscal.”
CartaCapital: O anunciado estouro da bolha dos países emergentes, Brasil incluído, faz sentido?
Paul Krugman: O caso do Brasil é
particularíssimo. O país da era Lula emergiu muito mais forte do que se
poderia imaginar. Mas o fluxo de dinheiro desde então foi intenso
demais, o real passou por um processo de supervalorização e agora temos
uma onda, não exatamente de fuga de capitais, mas de diminuição
significativa da entrada de recursos. Mas esta é, em geral, a natureza
do investimento maciço em mercados emergentes: busca-se um retorno
rápido do investimento, até ocorrer uma queda de confiança, pelas mais
variadas e subjetivas razões. Mas esta não é uma crise como aquelas que
assolaram os mercados emergentes nas últimas décadas.
CC: Não se corre o risco de uma repetição de 1998 ou mesmo 2002 no Brasil?
PK: Não, de forma alguma. Não vejo o
Brasil de 2014 em meio a um cenário desastroso. No fim dos anos 1990,
vivemos o que acreditávamos ser uma crise financeira global. O que,
convenhamos, depois de atravessarmos 2008, parece café-pequeno. Mas é
importante lembrar que, mesmo quando o Brasil se tornou o próximo alvo
da crise e viveu a inevitável desvalorização do real, muitos colegas
meus tinham certeza absoluta de que estavam diante de mais uma
catástrofe econômica, que não aconteceu. O Brasil passou por um momento
difícil, mas provou não ser vulnerável como se imaginava. E, uma década e
meia depois, o País é ainda menos vulnerável. Não há um déficit
gigantesco em moeda estrangeira, a situação fiscal é aceitável e a
inflação não é significativamente alta. O Brasil de hoje não é,
definitivamente, um caso típico de país vulnerável a ataques
especulativos.
CC: Turquia, Indonésia, Índia, África
do Sul e Brasil seriam, segundo o Fed, os países emergentes mais
vulneráveis à retirada dos estímulos à economia americana. É um
equívoco?
PK: Insisto que não há, neste momento,
assim como nos anos 1990, altos níveis de endividamento do Brasil em
moeda estrangeira. Também não há endividamento significativo do setor
privado. O Brasil, que mostrou solidez mesmo durante a fuga de capitais
de 1999, não deveria ser, neste momento, de forma alguma, classificado
como uma economia vulnerável. É preciso levar em conta, obviamente, o
fato de o País ter tido a maior valorização de moeda durante o período
da crise financeira global. Mas isso é apenas uma prova de que a
economia brasileira tem capacidade de navegar nos altos e baixos das
flutuações monetárias, com eventuais solavancos. Simplesmente, não
consigo concordar com a análise do Fed. Talvez a Turquia seja, dessa
lista, a mais próxima do cenário daquela época, mas não há grau de
comparação com o Brasil.
CC: O senhor já afirmou que considera
uma bobagem o termo BRIC, sigla que denomina o bloco composto por
Brasil, China, Russia e Índia.
PK: BRIC é, para mim, a pior sigla de
todo o alfabeto financeiro. O que há em comum entre uma democracia
estável como o Brasil, exportadora de matéria-prima, e, de forma menos
global, de produtos manufaturados, um estado corrupto como a Rússia,
baseado na exportação de energia, e dois universos singulares, únicos,
China e Índia? Apenas o fato de serem países continentais. É
absolutamente insano do ponto de vista intelectual acreditar que eles
podem ser incluídos em um mesmo escaninho. O Brasil sofre duplamente por
conta deste tipo de pensamento reducionista. Há uma ideia, errônea, de
que o Brasil é apenas mais uma economia latino-americana.
CC: Seus colegas Dani Rodrick e Arvind
Subramanian escreveram artigo sobre a “narrativa de vitimização” de
governos de mercados emergentes, incluído o Brasil, apressados em culpar
a política monetária dos Estados Unidos como principal responsável
pelas dificuldades enfrentadas. O senhor concorda?
PK: Foram os senhores mesmos,
brasileiros, que criaram este termo “guerra cambial”. E, francamente,
isso é uma bobagem. Não foi a injeção de estímulo na economia que
originou o fluxo de capitais para o Brasil, e sim a depressão econômica
nas grandes economias do Norte. Mesmo se o Fed acreditasse que a
estabilização de economias emergentes era uma de suas tarefas, a mera
sugestão de que ele fosse apertar os cintos, naquele momento, vá lá,
para prevenir uma exuberância momentânea no Brasil, é, no mínimo, algo
muito distante do razoável. Com o aumento progressivo de postos de
trabalho e uma diminuição do índice de desemprego, o sentido das
injeções do Fed se desfaz no ar. Há um consenso quanto a isso. É algo
absolutamente previsível, não há qualquer surpresa. O que acontece é que
os juros estupidamente baixos nos EUA só fazem sentido se você
acreditar na necessidade de uma estagnação perpétua, ou em uma depressão
longuíssima.
CC: Como o senhor avalia a condução da economia brasileira durante o governo Dilma?
PK: Eu me preocupo mais com o que
Brasília não deveria fazer neste momento. Por exemplo, não deveria
reagir com mão muito pesada à desvalorização do real. Quando se pensa em
termos monetários, há dois tipos de países. Um deles é a Grã-Bretanha
de 1992. Se a moeda se desvaloriza, há aumento imediato de competição e
expansão econômica. Outro é a Argentina de 2001, que, muito por conta do
tamanho da dívida em moeda estrangeira, vê a desvalorização afetar de
forma intensa o setor privado e a economia se contrai. O Brasil de hoje é
mais próximo da Grã-Bretanha de 1992. Brasília deve se preocupar um
pouco com a possibilidade de crescimento da inflação, mas o maior perigo
é o Banco Central apertar demais os cintos em um esforço para proteger o
real. No mais, a verdade é que os investidores não têm mais o mesmo
entusiasmo de antes em relação ao Brasil. Assim são as marés do mercado.
CC: A diminuição do ritmo de crescimento chinês acende o sinal amarelo para a economia brasileira?
PK: Sim. Neste ano o Brasil sofreu com
uma safra de café muito aquém do esperado, apenas parcialmente
compensada pelo aumento do preço do produto. Haverá um inevitável choque
de comércio com a desaceleração da China e a diminuição do valor das
matérias-primas. Até pouco tempo atrás a onda de comércio era favorável
ao Brasil, e nos próximos anos muito provavelmente não o será.
CC: Qual a sua opinião sobre a ênfase
dada por Brasília ao comércio Sul-Sul e no Mercosul e à decisão de não
seguir adiante com a Área de Livre Comércio das Américas?
PK: As duas maiores economias da
América Latina partiram para caminhos bem diversos, com o México no
Nafta e o Brasil no comando do Mercosul. Há uma questão geográfica, tão
óbvia quanto determinante, que diminui o real poder de decisão política.
O México transformou-se intensamente, não é mais um mero exportador de
petróleo, integrou-se de forma decisiva ao sistema de produção
americano. Mas o Nafta é apenas uma peça de um quebra-cabeça que inclui
uma fronteira extensa e milhares de trabalhadores mexicanos nos Estados
Unidos. O Brasil jamais será mais integrado ao sistema americano do que
ao da comunidade europeia, por exemplo. Não havia uma oportunidade real
para o Brasil neste caso. E a utopia da Alca, se alcançada, jamais se
traduziria em um Nafta expandido. O Nafta é mais do que uma iniciativa
de comércio sem taxações específicas, é um investimento geopolítico de
interdependência entre países fronteiriços.
CC: O senhor afirmou que os dois
primeiros anos da administração Obama fizeram dele o mais importante
presidente dos Estados Unidos desde Ronald Reagan.
PK: Reagan foi um presidente
importantíssimo, e não sou um fã do que resultou, política e
economicamente, de seus oito anos de mandato, mas a dimensão do que foi
feito naquele período é inegável. Obama realizou algo extremamente
grandioso, a reforma da saúde pública, e um bocado de outras mudanças
importantes. Não havia, até o Obamacare, a garantia de atendimento
médico à população. O mecanismo criado por Washington é inábil e
confuso, mas, politicamente, a opção de um sistema amplo de saúde
inexistia. Conseguimos uma reforma que cobrirá, eventualmente, até 95%
da população. Foi finalmente estabelecido o princípio de que a saúde dos
cidadãos é um direito garantido pelo governo, ideal pelo qual a
esquerda lutou nos últimos 70 anos. Quando Obama deixar o governo, essa
conquista será politicamente irreversível.
CC: O senhor tem criticado a tentativa
da direita de apresentar o Obamacare como um assalto ao bolso dos
cidadãos comuns. O programa é um novo imposto e um mecanismo de
transferência de renda?
PK: Sim, o Obamacare é tudo isso. Mas a oposição ao programa vai além de qualquer lógica relacionada às suas consequên-
cias econômicas. Quase todos os
estados comandados por republicanos recusaram, durante o processo de
implementação do novo plano, o auxílio federal na expansão do Medicaid, o
programa de saúde pública voltado para os mais pobres, que nada mais
seria do que dinheiro limpo vindo de Washington. São governadores
prejudicando sua economia, seu orçamento, apenas com o objetivo de negar
o acesso à saúde aos cidadãos menos ricos, uma questão puramente
ideológica.
CC: O senhor acredita que Obama será um ator político importante em sua sucessão?
PK: Não. Hoje o campo de candidatos
viáveis no Partido Democrata tem um único nome: Hillary Clinton. Se ela
quiser se candidatar, não há disputa. Obama não é um presidente popular,
não é amado por seus correligionários. Eles idolatram Bill Clinton,
curiosamente, muito mais hoje do que quando ele era presidente.
CC: A estratégia democrata para
novembro passa pela defesa do aumento do salário mínimo, uma bandeira da
esquerda desde 2008. A elevação conduzirá à redução de postos de
trabalho, como argumenta a oposição?
PK: Ainda que se acredite nos números
oferecidos pelo Congressional Budget Office, agência federal do poder
legislativo americano, e há enorme margem para interpretação, não é
plausível o cenário de desastre econômico pintado pelos republicanos.
Enquanto os democratas queriam explicar macroeconomia para o povo, os
republicanos ofereceram lógica muito mais simplória, de compreensão
imediata: se aperto os cintos, o governo deveria fazer o mesmo. E não é
bem assim. A única exceção é justamente no caso do salário mínimo. Todas
as pesquisas mostram que o raciocínio da maioria, aqui, é o de que quem
trabalha duro deve receber um pouco mais. Não acho que a pregação
republicana de que o aumento significará corte de postos de trabalho,
uma premissa falsa, será comprada pelos eleitores. Aqui, pela primeira
vez em muitos anos, os democratas encontraram uma narrativa apoiada pela
maioria absoluta dos americanos.
CC: Como o senhor avalia a maneira do governo Obama de lidar com a crise financeira global?
PK: A economia seguiu em depressão, o
índice de desemprego seguiu alto, a recuperação econômica foi menos
forte. Quem sabe em uma década a percepção pública mude, mas o índice de
desemprego hoje segue muito maior do que o prometido pela Casa Branca, o
que, para muita gente séria, significa, simplesmente, que o estímulo
fracassou.
CC: Algo muda no Fed com a saída de Ben Bernanke e a entrada de Janet Yellen?
PK: Não creio. É mais do mesmo. Talvez
Yellen seja menos agressiva. Bernanke, no trato pessoal, é muito mais
moderado do que permite supor a sua faceta pública. Ele precisou se
mostrar mais duro no comando do Fed para conquistar certo consenso no
mercado. E a verdade é que uma mudança significativa na direção do Fed
só se justificaria se o cenário fosse muito mais negativo, mas não é o
caso. Não vejo espaço para uma mudança no ideal inflacionário ou para
uma meta de crescimento maior do PIB. O que veremos é continuidade.
CC: O senhor tem sido um crítico
constante das políticas de austeridade fiscal. Como vê a situação da
Comunidade Europeia neste momento?
PK: As políticas de austeridade fiscal
alimentaram a depressão econômica. Mas, apesar delas, tivemos duas
surpresas favoráveis: a coesão política dos países da Comunidade
Europeia e a ação decisiva do Banco Central Europeu. O comprometimento
dos países de permanecer na Zona do Euro foi muito mais forte do que eu
previ, com manutenção das regras do jogo mesmo com índices de desemprego
devastadores de dois dígitos, como os da Espanha. E boa parte dos
problemas de liquidez foi reduzida nos últimos dois anos. Portugal ainda
vive o pior dos mundos, mas Espanha e Itália já respiram. Os paí-
ses mediterrâneos, lentamente, voltam a
se tornar mais competitivos. Até mesmo a Grécia começa a se recuperar, a
se reinventar como um polo econômico turístico a preços promocionais. É
um tanto quanto deprimente, mas o recomeço se dará com pacotes
turísticos às Ilhas Gregas a preços módicos para estrangeiros.
CC: O senhor está, então, otimista?
PK: Bem, no sentido, novamente, de que
o quadro poderia ser muito pior. Hoje, comemora-se a possibilidade de
um crescimento de 1,2% do PIB na Zona do Euro, o que é ridículo. Se
considerarmos março de 2014, desde 2007 o crescimento econômico da
Europa é menor do que o de 1929 a 1936, no auge da Grande Depressão. E o
custo humano da atual crise europeia foi imenso. Mas poderia ter sido
muito, muito pior. Quem ainda me assusta é Portugal. A partida de jovens
trabalhadores para fora do país, para o Brasil inclusive, é ainda mais
significativa do que a de décadas atrás. Hoje, quando olho para Lisboa,
vejo as marcas de um longo processo de ruína fiscal, me lembra muito a
região montanhosa dos Apalaches aqui nos Estados Unidos. Portugal é
atualmente a tradução mais exata da armadilha do euro e, no entanto, não
vejo um grande movimento de abandono luso da federação europeia. Não
vejo no futuro uma sequência de secessões na Comunidade Europeia. Mas
não é improvável um cenário de uma Europa Ocidental com baixo
crescimento econômico por décadas a fio.
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