Elaine Tavares
Adital
Desde os anos 80 a cidade de Florianópolis
vive ondas de crescimento e migração, sem ser acompanhada por um bom Plano Diretor
que organize o processo. Uma boa porcentagem de migração é de gente rica, cansada
da vida nas megalópolis, com degradação e violência. Assim, essas pessoas endinheiradas
buscam recantos bucólicos na linda "ilha da Magia", antes Desterro, para
fugir das situações criadas justamente pela acumulação de capital por parte de uns
poucos. Mas, uma outra parte das migrações é composta por gente que busca um lugar
onde melhorar a vida. São famílias que saem do interior do Estado de Santa Catarina,
ou de outras regiões do país, nas quais o emprego não se apresenta como alternativa
para garantir a existência. Com as propagandas em rede nacional de que aqui é o
melhor dos mundos, a Europa brasileira, as pessoas são atraídas e vêm em busca da
vida digna. Todo esse movimento fez com que a cidade crescesse para todos os lados.
Aos ricos, estão reservados os melhores lugares, próximo às praias ou nas regiões
centrais. Os empobrecidos ocupam áreas de risco, os morros, ou vão se espalhando
pela periferia.
A região da Trindade, onde hoje está a Universidade Federal de Santa Catarina, nos anos 60, quando a instituição foi criada, nada mais era do que uma grande fazenda. Vazio urbano, espaço pronto para ser ocupado em nome do progresso. A construção da sede da UFSC fez com os terrenos se valorizassem e, logo, o entorno foi sendo tomado por prédios que viriam a abrigar os estudantes que começavam a chegar. Mas, não foi só a classe média e alta que fincou suas bases ao redor da UFSC. Também os empobrecidos vieram, ocupando os morros que cercam a universidade, afinal, ali, a vida e o comércio começaram a vicejar. Nada diferente do processo de crescimento de todas as grandes cidades. Centros ricos e bem cuidados, periferia degradada. Um existindo por conta do outro, conectados na lógica da dependência e da superexploração.
E, como sempre acontece, a classe que cria a pobreza, ao mesmo tempo a repudia e sente medo. Já nos anos 80, o entorno da universidade causava temor. As "favelas" eram foco de marginalidade e o tema "segurança do campus" começava a se impor. Pequenos furtos, alguns assaltos e a presença dos empobrecidos nos caminhos da UFSC levaram algumas vozes a clamar pelo fechamento do campus, com cercas e portões. Como sempre acontece, outras vozes ecoaram entendendo que se a periferia existe é porque o centro a cria, portanto, há um papel de responsabilidade aí que precisa ser visto e discutido. A universidade como "casa do saber" precisa ter ousadia para criar o novo e não apenas reproduzir a lógica que vem de fora, dos mecanismos de repressão, por exemplo.
Assim que durante os anos 90, o tema segurança foi ponto nevrálgico no debate entre professores, técnicos administrativos em educação e estudantes. Derrotada a proposta de uma ação institucional combinada de trabalho no entorno periférico da UFSC, de lazer, educação, esporte, arte e cultura para as comunidades, o campus foi cercado, mas ainda sem portões que impedissem o livre circular das gentes que não faziam parte do seleto grupo universitário. Ainda assim, aqueles que temem os pobres e os preferem bem longe seguiram atuando, no sentido de garantir o fechamento e a ação da polícia dentro da universidade.
Com o crescimento da cidade e o consequente aumento da criminalidade, a região da UFSC não poderia virar uma ilha de paz em meio ao caos. Ela reproduz todas as relações que existem na sociedade. Assim, o campus passou a ser também alvo de ladrões de carro, assaltantes, traficantes de drogas e toda a sorte de ilícitos que existem em qualquer lugar, mesmo na linda Beira-Mar ou no Jurerê internacional. Mas, como a universidade deveria ter por princípio encontrar caminhos alternativos para o enfrentamento dos problemas causados pelo desenvolvimento capitalista, seguiram também atuando os grupos que acreditavam ser possível uma relação mais harmônica com as comunidades do entorno - preconceituosamente vistas como "foco de marginais" - e no enfrentamento da violência e do crime que, de fato, existem e crescem exponencialmente. Foram realizados encontros, fóruns, debates e discussões envolvendo pesquisadores, estudantes, trabalhadores, comunidade. Muitas foram as propostas, mas praticamente nada era encaminhado.
Uma coisa sempre foi muito clara. A ação da polícia militar encerra toda uma lógica que não serve ao mundo democrático. No mais das vezes, em um espaço como a universidade, sempre permeado por lutas, protestos e discussões acaloradas, seria ingenuidade acreditar que, estando no campus organicamente, a polícia não atuaria como aparelho repressor destas atividades. É bastante comum no Brasil observar a polícia agindo sempre considerando o povo que luta como "inimigo da nação". Essa é a visão de uma polícia militar. Sempre temendo um inimigo interno. Assim, o debate sempre pontuou esses elementos. A segurança do campus e das pessoas que aqui circulam precisava então ser pensada de outra forma. Soluções criativas sempre existiram. Mas, nunca foram implementadas, seja por incompetência ou por decisão política mesmo. O tema segurança seguia em suspenso e aos administradores aparecia como mais fácil chamar a polícia, eventualmente, sempre que julgassem necessário. E isso se deu recorrentemente, no geral para reprimir estudantes ou trabalhadores. Em casos de crimes comuns, como assaltos ou roubos, a polícia sempre atuou, conforme sua competência e isso nunca foi colocado em questão.
Assim, os que dizem que quem é contra a polícia no campus defende bandido, precisam conhecer bem a história do tema segurança na UFSC, antes de saíram "atirando" contra os que - entendendo o papel crítico da universidade - preferem discutir e criar novas alternativas. Ninguém que faça esse debate é a favor de quem comete crimes. Apenas observam o problema desde outro ponto de vista: coletivo e social. A segurança não pode ser pensada só desde uma perspectiva pessoal: o meu carro, a minha bolsa, o meu problema. É certo que uma pessoa assaltada é também um ser mergulhado no social e é por isso mesmo que deveria pensar de maneira mais generosa no todo do qual faz parte.
Mas, o que se vê é a violência extrema contra os que buscam saídas coletivas. Ontem, um colega de trabalho, por exemplo, desejou que eu fosse assaltada para ver "o que é bom" e parar de defender bandido. Falava isso porque me colocava contra a ação desastrada - da polícia federal, militar e da segurança do campus - que acabou gerando um levante estudantil. E o mais grave é que essa não é uma fala isolada. Ela se reproduz nas redes sociais como um vírus.
Dentro desse contexto voltamos ao começo: quem é o bandido, cara pálida? Quantas vezes na história da UFSC a entrada da polícia se deu para combater o crime real? Quantas vezes a polícia veio para reprimir estudantes ou trabalhador em luta? Ainda não tenho a conta certa, mas nesses 25 anos que trabalho na UFSC a presença repressora da polícia se deu - em maioria absoluta - contra trabalhadores e estudantes que lutavam por salário, bolsa estudantil, comida decente, moradia estudantil, condições de trabalho dignas e por aí afora. Agora, é certo também que quando tem um roubo, assalto ou tráfico, a polícia vem, sem alarde, sem choque, fazer o seu trabalho. Nunca foi impedida, nem poderia.
Os episódios que gestaram o ‘Levante do Bosque’ estão dentro desse contexto maior que envolve uma administração vacilante, incapaz de unificar a comunidade num projeto institucional de discussão sobre a violência. Estão ligados também a uma proposta de segurança interna que igualmente vacila entre o desejo de ser polícia e o medo da criminalidade crescente, sem que as condições de enfrentamento sejam dadas. Sofrem o acréscimo de existir uma batalha interna de poder, mais o ódio da mídia hegemônica contra uma administração que diminuiu verbas de publicidade. Tudo isso contribuiu para a ação espetacular e tragicômica que tornou a presença de cinco baseados no bosque no motivo para uma violência desmedida.
Notícias posteriores deram conta de que a reitoria tinha assinado um protocolo com a polícia, permitindo investigações no campus. Ora, ninguém pode assinar um protocolo com a polícia pensando que ela não vai agir como polícia. Então, temos aí também uma decisão ingênua e destituída de habilidade que igualmente tem de ser debatida. A administração da UFSC precisa de mais ousadia.
O fato é que, de novo, estamos mergulhados na discussão sobre a segurança, a violência e o papel da polícia. Isso é bom. Não precisava ter o que o houve, mas pode-se agora avançar para o que sempre esteve em pauta: uma posição institucional sobre o tema, que possa atender todas as demandas. Precisa-se de mais segurança para andar no campus? Sim! Mas, para garantir isso existem outras formas, para além da presença da polícia. E depois, quem disse que os "universitários" precisam de mais segurança que o cidadão comum? Quem arrogou a comunidade universitária o direito de ser mais igual que a cidade?
Então, ainda que os viúvos e viúvas do regime de "mão firme" gritem por polícia para proteger os seus bens, é preciso pensar que estamos todos juntos nesse barco da vida regida pelo capital e que os problemas de segurança que temos precisam ser resolvidos no âmbito do debate geral sobre a forma como organizamos essa vida. A polícia desmilitarizada, parceira do cidadão, pode ser um caminho para a proteção contra os crimes. Mas, a polícia militarizada, que vê o cidadão crítico como inimigo, essa precisa ser questionada. Ainda que doa.
A vida é dura, ainda que só para alguns. Por isso, a luta!
A região da Trindade, onde hoje está a Universidade Federal de Santa Catarina, nos anos 60, quando a instituição foi criada, nada mais era do que uma grande fazenda. Vazio urbano, espaço pronto para ser ocupado em nome do progresso. A construção da sede da UFSC fez com os terrenos se valorizassem e, logo, o entorno foi sendo tomado por prédios que viriam a abrigar os estudantes que começavam a chegar. Mas, não foi só a classe média e alta que fincou suas bases ao redor da UFSC. Também os empobrecidos vieram, ocupando os morros que cercam a universidade, afinal, ali, a vida e o comércio começaram a vicejar. Nada diferente do processo de crescimento de todas as grandes cidades. Centros ricos e bem cuidados, periferia degradada. Um existindo por conta do outro, conectados na lógica da dependência e da superexploração.
E, como sempre acontece, a classe que cria a pobreza, ao mesmo tempo a repudia e sente medo. Já nos anos 80, o entorno da universidade causava temor. As "favelas" eram foco de marginalidade e o tema "segurança do campus" começava a se impor. Pequenos furtos, alguns assaltos e a presença dos empobrecidos nos caminhos da UFSC levaram algumas vozes a clamar pelo fechamento do campus, com cercas e portões. Como sempre acontece, outras vozes ecoaram entendendo que se a periferia existe é porque o centro a cria, portanto, há um papel de responsabilidade aí que precisa ser visto e discutido. A universidade como "casa do saber" precisa ter ousadia para criar o novo e não apenas reproduzir a lógica que vem de fora, dos mecanismos de repressão, por exemplo.
Assim que durante os anos 90, o tema segurança foi ponto nevrálgico no debate entre professores, técnicos administrativos em educação e estudantes. Derrotada a proposta de uma ação institucional combinada de trabalho no entorno periférico da UFSC, de lazer, educação, esporte, arte e cultura para as comunidades, o campus foi cercado, mas ainda sem portões que impedissem o livre circular das gentes que não faziam parte do seleto grupo universitário. Ainda assim, aqueles que temem os pobres e os preferem bem longe seguiram atuando, no sentido de garantir o fechamento e a ação da polícia dentro da universidade.
Com o crescimento da cidade e o consequente aumento da criminalidade, a região da UFSC não poderia virar uma ilha de paz em meio ao caos. Ela reproduz todas as relações que existem na sociedade. Assim, o campus passou a ser também alvo de ladrões de carro, assaltantes, traficantes de drogas e toda a sorte de ilícitos que existem em qualquer lugar, mesmo na linda Beira-Mar ou no Jurerê internacional. Mas, como a universidade deveria ter por princípio encontrar caminhos alternativos para o enfrentamento dos problemas causados pelo desenvolvimento capitalista, seguiram também atuando os grupos que acreditavam ser possível uma relação mais harmônica com as comunidades do entorno - preconceituosamente vistas como "foco de marginais" - e no enfrentamento da violência e do crime que, de fato, existem e crescem exponencialmente. Foram realizados encontros, fóruns, debates e discussões envolvendo pesquisadores, estudantes, trabalhadores, comunidade. Muitas foram as propostas, mas praticamente nada era encaminhado.
Uma coisa sempre foi muito clara. A ação da polícia militar encerra toda uma lógica que não serve ao mundo democrático. No mais das vezes, em um espaço como a universidade, sempre permeado por lutas, protestos e discussões acaloradas, seria ingenuidade acreditar que, estando no campus organicamente, a polícia não atuaria como aparelho repressor destas atividades. É bastante comum no Brasil observar a polícia agindo sempre considerando o povo que luta como "inimigo da nação". Essa é a visão de uma polícia militar. Sempre temendo um inimigo interno. Assim, o debate sempre pontuou esses elementos. A segurança do campus e das pessoas que aqui circulam precisava então ser pensada de outra forma. Soluções criativas sempre existiram. Mas, nunca foram implementadas, seja por incompetência ou por decisão política mesmo. O tema segurança seguia em suspenso e aos administradores aparecia como mais fácil chamar a polícia, eventualmente, sempre que julgassem necessário. E isso se deu recorrentemente, no geral para reprimir estudantes ou trabalhadores. Em casos de crimes comuns, como assaltos ou roubos, a polícia sempre atuou, conforme sua competência e isso nunca foi colocado em questão.
Assim, os que dizem que quem é contra a polícia no campus defende bandido, precisam conhecer bem a história do tema segurança na UFSC, antes de saíram "atirando" contra os que - entendendo o papel crítico da universidade - preferem discutir e criar novas alternativas. Ninguém que faça esse debate é a favor de quem comete crimes. Apenas observam o problema desde outro ponto de vista: coletivo e social. A segurança não pode ser pensada só desde uma perspectiva pessoal: o meu carro, a minha bolsa, o meu problema. É certo que uma pessoa assaltada é também um ser mergulhado no social e é por isso mesmo que deveria pensar de maneira mais generosa no todo do qual faz parte.
Mas, o que se vê é a violência extrema contra os que buscam saídas coletivas. Ontem, um colega de trabalho, por exemplo, desejou que eu fosse assaltada para ver "o que é bom" e parar de defender bandido. Falava isso porque me colocava contra a ação desastrada - da polícia federal, militar e da segurança do campus - que acabou gerando um levante estudantil. E o mais grave é que essa não é uma fala isolada. Ela se reproduz nas redes sociais como um vírus.
Dentro desse contexto voltamos ao começo: quem é o bandido, cara pálida? Quantas vezes na história da UFSC a entrada da polícia se deu para combater o crime real? Quantas vezes a polícia veio para reprimir estudantes ou trabalhador em luta? Ainda não tenho a conta certa, mas nesses 25 anos que trabalho na UFSC a presença repressora da polícia se deu - em maioria absoluta - contra trabalhadores e estudantes que lutavam por salário, bolsa estudantil, comida decente, moradia estudantil, condições de trabalho dignas e por aí afora. Agora, é certo também que quando tem um roubo, assalto ou tráfico, a polícia vem, sem alarde, sem choque, fazer o seu trabalho. Nunca foi impedida, nem poderia.
Os episódios que gestaram o ‘Levante do Bosque’ estão dentro desse contexto maior que envolve uma administração vacilante, incapaz de unificar a comunidade num projeto institucional de discussão sobre a violência. Estão ligados também a uma proposta de segurança interna que igualmente vacila entre o desejo de ser polícia e o medo da criminalidade crescente, sem que as condições de enfrentamento sejam dadas. Sofrem o acréscimo de existir uma batalha interna de poder, mais o ódio da mídia hegemônica contra uma administração que diminuiu verbas de publicidade. Tudo isso contribuiu para a ação espetacular e tragicômica que tornou a presença de cinco baseados no bosque no motivo para uma violência desmedida.
Notícias posteriores deram conta de que a reitoria tinha assinado um protocolo com a polícia, permitindo investigações no campus. Ora, ninguém pode assinar um protocolo com a polícia pensando que ela não vai agir como polícia. Então, temos aí também uma decisão ingênua e destituída de habilidade que igualmente tem de ser debatida. A administração da UFSC precisa de mais ousadia.
O fato é que, de novo, estamos mergulhados na discussão sobre a segurança, a violência e o papel da polícia. Isso é bom. Não precisava ter o que o houve, mas pode-se agora avançar para o que sempre esteve em pauta: uma posição institucional sobre o tema, que possa atender todas as demandas. Precisa-se de mais segurança para andar no campus? Sim! Mas, para garantir isso existem outras formas, para além da presença da polícia. E depois, quem disse que os "universitários" precisam de mais segurança que o cidadão comum? Quem arrogou a comunidade universitária o direito de ser mais igual que a cidade?
Então, ainda que os viúvos e viúvas do regime de "mão firme" gritem por polícia para proteger os seus bens, é preciso pensar que estamos todos juntos nesse barco da vida regida pelo capital e que os problemas de segurança que temos precisam ser resolvidos no âmbito do debate geral sobre a forma como organizamos essa vida. A polícia desmilitarizada, parceira do cidadão, pode ser um caminho para a proteção contra os crimes. Mas, a polícia militarizada, que vê o cidadão crítico como inimigo, essa precisa ser questionada. Ainda que doa.
A vida é dura, ainda que só para alguns. Por isso, a luta!
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