Tarso Genro (*) no Carta Maior
postado em: 23/03/2014
Não fosse a importância das duas personalidades envolvidas - Ministro Presidente do Supremo Joaquim Barbosa e o jornalista Ricardo Noblat - passaria desapercebida a notícia de que o primeiro acusa o segundo, perante os Tribunais, de ter cometido, em artigo largamente difundido pela mídia nativa, crime contra a sua honra, combinado com crime de natureza racial.
Noblat escrevera que “há negros que padecem de complexo de inferioridade. Outros assumem uma postura radicalmente oposta para enfrentar a discriminação”, aduzindo ainda, que Joaquim Barbosa não teria sido escolhido para o Supremo particularmente pelas suas qualidades jurídicas, mas por ser “negro”. Uma frase, aliás, incompatível com a coincidência, na figura do Ministro Barbosa (que é negro e jurista renomado), dos dois atributos alinhados por Noblat.
No seu texto, no mínimo infeliz (embora distante de ser doloso em termos penais), Noblat deixou-se levar mais pelas tarefas políticas que desempenha com rara eficiência no seu antilulismo e antipetismo explícito e menos pela isenção jornalística. Com formação e doutorado em Universidades de primeira grandeza, concordemos ou não com as suas posições doutrinárias, o Ministro Joaquim Barbosa não está menos preparado do que a média dos seus pares, para ser Ministro do nosso Supremo.
Ambos, Barbosa e Noblat, tiveram um protagonismo importante no último período do julgamento da ação penal 470: o primeiro, como duro Ministro Relator do processo, tornando-se um símbolo do “ativismo judicial”, que hoje caracteriza praticamente todas as instâncias deste Poder, até há pouco bastante refratário às luzes midiáticas; o segundo, como uma espécie de organizador ideológico do massacre midiático a que foram submetidos os “quadrilheiros” do mensalão, aliás absolvidos do crime de formação de quadrilha, epílogo que joga para a ilegalidade todas as acusações desta natureza, que receberam da mídia tradicional.
Independentemente do juízo que tenhamos sobre as opiniões e argumentos destas figuras importantes do cenário político nacional devemos, mais além de respeitar as suas trajetórias dentro do jogo democrático, procurar no cenário da disputa que se abre entre ambos, algo de universal nas suas condutas. Isso é útil para nos situar em que pé estamos no processo da revolução democrática em nosso país, cujo marco jurídico mais importante é a Constituição do 88.
Lembremos que o Ministro Barbosa, mais de uma vez, disse que a mídia brasileira é de direita e desentendeu-se com jornalistas que - passada a fase em que o incensavam pela sua conduta na ação penal 470 (tornando-o uma espécie de ídolo da moralidade anti-política) - supunham que ele poderia ser candidato do mesmo complexo midiático-direitista, que não cansava de promovê-lo. Causou, assim, uma mal-disfarçada decepção nos seus propagandistas, tanto do campo conservador clássico, como daqueles que apostavam que o moralismo udenista redivivo, proporcionaria uma restauração neoliberal plena em nosso país. O narcisismo absolutista da mídia nacional deu lugar a uma “decepção de resultados”: os que sabem tudo e são incriticáveis defrontaram-se com a sua própria ineficiência política.
Está dando tudo errado. Então as raivas trocam de endereço e o Ministro Barbosa vira alvo. Precisamos entender a sofisticação desta “troca de alvo”, que se tornou agressiva no texto de Noblat. Ela é simbólica de um processo de ruptura do bloco político espontâneo que se formou para massacrar Lula e o PT, no contexto de uma ação penal que foi, paulatinamente, transformando-se num processo de julgamento da política em geral e dos governos Lula, em particular.
Para nós, da maioria de esquerda que esteve e está comprometida com a República e a Democracia e com os avanços conseguidos com os governos Lula e Dilma, não se trata de ficar a favor de Noblat ou do Ministro Barbosa, no contexto atual, embora tenhamos as nossas convicções. Trata-se de entender que estamos - a partir das últimas decisões do STF e das queimações contra o Ministro Barbosa - numa nova etapa da luta política no país. Nela, as instituições da Constituição de 88 podem recuperar a sua credibilidade democrática e republicana ou perdê-la para sempre.
Não concordei com várias das posições do Ministro Barbosa na direção daquela ação penal, mas reconheço que, quando ele acertou em relação aos sacerdotes da comunicação no país, cometeu dois erros graves na apreciação da grande mídia. Estes “erros” é que proporcionaram os ataques que ele vem sofrendo. Quais são? Primeiro, disse que a grande mídia é , na sua maioria, direitista; e, segundo, não permitiu a socialização imediata do seu prestígio para a direita udenista conservadora e/ou neoliberal, no processo eleitoral em curso.
Toda a aura de restauração da dignidade das instituições que a grande mídia promoveu, através do Ministro Barbosa, revelou-se assim insossa e sem consequências eleitorais e não contou, nem com a cumplicidade da maioria do Supremo (que não manteve o crime de “formação de quadrilha”), nem com a aceitação decisiva do Ministro Barbosa (que não se deixou instrumentalizar como candidato-produto ), como fez o Presidente Collor no passado.
Mas, em que contexto se dá essa desavença? No contexto em que dois grandes fatos políticos nacionais, com reflexos globais, o “mensalão mineiro” (lembrem-se, não é “mensalão tucano”), e o caso “Alston” (lembrem-se, é a empresa “Alston”, não é o PSDB), estão sendo substituídos no debate político pautado pela mídia tradicional, por um feroz ataque ao Governo Dilma. Ataque em três frentes: os problemas do setor elétrico, a tentativa de desvalorização política e financeira da Petrobras e do BNDES e a suposta debilidade das contas públicas nacionais.
Tudo isso ocorre num contexto de transferência dos efeitos da crise - ou melhor aprofundamento da transferência da crise financeira do capitalismo global - para que os BRICS e os países da periferia paguem a conta. E o façam enfraquecendo as suas moedas e assumindo -ainda que em alguns casos através de doses homeopáticas- políticas ortodoxas de controle inflacionário. A correia de transmissão destas políticas é a captura do Estado pela dívida pública; o método é a submissão no intercâmbio comercial do mercado global; a finalidade é municiar, politicamente, os países ricos para a guerra imediata contra as moedas fracas.
Ao criar um quadro de desvalorização dos ativos estatais, como são as suas empresas e os seus bancos, como a Petrobras e o BNDES, ao brandir o fantasma da inflação, ao enfraquecer as políticas de desenvolvimento do Governo - abalando assim o seu prestígio político internacional - o que a oposição de direita pretende é construir o espectro da inadimplência da dívida externa e estimular, mais uma vez, que os juros subam de forma artificial, para dar maior potência à ciranda especulativa.
Algo, porém, não se ajusta. Paul Krugman disse recentemente que o Brasil, ao contrário do que apregoa o FED, não é mais vulnerável como no passado e que não se deve esperar dos EUA políticas que não sejam de interesse da sua exclusiva necessidade para recuperar a própria economia americana. No segundo mês deste ano criamos 111% a mais de empregos no país do que o mesmo mês de 2013.
O crescimento do Brasil, no ano passado, demonstrou-se razoável na comparação com o crescimento dos principais países mais industrializados mundo. As grandes jornadas de junho - que partiram de necessidades reais das grandes massas de moradores nas grandes regiões metropolitanas em busca de melhor saúde e transporte- depois de devidamente “glamourizadas” pela mídia como um movimento da classe média conservadora contra a “corrupção”, perderam potência e transformaram-se em escassas cenas de “ação direta”. Ficaram, então, sem a presença das classes trabalhadoras e dos setores médios dependentes da qualidade destes serviços.
Neste cenário, o preocupante não é sequer as eleições de 2014, já que elas são precedidas de um amplo debate público através das mídias, garantido pela legislação eleitoral. O preocupante é a impotência da esquerda e do centro democrático reformista, para se opor a esta ofensiva no próximo período. Nele, ao que tudo indica, o jogo democrático ficará mais bloqueado. O Poder Judiciário sofrerá ainda mais pressões para adaptar-se às reformas neoliberais contra as políticas públicas democráticas realizadas nos últimos dez anos e a reforma política permanecerá excluída da agenda do país. A secundarização da reforma política é um verdadeiro suicídio que vem sendo cometido pela “classe política”, como a sociologia vulgar denomina a representação e os partidos tradicionais.
A substituição da tentativa do controle das decisões do Supremo, pela grande mídia, por um ataque direto ao Estado, para enfraquecê-lo no cenário global (que hoje induz a interdependências extremas), permanecerá, ao longo deste ano, como questão dominante no cenário eleitoral. A crise singular - um racha imprevisto - entre a imprensa representada por Noblat e o Ministro Barbosa, como um dos expoentes do Supremo, embora tenha o sabor de uma disputa entre indivíduos, é indicativa de uma mudança na estratégia da direita
Num primeiro momento ela capturou o Supremo e utilizou um processo penal para condenar sem provas e seduzir o povo, pois afinal estávamos “terminando com os corruptos e a corrupção”. O “mensalão mineiro” e a “Alston” vem atrapalhando? Bem, passemos para outra estratégia: é o segundo momento. A grande mídia muda de foco e passa a denunciar que o Estado, em termos orçamentário-financeiros, está em crise aguda - Petrobras, setor elétrico, retorno da inflação - aprimorando-se em forjar “notas” nas agências picaretas para desmoralizar o Governo e preparar qualquer um para ganhar as eleições de 14, menos Dilma com o PT. E agora? As pesquisas não respondem!
A desigualdade para a circulação da opinião conseguiu combinar-se com a liberdade de imprensa na pós-modernidade brasileira, estruturada sobre a fragmentação da velha sociedade de classes. A separação de representantes e representados, a desarticulação dos sujeitos políticos tradicionais, a “guetização” dos movimentos sociais, permite que as classes ricas no cenário mundial, abrigadas no poder do capital financeiro especulativo (que não precisa do trabalho para reproduzir-se), promovam sucessivos incêndios simbólicos do Reichstag. No seu final, não nos iludamos, estará, à espreita o apelo às ditaduras ou a governos expeditos, tecnocráticos, “técnicos”. Os que dispensem as mediações da política para governar.
A concepção tradicional do pacto democrático moderno, que “a liberdade de um vai até onde inicia a liberdade do outro”, verdadeiramente não funciona mais. Pelo menos nas democracias mais jovens, em países desiguais em poder e influência como o nosso Brasil. Os limites da nossa liberdade de disputar em condições de igualdade contra a hegemonia da mídia dominante - que trocou o debate político pela divulgação histérica do crime e da violência e substituiu a informação pela ideologia da crise permanente - está incendiando as fronteiras da democracia.
Lembremos que a verdadeira liberdade necessita do “outro” para expressar-se. O “outro” somos nós - a esquerda que participa do Governo do país (que é um governo centrista, progressista e democrático) - e igualmente aquela esquerda que não participa do Governo. Nós somos, não um limite mas uma condição necessária para o exercício da liberdade: o limite da democracia na pós-modernidade latino-americano e tardia, é a captura do Estado pelo capital financeiro e é isso que hoje sufoca a democracia no Brasil e que está em jogo no processo eleitoral que se avizinha.
Seria muito bom que os partidos de esquerda entendessem este dilema e incidissem sobre o Governo para sustentá-lo de forma mais unitária e organizada. Menos preocupados com as ansiedades eleitorais imediatas e mais preocupados em não permitir simbólicos incêndios do Reichstag. O falso recado de que a economia e o Estado estão em crise final é a arma mais potente da oposição e dos eduardos em evidência. Seria importante também que, quem coordena politicamente o Governo Dilma, se abrisse para um diálogo político mais amplo do que o circunscrito pela conjuntura de extorsão, originária da “política de resultados” do centrão renascido.
Lucio Magri relata no seu memorável livro “O alfaiate de Ulm”, testemunho e história meticulosa do comunismo italiano e da decadência social-democrata, um fato simbólico inspirado num apólogo de Brecht. Um artesão, vidrado pela idéia de voar, apresentou-se ao bispo da sua região, anunciando que tinha inventado um aparelho para tal. O bispo, certamente irônico e pragmático, levou-o à torre do Palácio e desafiou-o a demonstrar. O pobre artesão, que era um alfaiate, lançou-se no espaço espatifou-se no chão. Foi derrotado, mas séculos depois o homem cruzou os ares. O homem podia voar. Ele estava certo. O bispo estava errado. Embora a história seja “dramática e custosa”, como diz Magri, as idéias ousadas podem vencer e se impor. Para vencer as eleições e governar com novos avanços na revolução democrática precisamos da grandeza do alfaiate de Ulm.
(*) Governador do Rio Grande do Sul
Não fosse a importância das duas personalidades envolvidas - Ministro Presidente do Supremo Joaquim Barbosa e o jornalista Ricardo Noblat - passaria desapercebida a notícia de que o primeiro acusa o segundo, perante os Tribunais, de ter cometido, em artigo largamente difundido pela mídia nativa, crime contra a sua honra, combinado com crime de natureza racial.
Noblat escrevera que “há negros que padecem de complexo de inferioridade. Outros assumem uma postura radicalmente oposta para enfrentar a discriminação”, aduzindo ainda, que Joaquim Barbosa não teria sido escolhido para o Supremo particularmente pelas suas qualidades jurídicas, mas por ser “negro”. Uma frase, aliás, incompatível com a coincidência, na figura do Ministro Barbosa (que é negro e jurista renomado), dos dois atributos alinhados por Noblat.
No seu texto, no mínimo infeliz (embora distante de ser doloso em termos penais), Noblat deixou-se levar mais pelas tarefas políticas que desempenha com rara eficiência no seu antilulismo e antipetismo explícito e menos pela isenção jornalística. Com formação e doutorado em Universidades de primeira grandeza, concordemos ou não com as suas posições doutrinárias, o Ministro Joaquim Barbosa não está menos preparado do que a média dos seus pares, para ser Ministro do nosso Supremo.
Ambos, Barbosa e Noblat, tiveram um protagonismo importante no último período do julgamento da ação penal 470: o primeiro, como duro Ministro Relator do processo, tornando-se um símbolo do “ativismo judicial”, que hoje caracteriza praticamente todas as instâncias deste Poder, até há pouco bastante refratário às luzes midiáticas; o segundo, como uma espécie de organizador ideológico do massacre midiático a que foram submetidos os “quadrilheiros” do mensalão, aliás absolvidos do crime de formação de quadrilha, epílogo que joga para a ilegalidade todas as acusações desta natureza, que receberam da mídia tradicional.
Independentemente do juízo que tenhamos sobre as opiniões e argumentos destas figuras importantes do cenário político nacional devemos, mais além de respeitar as suas trajetórias dentro do jogo democrático, procurar no cenário da disputa que se abre entre ambos, algo de universal nas suas condutas. Isso é útil para nos situar em que pé estamos no processo da revolução democrática em nosso país, cujo marco jurídico mais importante é a Constituição do 88.
Lembremos que o Ministro Barbosa, mais de uma vez, disse que a mídia brasileira é de direita e desentendeu-se com jornalistas que - passada a fase em que o incensavam pela sua conduta na ação penal 470 (tornando-o uma espécie de ídolo da moralidade anti-política) - supunham que ele poderia ser candidato do mesmo complexo midiático-direitista, que não cansava de promovê-lo. Causou, assim, uma mal-disfarçada decepção nos seus propagandistas, tanto do campo conservador clássico, como daqueles que apostavam que o moralismo udenista redivivo, proporcionaria uma restauração neoliberal plena em nosso país. O narcisismo absolutista da mídia nacional deu lugar a uma “decepção de resultados”: os que sabem tudo e são incriticáveis defrontaram-se com a sua própria ineficiência política.
Está dando tudo errado. Então as raivas trocam de endereço e o Ministro Barbosa vira alvo. Precisamos entender a sofisticação desta “troca de alvo”, que se tornou agressiva no texto de Noblat. Ela é simbólica de um processo de ruptura do bloco político espontâneo que se formou para massacrar Lula e o PT, no contexto de uma ação penal que foi, paulatinamente, transformando-se num processo de julgamento da política em geral e dos governos Lula, em particular.
Para nós, da maioria de esquerda que esteve e está comprometida com a República e a Democracia e com os avanços conseguidos com os governos Lula e Dilma, não se trata de ficar a favor de Noblat ou do Ministro Barbosa, no contexto atual, embora tenhamos as nossas convicções. Trata-se de entender que estamos - a partir das últimas decisões do STF e das queimações contra o Ministro Barbosa - numa nova etapa da luta política no país. Nela, as instituições da Constituição de 88 podem recuperar a sua credibilidade democrática e republicana ou perdê-la para sempre.
Não concordei com várias das posições do Ministro Barbosa na direção daquela ação penal, mas reconheço que, quando ele acertou em relação aos sacerdotes da comunicação no país, cometeu dois erros graves na apreciação da grande mídia. Estes “erros” é que proporcionaram os ataques que ele vem sofrendo. Quais são? Primeiro, disse que a grande mídia é , na sua maioria, direitista; e, segundo, não permitiu a socialização imediata do seu prestígio para a direita udenista conservadora e/ou neoliberal, no processo eleitoral em curso.
Toda a aura de restauração da dignidade das instituições que a grande mídia promoveu, através do Ministro Barbosa, revelou-se assim insossa e sem consequências eleitorais e não contou, nem com a cumplicidade da maioria do Supremo (que não manteve o crime de “formação de quadrilha”), nem com a aceitação decisiva do Ministro Barbosa (que não se deixou instrumentalizar como candidato-produto ), como fez o Presidente Collor no passado.
Mas, em que contexto se dá essa desavença? No contexto em que dois grandes fatos políticos nacionais, com reflexos globais, o “mensalão mineiro” (lembrem-se, não é “mensalão tucano”), e o caso “Alston” (lembrem-se, é a empresa “Alston”, não é o PSDB), estão sendo substituídos no debate político pautado pela mídia tradicional, por um feroz ataque ao Governo Dilma. Ataque em três frentes: os problemas do setor elétrico, a tentativa de desvalorização política e financeira da Petrobras e do BNDES e a suposta debilidade das contas públicas nacionais.
Tudo isso ocorre num contexto de transferência dos efeitos da crise - ou melhor aprofundamento da transferência da crise financeira do capitalismo global - para que os BRICS e os países da periferia paguem a conta. E o façam enfraquecendo as suas moedas e assumindo -ainda que em alguns casos através de doses homeopáticas- políticas ortodoxas de controle inflacionário. A correia de transmissão destas políticas é a captura do Estado pela dívida pública; o método é a submissão no intercâmbio comercial do mercado global; a finalidade é municiar, politicamente, os países ricos para a guerra imediata contra as moedas fracas.
Ao criar um quadro de desvalorização dos ativos estatais, como são as suas empresas e os seus bancos, como a Petrobras e o BNDES, ao brandir o fantasma da inflação, ao enfraquecer as políticas de desenvolvimento do Governo - abalando assim o seu prestígio político internacional - o que a oposição de direita pretende é construir o espectro da inadimplência da dívida externa e estimular, mais uma vez, que os juros subam de forma artificial, para dar maior potência à ciranda especulativa.
Algo, porém, não se ajusta. Paul Krugman disse recentemente que o Brasil, ao contrário do que apregoa o FED, não é mais vulnerável como no passado e que não se deve esperar dos EUA políticas que não sejam de interesse da sua exclusiva necessidade para recuperar a própria economia americana. No segundo mês deste ano criamos 111% a mais de empregos no país do que o mesmo mês de 2013.
O crescimento do Brasil, no ano passado, demonstrou-se razoável na comparação com o crescimento dos principais países mais industrializados mundo. As grandes jornadas de junho - que partiram de necessidades reais das grandes massas de moradores nas grandes regiões metropolitanas em busca de melhor saúde e transporte- depois de devidamente “glamourizadas” pela mídia como um movimento da classe média conservadora contra a “corrupção”, perderam potência e transformaram-se em escassas cenas de “ação direta”. Ficaram, então, sem a presença das classes trabalhadoras e dos setores médios dependentes da qualidade destes serviços.
Neste cenário, o preocupante não é sequer as eleições de 2014, já que elas são precedidas de um amplo debate público através das mídias, garantido pela legislação eleitoral. O preocupante é a impotência da esquerda e do centro democrático reformista, para se opor a esta ofensiva no próximo período. Nele, ao que tudo indica, o jogo democrático ficará mais bloqueado. O Poder Judiciário sofrerá ainda mais pressões para adaptar-se às reformas neoliberais contra as políticas públicas democráticas realizadas nos últimos dez anos e a reforma política permanecerá excluída da agenda do país. A secundarização da reforma política é um verdadeiro suicídio que vem sendo cometido pela “classe política”, como a sociologia vulgar denomina a representação e os partidos tradicionais.
A substituição da tentativa do controle das decisões do Supremo, pela grande mídia, por um ataque direto ao Estado, para enfraquecê-lo no cenário global (que hoje induz a interdependências extremas), permanecerá, ao longo deste ano, como questão dominante no cenário eleitoral. A crise singular - um racha imprevisto - entre a imprensa representada por Noblat e o Ministro Barbosa, como um dos expoentes do Supremo, embora tenha o sabor de uma disputa entre indivíduos, é indicativa de uma mudança na estratégia da direita
Num primeiro momento ela capturou o Supremo e utilizou um processo penal para condenar sem provas e seduzir o povo, pois afinal estávamos “terminando com os corruptos e a corrupção”. O “mensalão mineiro” e a “Alston” vem atrapalhando? Bem, passemos para outra estratégia: é o segundo momento. A grande mídia muda de foco e passa a denunciar que o Estado, em termos orçamentário-financeiros, está em crise aguda - Petrobras, setor elétrico, retorno da inflação - aprimorando-se em forjar “notas” nas agências picaretas para desmoralizar o Governo e preparar qualquer um para ganhar as eleições de 14, menos Dilma com o PT. E agora? As pesquisas não respondem!
A desigualdade para a circulação da opinião conseguiu combinar-se com a liberdade de imprensa na pós-modernidade brasileira, estruturada sobre a fragmentação da velha sociedade de classes. A separação de representantes e representados, a desarticulação dos sujeitos políticos tradicionais, a “guetização” dos movimentos sociais, permite que as classes ricas no cenário mundial, abrigadas no poder do capital financeiro especulativo (que não precisa do trabalho para reproduzir-se), promovam sucessivos incêndios simbólicos do Reichstag. No seu final, não nos iludamos, estará, à espreita o apelo às ditaduras ou a governos expeditos, tecnocráticos, “técnicos”. Os que dispensem as mediações da política para governar.
A concepção tradicional do pacto democrático moderno, que “a liberdade de um vai até onde inicia a liberdade do outro”, verdadeiramente não funciona mais. Pelo menos nas democracias mais jovens, em países desiguais em poder e influência como o nosso Brasil. Os limites da nossa liberdade de disputar em condições de igualdade contra a hegemonia da mídia dominante - que trocou o debate político pela divulgação histérica do crime e da violência e substituiu a informação pela ideologia da crise permanente - está incendiando as fronteiras da democracia.
Lembremos que a verdadeira liberdade necessita do “outro” para expressar-se. O “outro” somos nós - a esquerda que participa do Governo do país (que é um governo centrista, progressista e democrático) - e igualmente aquela esquerda que não participa do Governo. Nós somos, não um limite mas uma condição necessária para o exercício da liberdade: o limite da democracia na pós-modernidade latino-americano e tardia, é a captura do Estado pelo capital financeiro e é isso que hoje sufoca a democracia no Brasil e que está em jogo no processo eleitoral que se avizinha.
Seria muito bom que os partidos de esquerda entendessem este dilema e incidissem sobre o Governo para sustentá-lo de forma mais unitária e organizada. Menos preocupados com as ansiedades eleitorais imediatas e mais preocupados em não permitir simbólicos incêndios do Reichstag. O falso recado de que a economia e o Estado estão em crise final é a arma mais potente da oposição e dos eduardos em evidência. Seria importante também que, quem coordena politicamente o Governo Dilma, se abrisse para um diálogo político mais amplo do que o circunscrito pela conjuntura de extorsão, originária da “política de resultados” do centrão renascido.
Lucio Magri relata no seu memorável livro “O alfaiate de Ulm”, testemunho e história meticulosa do comunismo italiano e da decadência social-democrata, um fato simbólico inspirado num apólogo de Brecht. Um artesão, vidrado pela idéia de voar, apresentou-se ao bispo da sua região, anunciando que tinha inventado um aparelho para tal. O bispo, certamente irônico e pragmático, levou-o à torre do Palácio e desafiou-o a demonstrar. O pobre artesão, que era um alfaiate, lançou-se no espaço espatifou-se no chão. Foi derrotado, mas séculos depois o homem cruzou os ares. O homem podia voar. Ele estava certo. O bispo estava errado. Embora a história seja “dramática e custosa”, como diz Magri, as idéias ousadas podem vencer e se impor. Para vencer as eleições e governar com novos avanços na revolução democrática precisamos da grandeza do alfaiate de Ulm.
(*) Governador do Rio Grande do Sul
Nenhum comentário:
Postar um comentário