Paulo Kliass no sítio da Carta Maior
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Esse movimento pode ser mais bem compreendido caso seja analisado sob a perspectiva da chamada modernização conservadora. É inegável que os anos 50 e 60 representavam um momento histórico marcado por uma intensa disputa política entre diferentes projetos para o futuro da sociedade brasileira. Assim, o desfecho pela via da movimentação de tropas e pela violenta repressão aos opositores do retrocesso abriu o caminho para a implementação do projeto das forças conservadoras, dos setores mais à direita de nossa sociedade, aqueles vinculados de forma íntima ao capital financeiro e internacional.
Ao fazer terra arrasada do respeito às regras democráticas e institucionais, os governos militares chamaram para o comando da economia as figuras que mais bem representavam os interesses de amplos setores do capital, aqueles que se opunham às reformas de base e trabalhavam abertamente pela derrubada do Jango. Dentre as personalidades mais emblemáticas - e que ocuparem postos de destaque nas equipes de governo - estavam Roberto Campos, Delfim Netto e Mario Henrique Simonsen.
Campos, Delfim e Simonsen: a essência conservadora
“Bob Fields”, como era conhecido o embaixador de Jango em Washington, foi rapidamente chamado para ocupar o Ministério do Planejamento pelo Marechal Castelo Branco, logo depois de consolidado o golpe. Sua articulação com os representantes do sistema financeiro no além-mar facilitaram o processo de internacionalização da economia brasileira. O professor da USP Delfim Netto abriu pontes essenciais com o empresariado paulista e consolidou a estratégia do chamado período do “milagre brasileiro”. O carioca Simonsen permitiu o fortalecimento dos laços com a nata do monetarismo ortodoxo, em grande parte abrigada no interior da Fundação Getúlio Vargas no Rio de Janeiro. A presença dos três quadros do conservadorismo confirmava a natureza do novo regime e oferecia a “tranquilidade” necessária aos investidores internacionais.
Um conjunto importante de mudanças institucionais foi levado a cabo a partir da tomada do poder pelos golpistas. Tratava-se de construir os alicerces do edifício do capitalismo financeiro e de ampliar os espaços para a acumulação de capital, pelos mais variados setores e por todo o território nacional. Uma das primeiras medidas foi a revogação da limitação da remessa de lucros ao exterior. Carregada de forte simbolismo político, a medida de agosto de 1964 oferecia às empresas multinacionais aqui instaladas, aos investidores e ao financismo internacional a justa medida de como seriam, a partir de então, tratadas as novas relações econômicas e comerciais com o resto do mundo.
Pelo lado do sistema financeiro, outras decisões foram tomadas. Em dezembro de 1964 foi criado o Banco Central, uma autarquia federal que passaria a operar já no ano seguinte. Com isso, deu-se a retirada das funções de autoridade monetária que eram atribuídas, até então, a uma área do Banco do Brasil - a poderosa Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC). Em 1965, uma nova lei passa a consolidar o funcionamento das bolsas de valores e do mercado de capitais de forma mais ampla. A intenção era tornar as praças daqui mais contemporâneas das operações realizadas no mundo desenvolvido.
BC, BNH, FGTS, ORTN e outras siglas para o capital
Ainda na área de modernização financeira, foi criado o Banco Nacional da Habitação (BNH), para se ocupar de um grande movimento para construção de moradias. A base de financiamento desse expressivo salto à frente do setor da construção civil veio com o modelo da “caderneta de poupança” (Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo - SBPE) e o modelo do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS). O estímulo a esse tipo de poupança oferecia às instituições financeiras um volume expressivo de recursos a custos reduzidos, ao passo que o FGTS (administrado pelo BNH) veio no vácuo criado pela eliminação da estabilidade no emprego, tal como prevista na legislação trabalhista até o golpe. Pelas novas regras, o trabalhador perdia o direito a um salário por ano trabalhado, que teoricamente seria compensado pelo recolhimento mensal, a ser efetuado pelas empresas, equivalente a 8% de sua remuneração.
A recuperação da capacidade fiscal do governo ocorreu por meio da aprovação do novo Código Tributário Nacional em 1966 e pela introdução da grande inovação da chamada “correção monetária”. O novo sistema de tributos estabelecia um modelo marcado por sua profunda regressividade, de forma que as rendas elevadas, o patrimônio e o capital eram menos atingidos do que os rendimentos do trabalho. Além do aumento de sua capacidade de arrecadação, o governo avançou pelo lado da oferta de títulos da dívida pública.
Assim, foram lançadas as Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTNs). A correção monetária foi concebida como mecanismo de recuperação da credibilidade das aplicações financeiras, em razão das perdas provocadas pela inflação. Assim, os novos títulos emitidos pelo Tesouro passavam a assegurar aos investidores uma remuneração que seria composta pela taxa de juros e acrescida de uma correção baseada na inflação do período. Ali estava lançada a semente do processo generalizado de indexação, que viria a se espalhar por todos os setores de nossa economia a partir de então.
Endividamento externo e fragilidade interna
No pacote de busca de estabilidade, o viés monetarista orientou a reforma do padrão da moeda ainda em 1967. O cruzeiro foi substituído pelo “cruzeiro novo”, com a troca de cada mil unidades antigas por uma unidade da nova moeda. No entanto, essa mudança não foi suficiente para impedir a continuidade do processo inflacionário, que se manteve firme no período que se seguiu. Assim, um novo plano de estabilização ocorreu em 1986, quando novamente o padrão monetário foi alterado com o advento do cruzado.
Um dos principais pilares para alavancar o crescimento econômico a partir de 1964 foi o recurso ao endividamento externo. O setor público foi largamente utilizado para esse propósito, assim como as empresas privadas também foram estimuladas a tomar empréstimos em dólares norte-americanos. Essa opção embutia uma forte fragilidade para as operações de longo prazo. A partir do final da década de 1970, com a elevação das taxas de juros no mercado internacional, a dívida externa brasileira começa a apresentar sua fatura. Com o aumento dos preços do petróleo a crise do setor externo se torna mais aguda e 1982 representa um ponto de ruptura. Recessão, desemprego, desvalorização cambial. É um componente a mais no processo de desgaste político do regime militar, já em ritmo de abertura, e que desembocará na luta pelas diretas em 1984, na eleição de Tancredo Neves e na nova Constituição em 1988.
A política econômica desenvolvida durante a ditadura deixou marcas severas. O poder de compra dos salários foi bastante reduzido ao longo de período: seja pela repressão direta sobre o movimento sindical, seja pela tutela estabelecida sobre a justiça do trabalhista, seja pela corrosão provocada pela inflação persistente.
A concentração de renda também observou uma tendência de recrudescimento a partir de 1964. Uma das medidas utilizadas para aferir esse tipo de desigualdade - o chamado índice de Gini – sofreu elevação sistemática entre as décadas de 1960 e 1990, só vindo a apresentar alguma melhoria a partir do Plano Real. O recurso retórico que ficou bastante conhecido durante a ditadura militar foi eternizado por Delfim Netto. O então todo-poderoso ministro dizia que era necessário “primeiro fazer o bolo crescer, para depois reparti-lo.”
Apesar de todo o esforço exportador da época da ditadura, as respostas da Balança Comercial não foram tão promissoras. Ela sai de um superávit de US$ 340 milhões em 1964 e atinge um déficit de US$ 2 bilhões em 1980. A reversão desse quadro só ocorre em 1984, quando as exportações voltam a suplantar as importações. Além disso, a situação nas Transações Correntes é ainda mais grave.
Nesse caso, são computadas as despesas financeiras e de serviços nas relações internacionais. O superávit de US$ 81 milhões em 1964 se transforma em déficit de US$ 16 bilhões em 1982. O Brasil recorre a um acordo com o FMI para reverter essa debilidade e suas conseqüências foram um aprofundamento ainda maior da crise.
A elevação dos valores da dívida externa foi assustadora. Ela sai de um patamar de US$ 3 bi em 1964 e atinge a marca de US$ 102 bi em 1984. E um elemento que oferecia mais preocupação foi a baixa capacidade do país em acumular reservas internacionais. Elas saíram de US$ 240 milhões em 1964 para US$ 12 bilhões. Assim, uma das principais marcas do modelo de política econômica foi a drenagem de recursos para pagar os compromisso da dívida externa contraída. A vulnerabilidade do setor externo foi uma herança bastante negativa para os períodos que se seguiram.
“A economia vai bem, o povo vai mal”
Outro elemento que se deteriorou ao longo dos 20 anos do regime golpista foi justamente o crescimento dos preços. Não obstante o discurso oficial das sucessivas equipes econômicas estar sempre focado no controle da inflação, o fato concreto é que houve uma evidente incapacidade em promover tal estratégia. O índice oficial de 1964 havia sido de 70%, mas em 1984 a inflação superava a barra dos 210%. Era o período que antecedia os difíceis anos que viriam na sequência, com a espiral hiperinflacionária e os sucessivos planos de estabilização que se seguiram ao Plano Cruzado.
A política econômica encerrava, portanto, os elementos de modernização e de atraso. Para o processo de produção e ampliação dos ganhos das empresas, as políticas públicas se encarregavam de oferecer o que de mais atual e eficiente existisse no estado das artes do capitalismo internacional. Já para os trabalhadores e para a maioria da população brasileira, o quadro era de aprofundamento da miséria e da desigualdade social e econômica. Uma frase atribuída ao General Presidente Medici, durante a época do chamado milagre, reflete bem essa aparente contradição: “a economia vai bem, mas o povo vai mal”.
(*) Doutor em economia pela Universidade de Paris 10 (Nanterre) e integrante da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão Governamental, do governo federal.
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