segunda-feira, 17 de março de 2014

A doutrina da azeitona

Por David Kupfer no Jornal Valor Econômico - artigo enviado pelo economista Mairon Brandes




Gradativamente, a indústria brasileira vai se ajustando ao quadro macroeconômico
extremamente desafiador que se cristalizou nos últimos anos. A medida que as
estatísticas do ano passado vão sendo divulgados e análises mais aprofundadas
começam a vir a tona, percebe-se que, ao fim e ao cabo, o ano de 2013 não foi
perdido. Muito além de um crescimento do PIB de apenas 2,3% - embora até
razoável em comparação com o de outros países emergentes na difícil conjuntura
mundial do período, sem dúvida frustrante em relação às expectativas - o ano
passado mostrou mudanças positivas na trajetória de algumas importantes
variáveis da cena industrial.
Dentre as variáveis que apresentaram inflexão em 2013 e passaram a apontar para
uma direção mais favorável cabe destacar os custos industriais e a produtividade.
Após muitos anos, o indicador de custos industriais calculado pela CNI expandiu-se
em ritmo inferior aos preços industriais, provocando um bem-vindo alívio na
rentabilidade da produção. Parcela importante desse comportamento deve-se à
queda dos custos de insumos intermediários, com destaque para a energia. Já o
custo com pessoal apresentou crescimento de 7,5%, ainda que quando medido em
dólares (relação câmbio-salário) o rendimento médio do trabalho na indústria
tenha ficado 2,5% abaixo do nível verificado em 2012.
Quanto à produtividade da indústria, em 2013 constatou-se um crescimento de
2,4%, em consequência de um aumento de 1,3% na produção e de uma queda de
1,2% no número total de horas pagas, de acordo com o IBGE. Apesar de insuficiente
para compensar a estagnação acumulada nos dois anos anteriores, essa melhora na
produtividade, juntamente com a desvalorização cambial, possibilitou que o
indicador de custo salarial unitário da economia (remuneração em dólares paga
para a obtenção de uma quantidade de produto, ajustada pela produtividade)
recuasse 3,8% de janeiro a novembro de 2013. A interrupção da ascensão que vinha
sendo exibida pelo indicador desde 2004 certamente deverá ajudar na recuperação
da competitividade da indústria no corrente ano.
Aqui é interessante alargar o período de observação. De acordo com a metodologia
do Banco Central, ao final de 2004 o custo salarial unitário da economia brasileira
estava em um nível quase 40% inferior ao de junho de 1994, no imediato pós-real.
Isso significa que uma parcela significativa do crescimento dos salários à frente da
produtividade ocorrido entre esses anos correspondeu, de verdade, a uma
recomposição da remuneração do trabalho, provavelmente corroída pela inflação
alta e crônica do período anterior. Tanto é assim que, tomando-se essa base em
junho de 1994, ao final de 2008 os custos salariais haviam acumulado um aumento
de 3,4% em 14 anos, montante que, em nenhuma hipótese, pode ser considerado
como uma trajetória explosiva de crescimento.
No entanto, após a grande crise de 2008 os números ganharam contornos
diferentes. Em vista dos efeitos conjugados da revalorização cambial, da estagnação
da produtividade e do forte aquecimento do mercado de trabalho, especialmente
dos serviços, o custo salarial unitário iniciou uma verdadeira escalada que provocou
um aumento acumulado de mais de 40% em apenas quatro anos. É exatamente a
reversão dessas três condições adversas, com a desvalorização cambial, a retomada
da produtividade e o esfriamento do mercado de trabalho ocorridos em 2013 que
justifica a melhora no quadro esperado para o futuro próximo.
Especificamente sobre o fôlego da retomada da produtividade, pesquisas recentes
com empresários (CNI, Ipea) mostram que a ampla maioria dos entrevistados
considera que a produtividade da sua empresa vem aumentando. Segundo, por
exemplo, o Radar Ipea nº 41, de fevereiro de 2014, com referência aos últimos cinco
anos, 68% das empresas estão nesse caso. Contrastado com o indicador agregado
de produtividade que, ao contrário, mostra estagnação nesse período, fica um
paradoxo a ser esclarecido: como ações individuais de busca de produtividade,
consideradas bem-sucedidas da porta da fábrica para dentro, podem coexistir com
um resultado agregado claramente tão pouco satisfatório.
A explicação desse paradoxo requer uma reflexão sobre a economia política da
produtividade no Brasil. Ainda de acordo com a mesma pesquisa, o principal
obstáculo ao incremento da produtividade na opinião das empresas respondentes é
a baixa qualificação da mão de obra. Em segundo lugar está a baixa escala de
produção. O terceiro fator mais importante é o mau desempenho dos fornecedores
em termos de prazo e de confiabilidade. Enfim, todos fatores externos à empresa.
Somente depois desses aparecem a falta de investimento em inovação, a baixa
qualidade dos equipamentos utilizados e os métodos de gestão inadequados, quer
dizer, fatores que estão sob a esfera direta de atuação das próprias empresas.
A produtividade é a azeitona na empada da produção. E, como ensina a sabedoria
popular, ninguém coloca a sua azeitona na empada do outro. De acordo com o
Dieese, com base nas Contas Nacionais do IBGE, em 2009 apenas 20% das
ocupações pertenciam a setores com níveis de produtividade superiores à média da
economia e, ainda, apenas 4% dos trabalhadores estavam em setores com o dobro
ou mais do que essa média. Esse padrão tão desigual de geração de valor é o grande
problema a ser enfrentado. E essa é uma empreitada coletiva, envolvendo capital e
trabalho, que não conseguirá avançar sem que se construa um pacto social capaz de
ordenar a forma como os ganhos de produtividade venham a ser distribuídos na
justa medida em que forem se concretizando.
David Kupfer - professor licenciado e membro do Grupo de Indústria e
Competitividade do Instituto de Economia da UFRJ (GIC-IE/UFRJ) e
assessor da presidência do BNDES. Escreve mensalmente às segundasfeiras.
E-mail: gic@ie.ufrj.br) www.ie.ufrj.br/gic. As opiniões expressas
são do autor e não necessariamente refletem posições do BNDES.

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