Michael Pettis
O crescimento econômico chinês está perceptivelmente em desaceleração. Embora a taxa de 7,6% de crescimento anual do Produto Interno Bruto (PIB) registrada no segundo trimestre deste ano pudesse satisfazer a grande maioria dos países em desenvolvimento, é muito menor do que a dos anos anteriores, de crescimento médio entre 10% e 11%. Porém, mesmo essa taxa de crescimento mais baixa subestima o problema.
A maioria dos analistas não acredita nos dados oficiais. O crescimento do uso de energia e o consumo de energia elétrica neste ano ficaram entre inalterado e negativo, sugerindo que o crescimento real da economia chinesa é substancialmente menor do que indicam os números oficiais. Alguns economistas argumentam que o crescimento real da China pode ter ficado na metade das taxas oficiais.
As condições são tão alarmantes que, várias vezes, neste ano, o premiê Wen Jiabao alertou que a economia está sob severa pressão econômica. Alguns especialistas estão exortando Pequim a reduzir drasticamente a taxa de juros, expandir o crédito bancário, aumentar os investimentos em infraestrutura e salvar a China e o mundo do desastre iminente.
Mas eles estão errados em qualificar o crescimento mais lento como um desastre potencial. Desaceleração é exatamente o que a China e o mundo necessitam. Pequim não teve êxito, em suas muitas tentativas, a partir já de 2005, de reequilibrar uma economia excessivamente dependente de investimentos e comércio, mas as coisas podem ter finalmente mudado. Durante os últimos seis meses, pode ter começado o urgente ajuste econômico da China.
O processo de ajuste não será fácil. Os níveis de endividamento aumentaram drasticamente e há muitos anos o investimento não gera mais retorno suficiente para cobrir o serviço correspondente da dívida. Os investimentos, porém, têm sido a única fonte importante de crescimento há 30 anos. A China defronta-se com o problema de que mais investimentos produzirão uma crise de endividamento, e menos investimentos resultarão em redução acentuada do crescimento.
O crescimento bem mais rápido do consumo deverá ajudar a resolver o problema, mas sendo a participação do consumo chinês no PIB pouco superior a metade da média mundial, levará muitos anos para que o consumo possa crescer suficientemente para substituir o investimento como motor de crescimento da economia chinesa. Além disso, há razões estruturais que tornam muito difícil incrementar o consumo.
A chave para aumentar o consumo é aumentar a participação da renda familiar no PIB, que é muito inferior à de qualquer outra economia no mundo. Elevar a parcela de renda familiar no PIB requer aumentar os salários na China, valorizar o yuan e, o mais importante, reduzir o imposto oculto que as famílias implicitamente pagam às instituições que lhes tomam dinheiro emprestado a juros artificialmente baixos.
Mas isso fará com que o crescimento desacelere acentuadamente ao mesmo tempo em que a economia for reequilibrada. Os juros baixos, em particular, transferem cerca de 5% a 8% do PIB, todo ano, dos poupadores domésticos para os tomadores de seus recursos, e, portanto, são tanto a causa principal do desequilíbrio econômico chinês e a principal fonte do crescimento espetacular da China. Forçar uma elevação da taxa real de juros é o passo mais importante que Pequim pode tomar para reduzir gastos desnecessários. Inevitavelmente, porém, o aumento da taxa de juros retardará o crescimento.
Pequim reduziu os juros duas vezes, nos últimos meses, e os políticos estão sob pressão para reduzi-los ainda mais, mas tendo a inflação caído rapidamente neste ano, o retorno real para os correntistas domésticos e o custo real dos empréstimos efetivamente dispararam, nos últimos meses. A China, em outras palavras, está finalmente corrigindo uma de suas piores distorções econômicas.
Juros mais altos, se forem mantidos, inevitavelmente reduzirão o crescimento dos investimentos, e embora o investimento na China seja desperdiçado numa escala nunca antes vista, talvez, na história - e por isso deve urgentemente ser reduzido, porque tem sido a maior fonte de atividade econômica -, reduzi-lo será doloroso no curto prazo. Infelizmente, a taxa de crescimento dos investimentos chineses precisará cair durante muitos anos, antes que a participação da renda familiar no PIB seja suficientemente elevada para que o consumo substitua o investimento como motor do crescimento.
Em outras palavras, à medida que a China se reequilibrar, seria de se esperar uma forte desaceleração do crescimento e rápida elevação das taxas de juros reais, que é exatamente o que estamos vendo. Em vez de entrar em pânico, deveríamos ficar aliviados com o fato de Pequim estar finalmente resolvendo seus problemas mais importantes. Demorou muito tempo, mas a desaceleração neste ano, mesmo em meio à transição política que acontece uma vez em cada década, sugere em que medida Pequim está levando a sério a necessidade de reduzir a orgia de investimentos dos últimos dez anos e reequilibrar a economia.
A redução dos investimentos vai derrubar as commodities, com impacto negativo em países como o Brasil
Muitos analistas temem que o crescimento bem mais lento na China resultará em forte aumento de distúrbios sociais e criará perturbações econômicas em todo o mundo, mas isso não será, necessariamente, verdade, se o ajuste for bem administrado. É importante lembrar que o reequilíbrio chinês exigirá que a renda familiar cresça mais rapidamente que o PIB durante muitos anos, e isso pode ser conseguido através da transferência de riqueza do setor estatal para o setor doméstico.
Isso pode ser politicamente difícil, mas a China não tem outra maneira de impor um crescimento à taxa de expansão da renda domiciliar. Mesmo que o crescimento chinês durante a próxima década diminua para 3%, como espero, mas a renda familiar continue crescendo a 5% ou 6% por causa dessas transferências de riqueza, isso não será, nem de longe, tão socialmente perturbador como muitos acreditam.
E, quanto ao resto do mundo, o que a economia mundial necessita da China não é maior crescimento do PIB, porém mais demanda líquida. O reequilíbrio chinês proporcionará exatamente isso, apesar de que, de início, será difícil baixar a taxa de poupança tão rapidamente quanto a taxa de investimentos. Isso implica que o superávit comercial chinês provavelmente crescerá durante um ano ou dois, antes de começar a cair, e assim contribuirá para o crescimento mundial.
Mas nem todo mundo se beneficiará de um reequilíbrio chinês. À medida que a China reduzir a taxa de investimentos, os preços das commodities minerais deverão cair acentuadamente. Isso é bom para a maioria dos países, mas irá impactar negativamente países produtores como a Austrália e o Brasil, que "engordaram" devido ao excessivo investimento chinês.
É especialmente importante, para os brasileiros, entender por que o reequilíbrio chinês terá um impacto negativo sobre os preços das commodities minerais, independentemente da velocidade da desaceleração do crescimento mundial. O reequilíbrio significa que o crescimento dos investimentos precisa cair de seus níveis surpreendentes superiores de 20% ao ano para perto de zero ou mesmo negativos. Não poderá haver reequilíbrio se isso não acontecer, e Pequim compreende quão urgente o problema se tornou.
Os preços de uma série de metais já caíram drasticamente, refletindo preocupações diante da desaceleração do crescimento chinês, mas ainda há um longo caminho descendente para as cotações, por ao menos três razões. Primeiro, os produtores de commodities em todo o mundo não parecem ter acompanhado o debate na China tanto quanto deveriam. Em minhas discussões com altas autoridades nos setores de commodities no Brasil, Austrália, Peru, Chile e até mesmo na Indonésia, parece-me que muitos produtores não estão cientes de quão dramaticamente o consenso mudou nos últimos dois anos na China. Eles não entenderam a profundidade dos problemas estruturais chineses e como Pequim agora preocupa-se com isso. A preocupação no âmbito da elite chinesa pode ser melhor exemplificado pelo crescimento extraordinário da fuga de capitais da China desde o início de 2010.
Segundo, embora o consenso entre economistas chineses e estrangeiros em torno do crescimento econômico esperado para o país tenha baixado drasticamente, não caiu o suficiente. Apenas dois anos atrás, a maioria dos analistas esperava taxas médias de crescimento de 8% a 10% na China durante a próxima década. Hoje a maioria dos analistas acredita em um crescimento médio de 5% a 7% durante os próximos dez anos, sendo que os economistas chineses tendem a apostar no piso dessa faixa.
Os precedentes históricos sugerem que devemos ser cautelosos. Ao longo dos últimos 100 anos, os países que desfrutaram milagres de crescimento puxados por investimentos sempre tiveram de sofrer ajustes muito mais difíceis do que previam até os mais céticos. Afinal, havia muitos brasileiros, no fim da década de 1970, que se preocupavam com a possibilidade de o milagre de crescimento brasileiro ser insustentável e que iria acabar mal, mas ninguém esperava as taxas de crescimento negativas da década perdida dos anos 1980.
Nos últimos dez anos, as compras chinesas de ferro cresceram 16% ao ano, puxando a produção global
Ao aproximar-se o fim da década de 1980, para dar outro exemplo, alguns céticos ousados proclamavam que o milagre japonês estava morto e previam que as taxas de crescimento japonesas cairiam para 3% ou 4%. Ninguém, sequer os mais céticos, esperavam 20 anos de crescimento abaixo de 1%, mas foi o que aconteceu. E quando a URSS que estava crescendo a taxas miraculosas na década de 1950 e 1960, levando a maioria dos analistas, inclusive o presidente Kennedy, a acreditar que o país estava a caminho de ultrapassar os Estados Unidos em duas ou três décadas, nem mesmo o maior cético anticomunista poderia ter previsto as duas décadas seguintes de estagnação.
Nós tendemos a cometer os mesmos erros ao longo da história, e eu suspeito que, embora o consenso atual sobre o crescimento chinês durante a próxima década tenha caído significativamente nos últimos dois anos, ainda é muito alto. A aritmética do reequilíbrio sugere que as taxas de crescimento serão muito menores do que as esperadas. Mesmo que Pequim seja capaz de manter a renda familiar crescente ao mesmo ritmo durante os dez anos passados, quando as condições chinesa e mundial foram tão boas quanto jamais poderiam ser, um reequilíbrio efetivo ao longo dos próximos dez anos não poderá ocorrer a taxas médias de crescimento do PIB muito acima de 3%.
Esse crescimento menor não será distribuído uniformemente, é claro, e devemos esperar taxas de crescimento relativamente mais altas no início do período (talvez de 5% a 6% durante os próximos dois anos, à medida que o investimento for sendo reduzido aos poucos) e menores taxas de crescimento no fim do período. Mas à medida que isso acontecer, a taxa de crescimento chinesa de longo prazo consensual continuará a diminuir drasticamente, e isso afetará ainda mais os preços das commodities.
A terceira razão pela qual devemos esperar que os preços das commodities caiam muito mais tem a ver com a natureza do processo de reequilíbrio chinês. Durante 30 anos, e especialmente nos últimos dez anos, o crescimento extraordinário do PIB chinês foi impulsionado por taxas ainda mais altas de crescimento do investimento, gerando, para a China, as maiores taxas de investimento e de crescimento dos investimentos na história. O crescimento do consumo não conseguiu acompanhar esse ritmo durante este período.
Mas reequilíbrio significa, por definição, que nos próximos anos, à medida que o crescimento do consumo superar o crescimento do PIB, o investimento terá de crescer mais lentamente do que o PIB. Simples aritmética nos diz que, mesmo que o crescimento do PIB chinês continue a ser elevado, o crescimento do investimento deverá entrar em colapso.
Nas duas últimas décadas, a demanda por minério de ferro cresceu 6%. A demanda chinesa nos últimos dez anos, que cresceu 16% ao ano, foi responsável por quase todo esse crescimento. Excluída a China, a demanda mundial cresceu apenas 2% ao ano. Esse extraordinário crescimento da demanda chinesa deveu-se apenas ao fato de o crescimento do investimento na China ter ultrapassado 20% ao ano, e o crescimento do investimento tende a consumir muitas commodities minerais.
Mas em um mundo novo onde o limite superior para o crescimento do investimento na China não será superior a 2% a 4% durante os próximos dez anos (e, na verdade, acredito que será negativo), o crescimento desproporcional da demanda chinesa por commodities minerais praticamente desaparecerá. É por isso que o reequilíbrio chinês será tão negativo para os preços das commodities minerais.
Então, será que a China iniciou efetivamente seu Grande Reequilíbrio? É muito cedo para dizer, mas está cada vez mais claro que quanto mais Pequim adiar as medidas necessárias, pior será. No entanto, existem razões políticas que tornam difícil, para Pequim, caminhar tão rapidamente quanto gostaria. Entre outras coisas, um reequilíbrio econômico chinês significa que o rápido crescimento da riqueza do setor estatal, que beneficia principalmente a elite política chinesa, deverá diminuir drasticamente. É provável que a elite vá resistir ferozmente, como já demonstraram os recentes escândalos políticos.
Mas, por ora, a China precisará reequilibrar-se ou enfrentar uma crise, e as evidências sugerem que Pequim finalmente começou a forçar o processo de ajuste. Exportadores de commodities podem não gostar dele, e a elite econômica chinesa pode não gostar dele, mas a China não tem escolha. A médio e longo prazos, o grande reequilíbrio chinês será bom para quase todo mundo, mas no curto prazo podemos esperar incertezas políticas na China e dor aguda para os países exportadores de commodities. (Tradução de Sergio Blum)
Michael Pettis, professor de finanças da Universidade de Pequim e membro sênior do Carnegie Endowment.
Este é o terceiro de uma série de artigos sobre a crise econômica atual e seus prováveis desdobramentos no mercado internacional e no Brasil, feitos por renomados economistas a pedido do Valor.
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