Autor(es): Por Luiz Gonzaga Belluzzo |
Valor Econômico - 14/09/2012 |
O
Valor me convida para arriscar prognósticos a
respeito da crise internacional e avançar
projeções sobre o desempenho da economia
brasileira. Não sei se abuso da confiança que me
empresta o jornal, mas vou traduzir livremente o
significado de prognósticos. Sabedor das
precariedades que cercam as previsões em geral e
especialmente as antecipações dos economistas,
farei "Perguntas ao Futuro".
Para
começo de conversa, digo que as questões
suscitadas nas origens da vida moderna ainda não
obtiveram resposta. Nos tempos de prosperidade,
elas hibernam e aí dos que ousam despertá-las. Mas
no fragor das crises elas voltam a assombrar o
mundo dos vivos. Nesses tempos, a incômoda
pergunta não quer calar: em que momento homens e
mulheres - sob o manto da liberdade e de igualdade
- vão desfrutar da abundância e dos confortos que
o capitalismo oferece em seu desatinado
desenvolvimento?
O
capitalismo da grande indústria, da finança e da
construção do espaço global, entre crises e
recuperações, exercitou os poderes de transformar
e dominar a natureza - até mesmo de reinventá-la -
suscitando desejos, ambições e esperanças. A
versão panglossiana desses prodígios nos ensina
que a admirável inclinação para revolucionar as
forças produtivas hão de aproximar homens e
mulheres do momento em que as penas do trabalho
subjugado pelo mando de outrem seriam substituídas
pelas delícias e liberdades do ócio com dignidade.
Maior
concorrência reverteu tendências à maior igualdade
observadas após a Segunda Guerra até os anos 70
Para
muitos, estaria prestes a se realizar a utopia de
trabalhar menos para viver mais. Os avanços da
microeletrônica, da informática, da automação dos
processos industriais já permitem vislumbrar,
dizem os otimistas, a libertação das fadigas que
padecemos em nome de uma ética do trabalho que só
engorda os cabedais dos que nos dominam. Veja o
caro leitor que alguns cidadãos já podem trabalhar
em casa, longe dos constrangimentos da hierarquia
da grande empresa e assim escolher à vontade entre
o tempo livre e as fadigas do labor.
Esses
enredos foram contados nos bons tempos da
globalização e das bolhas financeiras e de
consumo: a economia da inovação e da inteligência
estaria prestes a substituir a economia da
fábrica, dos ruídos atormentadores e dos gases
tóxicos. As transformações tecnológicas e suas
consequências sociais ensejariam a proeza de
realizar o projeto da autonomia do indivíduo,
aquele inscrito nos pórticos da modernidade. A
autonomia do indivíduo significa a sua
autorrealização dentro das regras das liberdades
republicanas e do respeito ao outro.
O
projeto da autonomia do sujeito é uma crítica
permanente e inescapável da submissão aos poderes
- públicos e privados - que o cidadão não
controla. A globalização, o avanço tecnológico e
transformação das formas de trabalho estariam a
realizar esta maravilhosa promessa da modernidade.
Até
mesmo os críticos mais impiedosos reconhecem que a
economia capitalista engendrou formas de
sociabilidade que descortinaram a possibilidade de
libertar a vida humana e suas necessidades das
limitações impostas pela natureza e pela submissão
pessoal. A indústria moderna, essa formidável
máquina de eliminação da escassez, oferece aos
homens e mulheres a "realidade possível" da
satisfação dos carecimentos e da libertação de
todas as opressões pelo outro.
Mas
qual é a realidade que se esconde sob os pretextos
dessa fantasia?
Na
marcha de sua realidade real, o capitalismo
incitou os anseios de realização pessoal, mas
também fez emergir estruturas técnico-econômicas e
formas de dependência que agem sobre o destino dos
protagonistas da vida social como forças naturais
que frequentemente destroem a natureza, fora do
controle da ação humana.
Em
"Eros e Civilização", Marcuse falou da mútua e
estranha fecundação entre liberdade e dominação na
sociedade contemporânea. Para ele, a produção e o
consumo reproduzem e justificam a dominação. Mas
isso não altera o fato de que seus benefícios são
reais: amplia as perspectivas da cultura material,
facilita a obtenção das necessidades da vida,
torna o conforto e o luxo mais baratos, atrai
áreas cada vez mais vastas para a órbita da
indústria. Mas, ao mesmo tempo, o indivíduo paga
com o sacrifício de seu tempo, de sua consciência
e de seus sonhos nunca realizados.
A
concorrência generalizada se impõe aos indivíduos
como uma força externa, irresistível. Por isso é
preciso intensificar o esforço no trabalho na
busca do improvável equilíbrio entre a incessante
multiplicação das necessidades e os meios
necessários para satisfazê-las, buscar novas
emoções, cultivar a angustia porque é impossível
ganhar a paz.
O
avanço tecnológico e os ganhos de produtividade
não impediram a intensificação do ritmo de
trabalho. Essa foi a conclusão de estudos recentes
da Organização Internacional do Trabalho e de
outras instituições que lidam com o assunto. Entre
os que estão empregados, o trabalho se
intensificou. Nos Estados Unidos, por exemplo, as
horas trabalhadas cresceram em todos os setores.
No
outro lado da cerca, estão os que se tornaram
compulsoriamente independentes do trabalho, os
desempregados. O desemprego global cresceu muito
no mundo desenvolvido, ao mesmo tempo em que o
trabalho se intensificou nas regiões para onde se
deslocou a produção manufatureira. As estratégias
de localização da corporação globalizada
introduziram importantes mutações nos padrões
organizacionais: constituição de empresas-rede,
com centralização das funções de decisão e de
inovação e terceirização das operações comerciais,
industriais e de serviços em geral.
As
novas formas financeiras contribuíram para
aumentar o poder das corporações
internacionalizadas sobre grandes massas de
trabalhadores, permitindo a "arbitragem" entre as
regiões e nivelando por baixo a taxa de salários.
As fusões e aquisições acompanharam o deslocamento
das empresas que operam em múltiplos mercados.
Esse movimento não só garantiu um maior controle
dos mercados, mas também ampliou o fosso entre o
desempenho dos sistemas empresariais
"globalizados" e as economias territoriais
submetidas à regras jurídico-politicas do Estados
Nacionais. A abertura dos mercados e o acirramento
da concorrência coexistem com a tendência ao
monopólio e debilitam a força dos sindicatos e dos
trabalhadores "autônomos", fazendo periclitar a
sobrevivência dos direitos sociais e econômicos,
considerados um obstáculo à operação das leis de
concorrência.
Restringem,
portanto, a soberania estatal e impedem que os
cidadãos, no exercício da política democrática,
tenham capacidade de decidir sobre a própria vida.
As reformas realizadas nas últimas décadas
cuidaram de transferir os riscos para os
indivíduos dispersos, ao mesmo tempo em que
buscaram o Estado e sua força coletiva para
enfrentar a concorrência desaçaimada e, nos tempos
de crise, limitar as perdas provocadas pelos
episódios de desvalorização da riqueza. A
intensificação da concorrência entre as empresas
no espaço global não só acelerou o processo de
concentração da riqueza e da renda como submeteu
os cidadãos às angústias da insegurança.
Os
efeitos do acirramento da concorrência entre
empresas e trabalhadores são inequívocos: foram
revertidas as tendências à maior igualdade
observadas no período que vai do final da Segunda
Guerra até meados dos anos 70 - tanto no interior
das classes sociais quanto entre elas. Na era do
capitalismo "turbinado" e financeirizado, os
frutos do crescimento se concentraram nas mãos dos
detentores de carteiras de títulos que representam
direitos à apropriação da renda e da riqueza. Para
os demais, perduram a ameaça do desemprego, a
crescente insegurança e precariedade das novas
ocupações, a exclusão social.
Para
os mais fracos, a "liberação" do esforço e das
penas do trabalho se realiza sob a forma do
desemprego, da crescente insegurança e
precariedade das novas ocupações, da queda dos
salários reais, da exclusão social.
Nos
Estados Unidos, os fatores decisivos para o
comportamento decepcionante dos rendimentos da
maioria da população foram, sem dúvida, a
diminuição do poder dos sindicatos e a redução no
número de sindicalizados, o crescimento do
trabalho em tempo parcial e a título precário e a
destruição dos postos de trabalho mais
qualificados na indústria de transformação, sob o
impacto da concorrência chinesa.
O
lento crescimento da renda das famílias de classe
média foi acompanhado pelo aumento das horas
trabalhadas, por conta da maior participação das
mulheres, das casadas em particular, no mercado de
trabalho. Nas famílias com filhos, as mulheres
acrescentaram, entre 1979 e 2000, 500 horas de
trabalho ao total despendido pelo casal.
Não
resta sequer a ilusão de que a maior desigualdade
foi compensada por uma maior mobilidade das
famílias e dos indivíduos, desde os níveis mais
baixos até os mais elevados da escala de renda e
riqueza. Para surpresa de muitos, o estudo mostra
que a mobilidade social nunca foi tão baixa no
país das oportunidades. Há 40 anos, se alguém
perdesse o emprego, poderia se mobilizar contra o
patronato ou o governo, acusando-o de estar
executando uma política econômica equivocada.
Ainda que se possa fazer isso hoje, provavelmente
o governo vai responder que tudo ocorreu como
consequência inevitável da globalização.
Escrevendo
em 1933, das profundezas da Grande Depressão,
Keynes confessou que, nos momentos de crise grave,
a relação entre a observação crítica e as soluções
pode se esgarçar. Ele dizia: "O capitalismo
internacional e individualista decadente, sob o
qual vivemos desde a Primeira Guerra, não é um
sucesso. Não é inteligente, não é bonito, não é
justo, não é virtuoso - "and it doesn"t deliver
the goods". Em suma, não gostamos dele e já
começamos a menosprezá-lo. Mas, quando imaginamos
o que se poderia colocar no seu lugar, ficamos
extremamente perplexos."
O
individualismo encontra reforço no aparecimento de
milhões de empresários terceirizados
Na
crise atual, assim como nos anos 30 do século
passado, os homens e mulheres do poder deliram
entre as fantasias do eterno retorno do mesmo e as
ilusões do decisionismo incondicionado e descolado
da correlação de forças sociais. Para uns, os da
margem esquerda, se houver vontade política, tudo
é possível. Na outra margem, a da direita,
multiplicam-se as falácias do economicismo, a
capitulação diante da "objetividade" das condições
existentes.
Nos
Estados Unidos dos republicanos e na Europa da
senhora Merkel está em curso uma tentativa de
reestruturação regressiva. David Brooks, colunista
do "The New York Times" e autor do livro "Bobos in
Paradise", escreveu um artigo intitulado "O que
pensam os Republicanos". Os Republicanos, diz
Brooks, pensam que o capitalismo americano está
ameaçado pela segurança excessiva concedida aos
cidadãos pelo Estado do bem-estar, em detrimento
do espírito de iniciativa e da inovação. A
fuzilaria dos ultraconservadores concentra a
pontaria na proteção à velhice e aos doentes. Caso
esse peso morto não seja extirpado, a sociedade
americana será entregue às letargias da
estagnação.
"Nos
Estados Unidos, assim como na Europa, afirmam os
republicanos, o Estado do bem-estar não oferece
segurança nem dinamismo. A rede de segurança é tão
dispendiosa que deixará de existir para as
próximas gerações. Ao mesmo tempo, o atual modelo
transfere recursos dos setores inovadores para
setores estatais já inchados, como saúde e
educação. O modelo de bem-estar social privilegia
a segurança em lugar da inovação. Esse modelo...
se tornou uma máquina a gigantesca que redistribui
dinheiro do futuro para a população mais velha."
Cada
vez mais inclinada à direita, a opinião
republicana deplora o peso excessivo do Estado
munificente e investe contra as tentativas de
disciplinar as forças simultaneamente criadoras e
destrutivas do capitalismo. A visão republicana da
economia e da sociedade advoga abertamente a
concorrência darwinista: a sobrevivência do mais
forte é a palavra de ordem. Tombem os fracos pelo
caminho.
A
ação do Estado, particularmente da sua
prerrogativa fiscal, vem sendo contestada pelo
intenso processo de homogeneização ideológica de
celebração do individualismo que se opõe a
qualquer interferência no processo de
diferenciação da riqueza, da renda e do consumo
efetuado através do mercado capitalista.
Cresce
a resistência à utilização de transferências
fiscais e previdenciárias, aumentando ao mesmo
tempo as restrições à capacidade impositiva e de
endividamento do setor público. Isso porque a
globalização, ao tornar mais livre o espaço de
circulação da riqueza e da renda dos grupos
integrados, desarticulou a velha base tributária
do Estado do bem-estar, erigida sobre a
prevalência dos impostos diretos sobre a renda e a
riqueza.
A
ética da solidariedade é substituída pela ética da
eficiência e, desta forma, os programas de
redistribuição de renda, reparação de
desequilíbrios sociais e assistência a grupos
marginalizados têm encontrado forte resistência na
casamata republicana. Não há dúvida de que este
novo individualismo tem sua base social originária
na grande classe média produzida pela longa
prosperidade e pelos processos mais igualitários
que predominaram na era keynesiana.
Hoje,
o novo individualismo encontra reforço e
sustentação no aparecimento de milhões de
empresários terceirizados e autonomizados, que são
criaturas das mudanças nos métodos de trabalho e
na organização das grandes empresas.
A
ação do Estado é vista como contraproducente pelos
bem-sucedidos e integrados, mas como insuficiente
pelos desmobilizados e desprotegidos. Estas duas
percepções convergem na direção da
"deslegitimação" do poder administrativo e na
desvalorização da política. Aparentemente estamos
numa situação histórica em que a "grande
transformação" ocorre no sentido contrário ao
previsto por Karl Polanyi: a economia trata de se
libertar dos grilhões da sociedade.
A
resposta esperançosa à Pergunta ao Futuro depende
crucialmente da capacidade de mobilização
democrática e radical dos Deserdados, os
perdedores na liça da concorrência global.
Desgraçadamente, no momento em que escrevo este
artigo, os espaços de informação e de formação da
consciência política e coletiva são ocupados por
aparatos comprometidos com a força dos mais fortes
e controlados pela hegemonia das banalidades.
Desconfio que o mundo não padeça apenas
sofrimentos de uma crise periódica do capitalismo,
mas, sim, as dores de um desarranjo nas
engrenagens que sustentam a vida civilizada, sob o
olhar perplexo e impotente das vítimas.
Luiz
Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política
Econômica do Ministério da Fazenda, é professor
titular do Instituto de Economia da Unicamp. Em
2001, foi incluído entre os 100 maiores
economistas heterodoxos do século XX no
Biographical Dictionary of Dissenting Economists.
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sábado, 15 de setembro de 2012
Desordem na engrenagem da civilização
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