quinta-feira, 10 de maio de 2012

Risco geopolítico




Por Carlos Lessa

Poucas coisas, para mim, são mais satisfatórias do que ler um artigo
que gostaria de haver escrito. Reinaldo Gonçalves publicou no número
31 da Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política um artigo
que alcunha de "nacional-desenvolvimentismo às avessas", a trajetória
econômica do Brasil no novo milênio. Sintetiza nacional-desenvolvimentismo como um projeto "de desenvolvimento
econômico, assentado na industrialização e na soberania dos países
latino-americanos". Desdobra o desempenho brasileiro nas últimas
décadas como um desempenho no qual a economia, as estruturas de
produção, o comércio exterior e a propriedade do ativo produtivo
caminharam no sentindo contrário ao projeto que animou o Brasil de
1930 a 1980.

Gonçalves, de forma rigorosa, mostra que houve redução na participação
da indústria de transformação no Produto Interno Bruto (PIB). O Brasil
perdeu participação no panorama industrial mundial. Mostra, de forma
inequívoca, que o que cresce no país é o valor adicionado da mineração
e da agropecuária. A política econômica foi orientada para a
liberalização comercial, e o coeficiente de importações em relação ao
consumo aparente cresceu de forma sistemática entre 2002 e 2010.

A participação dos manufaturados caiu no valor das exportações, e
houve a queda assustadora da dos produtos altamente intensivos em
tecnologia entre 2002 e 2010. Todas as indicações mostram aumento de
dependência tecnológica. A diferença entre o valor de importações e
bens intensivos em tecnologia, exportações brasileiras destes bens,
evoluiu de US$ 19,3 bilhões em 2002 para US$ 85 bilhões em 2010.

São precárias nossas salvaguardas ante uma crise mundial que
inexoravelmente produzirá mudanças

Houve uma dramática perda de competitividade internacional; aumentou a
vulnerabilidade externa, houve concentração de capital e explosão da
lucratividade dos bancos. A rentabilidade "lucro/patrimônio líquido"
dos 50 maiores bancos no Brasil é de 17,5% ao ano entre 2003/10.

Enquanto isso, a rentabilidade das 500 maiores empresas industriais
foi de 11% ao ano. Brasil e Turquia são os dois países que têm os mais
elevados custos de dívida pública nas 24 principais economias do
mundo. Nestes países, custo médio da dívida é de 4%, enquanto no
Brasil é de 8,6%. A relação entre pagamento de juros de dívida pública
e do PIB no Brasil apenas é superada pela Grécia, sendo que a média
dos 24 países é 2%, enquanto que a brasileira é 51%. Quem quiser
conhecer em detalhe, leia este artigo.

São corretas as advertências que os dirigentes da política econômica
estão fazendo aos bancos privados, porém claramente insuficientes. O
ministro Guido Mantega advertiu no Fundo Monetário Internacional (FMI)
que "o Brasil fará de tudo para impedir" o ingresso de capital de
curto prazo especulativo. Porém, anunciou que não descarta o controle
de capitais voláteis. Isso se faz sem advertência. É correto baixar
juros; aumentar a competição dos bancos públicos; barrar capitais do
exterior que se nutrem no nosso juro excessivo; tocar para frente o
Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

Porém, tudo isso chega a conta-gotas e de forma tímida. Em um cenário
em que a crise mundial se desdobra na Europa, há redução do
crescimento da China (o FMI advertiu que a alta das commodities será
interrompida), não se deve cutucar a onça com vara curta. São
precárias as salvaguardas brasileiras ante uma crise mundial que
inexoravelmente produzirá mudança de sinal no balanço de pagamentos
brasileiro. Há um discurso eufórico que desconhece vulnerabilidades.
Nas palavras de Gonçalves: "É visível a crescente vulnerabilidade
externa estrutural brasileira em função do aumento do passivo externo
financeiro".

A Argentina expropriou a YPF. Luiz Carlos Bresser-Pereira publicou na
"Folha de São Paulo", no dia 23, um brilhante artigo: "A Argentina tem
razão". A mídia internacional chegou a falar "de um tribunal
internacional". 62% dos argentinos apoiam a medida. O FMI declarou que
a matéria é de soberania. Não mergulharei em detalhes sobre a
escandalosa privatização da YPF feita pelo neoliberal Carlos Menem. É
incrível nenhum tribunal internacional ter se pronunciado sobre a
auditoria externa que "escandalosamente" subestimou (para baratear) o
patrimônio estatal argentino. Bresser-Pereira mostra a competência do
governo argentino nessa medida.

Diz: "Não faz sentido deixar sob o controle estrangeiro um setor
estratégico para o desenvolvimento do país". Se a recuperação pela
Argentina de um ativo estratégico gera tal reação, nós brasileiros
deveríamos, de forma inequívoca, nos aliar ao país irmão. Argentina
solicitou à Maria das Graças Foster, presidente da Petrobras, que o
Brasil aumentasse sua participação na produção de petróleo na
Argentina de 8% para 15% (a principal razão da expropriação foi a
medíocre atuação da Repsol em produção de petróleo na Argentina). Além
das óbvias implicações no balanço de pagamentos, a Argentina, um país
de clima temperado, necessita manter suas residências aquecidas no
inverno, lhe é vital aumentar sua disponibilidade energética.
Desconheço detalhes, mas pelo menos uma empresa chinesa foi convocada
pela Argentina. Nesta questão, o Brasil não deveria vacilar em apoiar
o país irmão.

A política de outorga de lotes nas reservas brasileiras, e
principalmente concessões no pré-sal, é para o Brasil um erro
estratégico. Sei que durante o governo Lula e no atual o Brasil
conseguiu colocar um brasileiro no 6º (ou 8º) lugar na lista de
maiores fortunas mundiais. O interessante é que esse salto aconteceu
sem a produção de nada, apenas metamorfoses patrimoniais consagradas
pela valorização de ações do empreendedor vendidas a capitais
internacionais. Faz um estranho contraponto com a correta elevação do
poder de compra do salário mínimo real colocar uma fortuna brasileira
baseada em valorização de lotes de petróleo no pódio dos grandes
patrimônios individuais. Façamos votos para que no futuro não tenhamos
que enfrentar a maldição de país primário-exportador de petróleo.
Ainda é tempo para não expor a soberania de um país que, no Atlântico
Sul, pode vir a ser "dono" da terceira maior reserva mundial de
petróleo. Há enorme risco geopolítico nessa matéria.

Carlos Francisco Theodoro Machado Ribeiro de Lessa é professor emérito
de economia brasileira e ex-reitor da UFRJ. Foi presidente do Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social - BNDES; escreve
mensalmente às quartas-feiras. carlos-lessa@oi.com.br

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