Flavio Aguiar, interinamente da Península de Yucatán, México. Extraído da Carta Capital.

“Por que você me picou”, perguntou o sapo ao
escorpião que ele conduzia atravessando a lagoa a nado, “agora nós dois
vamos morrer”.
“Sei lá”, respondeu o escorpião, “é da minha natureza”.
Conto brasileiro.
O processo de impeachment à presidenta Dilma Rousseff é um verdadeiro carnaval das traições.
Parece traduzir aquele ditado que diz que “o mais inocente matou a mãe para ir no baile dos órfãos”.
É difícil puxar o fio da meada, tantos são eles.
Comecemos então pelo mais óbvio.
O
vice-presidente Michel Temer é o novo candidato a Café Filho na
história brasileira. Café era vice de Getúlio, tido como mais à esquerda
do este, o que não é o caso daquele lá em relação a Dilma Rousseff. Mas
como Getúlio se recusou a renunciar, Café Filho traiu seu compromisso e
declarou que seu dever (ou propósito) era ocupar a presidência, custe o
que custasse. Ele só não imaginava que isto custaria a vida de Getúlio,
que resistiu à bala, uma única, mas suficiente para retardar o golpe
por dez anos.
O ex-presidente Lula disse
que Sergio Moro foi picado pela mosca azul. Temer deve ter sido picado
por um vampiro, daqueles que morrem num filme para renascer no outro.
Como a lagarta botânica, ele imagina que vai entrar no casulo do
impeachment e sair dele como a crisálida do salvador da pátria. Vai cair
no mata-burro das traições que está consagrando e inaugurando. Vai
entrar e sair da história como o sapo que queria ir à festa no céu mas
desabou das alturas.
Se o PMDB
dsembarcasse do governo às vésperas da eleição regular de 2018, dava
para entender. Desembarcar agora, sem motivo que não seja a avidez de
ocupar mais espaço no poder, é uma traição de grande monta, não só à
presidenta e seu partido, mas também a seu eleitorado. Ou alguém acha
que a maior parte do eleitorado peemedebista é do golpe? Só se quiserem
se tornar eleitores do Bolsonaro.
O PSDB
também está traindo seu eleitorado. Não acredito que a maioria dos
eleitores do PSDB queira o golpe fajuto deste impeachment. O partido vai
ficar maculado para sempre. Será levado por um playboy irresponsável
(Aécio), um governador merendeiro (Alckmim) e um ex-presidente senil
(FHC), todos traindo o programa do partido e suas próprias histórias
(bem, no caso de Aécio, não dá pra garantir).
No
Congresso vai haver um sem fim de traições. Como já alertou José
Roberto de Toledo (no Estadão), que não pode ser acusado de petismo nem
de bolivarianismo, quando uma das partes, na votação do impeachment,
atingir sua quota (171 pró-governo, 342 pró-golpe), as traições a todos
os propósitos vão se multiplicar para aderir ao lado vencedor, sejam lá
quais forem os compromissos antes assumidos. Afinal, este é um dos
Congressos mais vergonhosos da nossa história, e dá arrepios à mídia
interncional ver Dilma processada por este bando de acusados de tudo o
que há de pior na política brasileira.
No
Judiciário e na PF, nem se fala. Togas são traídas todo o tempo, pela
avidez de aparecer nas manchetes e de ser “aquele que prendeu o Lula” ou
“derrubou a Dilma”. Gilmar Mendes organiza um seminário sem pé nem
cabeça em Lisboa, em datas coincidentes com aquelas em que os golpistas
comemoram 64, mas é abandonado pelos políticos conservadores com quem
queria consagrar o golpismo brasileiro. Deu chabu, como se diz em festa
junina. O foguetório não explodiu, abatumou. Ao invés do aplauso nas
galerias, colheu as vaias na rua.
Mas em todo este rosário de traições, há um caso de fidelidade que merece reconhecimento.
Tempos
atrás, motivadas talvez por um excesso de confiança em que venceriam as
abantesmas petistas através de meios “normais”, as chefes-de-fila da
mídia corporativa e golpista deram-se ao luxo de ensaiar tímidas
auto-críticas em relação a seu apoio pró-ativo ao golpe de 64. Uma de
claro que foi um erro, outra quis transformar a ditadura em
“ditabranda”, outro ainda ressalta os acertos de 64 contra os erros e
excessos de 68… Globo, Folha de S. Paulo e Estadão (Veja e as revistas
semanais são apenas a artilharia leve do fim de semana) foram tomados
por um verdadeiro surto psicótico-legalista que os levou àquele
descaminho. Agora, porém, retornaram à sua normalidade, o golpismo para
que nasceram e cultivaram.
Ainda bem. Ainda se pode confiar em alguém neste mundo.
Como
o escorpião do conto, continuam cumprindo seu destino, sacrificando, em
nome de sua natureza oligárquica, a democracia de que dependem.
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