José
Álvaro de Lima Cardoso*
Um dos
aspectos assustadores do momento político do país são as fartas demonstrações
de desconhecimento de aspectos elementares de história do Brasil por parte da
população em geral, especialmente da juventude. Mesmo quando se trata de
acontecimentos políticos relativamente recentes. Talvez seja este um dos
problemas mais graves e uma das tarefas mais urgentes que tenhamos que
enfrentar no Brasil nas próximas décadas. Afinal, povo sem história é povo sem
destino relevante, e presa fácil de ambições imperialistas.
Como no período que antecedeu
1964, estamos atravessando um momento histórico decisivo. Alguns fatos do
momento remetem ao que aconteceu há mais de meio século: reclamação generalizada contra a “incompetência do governo” na
gestão da economia; indignação contra a corrupção (potencializada pela
espetacularização da Operação Lava Jato); negação da política enquanto
instrumento de intermediação da relação entre povo e Estado; além disso,
manifestantes reivindicam abertamente uma intervenção militar como solução para
os problemas do país. Claro que o momento atual guarda diferenças fundamentais
com aquele período, a começar do fato de que o golpe de 64 foi articulado desde
o seu início pelas Forças Armadas, uma diferença fundamental em relação
à situação atual, na qual os militares estão ao lado da legalidade, conforme
reiteradas declarações de seu alto comando.
O
conhecimento da história é fundamental para um povo, evitando que se volte a cometer
os mesmos erros do passado. É muito preocupante
(ainda que não surpreendente, dada a evolução dos acontecimentos desde 2013),
que, passados 31
anos do fim da ditadura (período mais longo de democracia da história do país) presenciar
grupos pregando que seria melhor voltar ao período da ditadura militar, com o
argumento de que seria melhor do que viver nessa “bagunça”, onde todos os
políticos são corruptos, ladrões, etc. É assustador
verificar que importantes setores da classe média e alta, simpatizem com ideias
semelhantes às que prepararam o caldeirão social do fascismo. Uma parte da
classe média é abertamente antirrepublicana e vem pregando sem o menor pudor, o
rancor, o ódio e a ferocidade nas redes sociais e nas ruas, com posturas claramente
fascistas.
Uma
diferença essencial deste momento, em relação aos anos que precederam o golpe
de 64, é que naquela ocasião havia propostas de reformas profundas no país. Por
volta de 1962 tinha se encerrado um ciclo de crescimento, que foi da II Guerra
Mundial até o início dos anos 60, caracterizado por um vigoroso incremento do
PIB e que ensejou ao Brasil ingressar no caminho da industrialização moderna.
Este período teve as seguintes
características: a) ampliação do mercado interno; b) políticas
protecionistas em relação à indústria nacional e apoio à substituição de
importações; c) fortes investimentos estatais na infraestrutura de energia,
transportes e na produção de insumos básicos; d) estímulos à entrada maciça de
capital estrangeiro no setor de bens manufaturados produzidos para o mercado
interno; e) facilidades fiscais, cambiais e creditícias concedidas ao capital
privado como incentivo à produção industrial; f) e crescimento da oferta de
alimentos e insumos agrícolas.
Para contra arrestar o esgotamento do
referido ciclo de crescimento, dentre outras medidas, no
final de 1962, o eminente economista Celso Furtado, então ministro
extraordinário para assuntos de Desenvolvimento Econômico, apresentou ao país o
Plano Trienal. O Plano, dentre outros assuntos fundamentais, tocava em dois
itens sabidamente críticos da agenda nacional: reforma agrária e medidas de
controle do capital estrangeiro no país.
A ideia de reforma agrária visava combater o latifúndio, expandir um
mercado interno para a indústria, ao mesmo tempo que estendia a sindicalização
dos trabalhadores rurais. As medidas de controle do capital estrangeiro – como,
por exemplo, a limitação da remessa de lucros -, favoreceriam as indústrias
nacionais e o desenvolvimento autônomo do país. Não precisa lembrar que a
agenda do Plano Trienal é atualíssima, está na ordem do dia do debate nacional.
Afinal vivemos um aguçamento da desnacionalização da economia nos últimos anos
e a reforma agrária ainda precisa ser realizada.
Processos golpistas como o
que estamos assistindo no Brasil (e em vários países da América do Sul), certamente
não “caem do céu”. Por detrás do aparente caos, operam estratégias
cuidadosamente elaboradas e uma questão de fundo essencial,
que é uma agenda de resistência histórica que vem no Brasil desde muitos anos. Essa
agenda foi derrotada várias vezes na história do país: há algumas décadas, por
exemplo, em 1954 (quando renasceu com o suicídio de Vargas, adiando o golpe),
em 1961; e duramente derrotada com o golpe de 1964. Essa agenda é, basicamente, a luta por um projeto nacional de
desenvolvimento, com distribuição de renda e com soberania em relação às
potências imperialistas. Assim como
hoje, também na época do golpe de 1964, tinha uma direita que lutava para
sintonizar o país à modernidade de um capitalismo baseado na subordinação
irrestrita da economia, e na rendição incondicional da sociedade à dominação do
capital financeiro internacional. O discurso é por demais conhecido na história:
“tudo o que não é mercado é populismo; tudo o que não é mercado é corrupção;
tudo o que não é mercado é inflacionário, é ineficiência, atraso e desperdício”.
A
movimentação pelo golpe hoje está ocorrendo por muito menos do que em 1964. O governo
Dilma vem implementando políticas que estão longe dos anseios populares em
temas como o Pré-Sal, Lei Anti-Terrorismo, e, especialmente na política
econômica. Apesar da saída do ministro Joaquim Levy, o seu sucessor prossegue
com o ajuste fiscal, e pretende encaminhar uma reforma da previdência social e outras
medidas, que apontam na direção de resolver o problema fiscal penalizando os
trabalhadores.
Para
entender a crise política e econômica do Brasil é fundamental também contextualizá-la
no quadro da crise mundial. Com a redução da taxa global de crescimento da
economia aumentaram as contradições e a disputa entre as principais potências capitalistas.
Países que se prepararam para essa crise (com o esgotamento do boom de commodities,
por exemplo) estão sofrendo menos. Com o cobertor mais curto na economia
mundial há uma pressão para descarregar a crise nas costas da classe
trabalhadora. Neste contexto, ganhos reais de salários, aumentos reais do
salário mínimo e políticas sociais empreendidas através do Estado (que
reduziram a taxa de pobreza extrema em 63% entre 2004 e 2014) mesmo
que moderadas, não são toleradas.
Segundo publicação recente do Departamento de Assessoria Parlamentar (Diap),
existem cerca de cinquenta projetos de lei anti-trabalhadores e anti-populares,
em andamento no Congresso Nacional que, se aprovados em sua maioria, irão
desorganizar todo o sistema de direitos democráticos conquistados na
Constituição de 1988, fruto de décadas de lutas dos movimentos sociais. Entre
eles estão: terceirização total das relações de trabalho, a prevalência do
negociado sobre o legislado, regulamentação e retirada do direito de greve dos servidores
públicos, a privatização das empresas públicas, a independência do Banco
Central. A lista é muito mais extensa. Por isso é fundamental enfraquecer e
desacreditar a ação dos sindicatos e dos movimentos sociais, escudo natural dos
ataques aos direitos.
Além da necessidade de aumentar a
exploração dos trabalhadores, um fator explicativo central na motivação pelo
golpe contra a democracia se refere à fatores geopolíticos. A aproximação do
Brasil com os Brics, a Lei de Partilha para exploração do pré-sal e o que ela representa
do ponto de vista da soberania nacional, a aproximação com os países da América
Latina, tudo isso entrou em rota de colisão com interesses do Império.
*Economista e
supervisor técnico do Dieese em Santa Catarina.
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