Clemente
Ganz Lúcio [1]
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Senhora CLT!
Imersa
em pensamentos, não atentara para o chamado. Era estanho que, naquele ano, em
que completava 70 anos, declinassem tantas
referências, especialmente ao seu legado.
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Senhora CLT!
Olhou,
levantou-se e, como fizera outras 69 vezes, acompanhou o atendente que a
conduziria à sala que bem conhecia. Encontraria velhos amigos, que cuidavam da
saúde dela. A chefe geral era muito mais nova que todos. Nascera em 1988, em um
parto difícil. Maternidade e paternidade atribuídas a muitos. Apesar de jovem,
já sustentava o mais longo período democrático do país, o que revelava sua
força e beleza. Sabia que jovem a admirava e queria vê-la forte e com muita
saúde. Os demais já eram velhos conhecidos. Sindicatos, federações,
confederações, centrais sindicais, ministérios, justiça, associações, ordens,
conselhos, entre outros.
Estava mais ansiosa.
Por quê? Fazia regularmente os exames e ouvia diferentes diagnósticos. Todos
valorizavam o legado dela, falavam do papel que teve no passado e os desafios que
teria no futuro, preconizavam condutas, valores e ideários. Sempre que entrava
naquela sala ampla, admirava a beleza da chefe geral, capaz de reunir nos
frágeis braços o interesse geral de todos. Conhecia os interesses específicos de
cada um e sabia que a soma destes não resultavam no interesse geral. Sempre se
perguntava: Como consegue?
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Como vai? – perguntaram a ela.
Sabia
que teria uma recomendação para qualquer resposta, por isso, simplesmente
sorriu. Trouxera uma pilha de exames, mas sabia que todos tinham cópias. Um de
cada vez, os vários especialistas anunciaram o diagnóstico de cada órgão e
função. Nada ficava sem crítica.
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Obrigada pela atenção e pelos cuidados e recomendações. Quero falar o que se
passa aqui - disse indicando o coração e o peito. Sentia-se diferente, queria
falar!
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Nasci há 70 anos, também de parto difícil. Levei um tempo para me situar. A
história é longa. Mas, o que me angustia hoje é o nosso futuro e o meu papel
nisso tudo.
Todos
se mexiam nas cadeiras, não gostavam de falar sobre o futuro. A chefe geral redobrou
a atenção. Sorria.
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Conheço a vida dos brasileiros e de outros que aqui vivem e trabalham. País rico
e dramaticamente desigual, onde milhões de trabalhadores vivem sem bem-estar
social e sem qualidade de vida. Curioso, trabalham e vivem mal! Ah! Há aqueles
que vivem mal porque não conseguem trabalho. Outros são tão pobres que...
Calou-se.
Não entendia como isso podia ser possível. Depois, continuou.
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Fui criada para elevar o padrão de humanidade para homens e mulheres no mundo
do trabalho. Cada pessoa é uma humanidade, disse Mia Couto em um conto.
Trouxe-me alívio porque, a cada nova pessoa que protejo, é a humanidade que
promovo. Essa humanidade que deveria ser óbvia, produzida e promovida a cada
encontro, em cada relação.
Todos
se olhavam preocupados. Pensavam: afinal, onde vai parar aquela conversa?
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Tenho a tarefa de proteger e promover a qualidade de vida no mundo do trabalho.
Sei que, apesar das diferenças, todos reconhecem o nosso esforço. Alguns me consideram
complicada, cheia de detalhes ou querendo tudo resolver. Fizeram-me assim! Perguntam-me
se posso mudar. Respondo: devo mudar! Afinal, são tantas as mudanças no mundo
do trabalho que somente isso já exigiria a minha permanente adequação,
aperfeiçoando minha capacidade de promover boas condições de trabalho. Mas, no
fundo, não é isso que me preocupa. Quero ajudar o desenvolvimento do meu país
para que todos tenham bem-estar e qualidade de vida. Há algo de errado nisso?
Havia
certo desconforto, mas também era possível detectar muita curiosidade entre os
presentes. Estando ciente disso, a Senhora CLT continuou.
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Diferentemente dos diagnósticos do passado, continuamos surpresos com os últimos
resultados. É inacreditável a mudança do quadro de proteção, com os milhões de
empregos formais criados, não? Mas, ainda temos milhões de trabalhadores
assalariados sem proteção. E os milhões que não são assalariados e que vivem
sem a minha proteção? E mesmo entre os assalariados, há muita precarização. Não
seria possível e desejável que todos tivessem os mesmos direitos? Espanta-me
que me responsabilizem pela minha ausência. O que de fato querem? Uma eterna
mãe? Cresçam! Sei, sei... Há enormes dificuldades para construir a proteção que
demandam a partir das relações diretas, não? Por que não apostam efetivamente em
ampliar as bases da proteção por meio da negociação? Porque falta o sujeito que
promove capacidade, força. Pois aqui há uma mudança que deveria ser promovida:
apostar e investir na negociação, em todos os níveis, desde o local de trabalho
até as grandes negociações. Sinto que nisso sou meio culpada! Tenho
dificuldades para me libertar. Penso muito sobre como apostar na democracia
como base estruturante de um sistema de relações de trabalho construído, nas
relações assalariadas, a partir da efetiva organização sindical desde o chão da
empresa. Olho para minhas coirmãs no mundo e vejo que países fortes contam com
sindicatos fortes, organizados desde o local de trabalho. Por que temos tanto
medo de apostar nisso? Temos medo de ser grandes e fortes? Os conflitos,
inerentes às relações de trabalho, poderiam ser tratados e enfrentados onde
ocorrem. Mas, para isso, é preciso apostar na formação dos sujeitos de
representação coletiva, que reequilibre as desigualdades presentes nas relações
de trabalho. Sim, estou falando da representação sindical no local de trabalho.
Neste
momento, a curiosidade entre os presentes aumentou e a Senhora CLT, ao perceber
o interesse que sua fala suscitava, continuou animada.
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Perguntam-me: e a nossa cultura? Ao que respondo: falta confiança! Para que
arranjar “sarna para se coçar”? São frágeis os argumentos ou será que encobrem
verdadeiros motivos? Creio que é necessário que a negociação promova o pleno cumprimento
do direito à proteção em cada contexto e situação concreta. A flexibilidade não
é com o objeto do direito, mas como ele efetivamente se materializa em cada
contexto. As diferentes situações não justificam a desigualdade na observância
da proteção, mas as desigualdades econômicas das empresas devem ser
consideradas para que se promova a efetiva proteção. Ou não? As questões são
muitas. Mas, enfim, não difundiremos a prática da proteção se carecemos dos
sujeitos coletivos capazes de fazer emergir, sempre e em cada lugar, uma cultura
da melhor proteção, fruto da adaptação ao contexto, somente possível pela prática
viva da sua construção na relação de regulação que a negociação permite.
Percebendo
que os ouvintes permaneciam interessados e ficaram receptivos aos argumentos
que usava, concluiu:
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O caminho não é longo. É permanente! Sem sujeito, não há história, não há
sociedade. É no encontro que descortinamos possibilidades. A forma inteligente
de descoberta, nas relações de trabalho, chama-se negociação. Seria outra, mais
forte e leve, se apostássemos verdadeiramente nesse fundamento. A minha
verdadeira força não está na obrigatoriedade. Apesar de saber que ela é necessária,
porque a vida é dura. Serei forte mesmo quando aquilo a que me proponho for
resultado de relações efetivamente construídas com essa intenção.
Todos
olhavam os exames, que pouco diziam sobre o futuro. Aquela conversa exigia a
construção de outro paradigma de relação. Eles também precisariam mudar.
[1] Sociólogo, diretor técnico do DIEESE, membro do CDES
– Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social e do Conselho de Administração
do CGEE – Centro de Gestão e Estudos Estratégicos.
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