terça-feira, 13 de agosto de 2013

Tempus fugit

Ao completar 80 anos, o neurologista e escritor Oliver Sacks disse: “Oitenta anos! Mal consigo acreditar. Muitas vezes, sinto que a vida está apenas começando, mas, então, me dou conta de que ela quase acabou”.
Data: 13/08/2013
É como você notou:/O tempo não passa./Já passou. (Millôr Fernandes, o irritante guru do Méier)

Ao completar 80 anos, o neurologista e escritor Oliver Sacks disse: “Oitenta anos! Mal consigo acreditar. Muitas vezes, sinto que a vida está apenas começando, mas, então, me dou conta de que ela quase acabou”. Não existe relógio, ampulheta ou observação astronômica que dê conta deste tipo de sensação. Todos são impotentes para detectar o fosso entre cronologia e fome de viver. Nosso cérebro multiplica os olhares sobre o tempo, cada um deles arco-íris de possibilidades ilimitadas. No humano desejo de controlar o incontrolável, tentamos, em vão, enquadrar e congelar os fluxos temporais. Vale botox e todo tipo de mistificação “espiritual”. Razão tinha o Mário Lago: “Eu fiz um acordo com o tempo. Nem ele me persegue, nem eu fujo dele. Qualquer dia, a gente se encontra e, dessa forma, vou vivendo intensamente cada momento”. E completou: “O tempo não comprou passagem de volta. Tenho lembranças e não saudades”.

Como se mede o tempo de um poeta, ou, mais dramaticamente, de uma jovem suicida ? Ana Cristina Cesar era um híbrido dessas categorias. Viveu apenas 31 anos, até o dia em que se jogou do oitavo andar do edifício em que seus pais moravam, em Copacabana. Será possível imaginar a intensidade com que ela viveu, a ponto de julgar que o futuro, nuvem cinzenta do tempo, não valia a pena ? Num de seus últimos escritos, alertou: “Te deixo meus textos póstumos. Só peço isto: não permitas que digam que são produtos de uma mente doentia ! Posso tolerar tudo, menos esse obscurantismo biografílico”. Voltando ao guru do Méier: “Certos dias têm cem anos”.

O Menino pensou no assunto quando compareceu a um enterro. Convidado a falar sobre o morto, teve dificuldades. Como dialogar com a dor dos que ali estavam, com a ausência definitva ? Mais ainda. Ateu, sabia que o tempo do morto tinha acabado, era jogo jogado. Estava nisso, quando se lembrou da música que estava ouvindo no caminho para o cemitério. Foi a senha. Existe, sim, imortalidade. É aquela guiada pela memória, que derruba os muros do tempo e traz à vida, de um jeito fugidio, uma lembrança, uma música, um gesto, uma palavra, um sorriso. Mozart e Bach existirão enquanto existir alguém que ouça suas músicas. O grande escritor judeu ucraniano Salomão Rabinovitch, mais conhecido como Scholem Aleichem, deixou um testamento intelectual. Nele, sugeria que os que admiravam sua obra o recordassem não com orações, mas lendo seus contos, de preferência os mais engraçados. Até hoje, quase um século depois de sua morte, existem grupos que se reúnem para lembrar o seu Salomão. Drible no tempo.

O tempo dos insatisfeitos. Já repararam como “demora” mais a passar o tempo quando estamos fazendo alguma coisa por obrigação protocolar ou profissional ? É só uma impressão do nosso cérebro farsante, mas corta como faca afiada. Uma velha piada: um conferencista só é ruim mesmo quando a plateia, não satisfeita em olhar o relógio a todo momento, começa a bater na tampa, como se o relógio estivesse quebrado. Não faz muito, uma pesquisa feita nos estados mais ricos do Brasil indicou que praticamente um em cada três trabalhadores estava infeliz no trabalho. Quase 70% sentiam total falta de perspectiva de crescimento profissional. Tarefas repetitivas, pouco uso de criatividade, subutilização de potenciais. Soa familiar ? Viajo para o tempo dos socialistas utópicos e de Marx. Todos imaginaram sociedades onde o melhor da capacidade humana seria utilizada em seus limites. Os falanstérios de Fourier foram concebidos como forma de cooperação que permitisse a todos descobrir e usar o melhor de seus talentos, sem qualquer discriminação de gênero (uma revolução para o pensamento da época). Marx projetou um modo de produção em que os homens seriam muitos personagens ao longo da vida. Nada de pintor, cantor ou escultor apenas nas horas vagas, descanso na exploração de mais-valia. Parafraseando Marx: a cada um de acordo com o prazer, de cada um de acordo com o plano do tempo.

As frações do tempo. O IBGE informa. O brasileiro usa, em média, apenas 6 minutos por dia em leitura (o computador não está incluído nessa medida). Na frente da televisão, fica duas horas e trinta e cinco minutos. Parece uma tragédia adolescente. É como se o tempo não fosse um bem precioso, mas objeto infinito e descartável. O Menino lembra de um episódio da memorável série The Twilight Zone (Além da Imaginação, na velha TV Rio), do pioneiro Rod Serling. Um bancário adorava ler, mas, tomado pelas tarefas de rotina, mal conseguia folhear algumas páginas por dia. Além disso, era ridicularizado pela mulher, que só pensava em produtividade. No horário de almoço, abria o cofre forte, trancava-se e, em silêncio, dedicava-se ao que mais gostava. Um dia, fechado no cofre, ouve um fortíssimo estampido. Ao abrir a porta, depara-se com uma hecatombe. Uma bomba atômica havia explodido, destruído prédios e incinerado pessoas. Ele perambula pelos destroços, preocupado no início, mas, de repente, seus olhos brilham. Estava na frente da biblioteca pública e, maravilha !, os livros estavam intactos. Poderia passar o resto de seus dias lendo. Seria, doravante, um alfabetobeso. Quando tudo parecia caminhar para um happy end, ele escorrega e quebra os óculos. Estava condenado a tocar os objetos do desejo, sem poder saboreá-los. O tempo morria, como os neurônios vaporizados dos espectadores de reality shows.

Estamos no século vinte e um, de acordo com o calendário gregoriano. Passados mais de 2 mil anos, os habitantes deste planeta ainda não conseguiram implantar, em nível mundial, um sistema de nascimentos dignos. Quantos bebês ainda morrem ao nascer ? Quantas mães morrem ao dar a luz ? Dar a luz com dignidade, ou seja, com segurança sanitária e sem sofrimento, continua sendo um privilégio reservado para menos de 20% dos terráqueos. Quem sabe é por isso que mais de 80 mil pessoas, 3.018 brasileiros, já se inscreveram no programa Mars One, que escolherá 24 voluntários para colonizar ... Marte ! Será uma viagem só de ida, para viver num ambiente hostil, com baixa gravidade e temperaturas que podem atingir – 135º C. Estes colonizadores, se conseguirem desembarcar no que os mastodônticos chamavam de Planeta Vermelho, terão um bocado de tempo para se adaptarem e, quem sabe, como bem disse o Ruy Castro, esquecerem a obsessão de mudar o mundo a cada 15 minutos. De qualquer forma, essa festa, e todas as festas, tem prazo de validade. Os cientistas calculam que, em cerca de 5 bilhões de anos, o Sol, que não passa de uma estrelinha de quinta grandeza, vai explodir. Uma vez desaparecido, não há chance de sobrevivência para nenhuma forma de vida terrestre. O tempo estará extinto e tudo, então, será silêncio.
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