
Da
janela do gabinete do secretário dos Transportes de São Paulo, Jilmar
Tatto, tem-se uma das mais belas vistas da cidade. A parede envidraçada
que envolve toda uma esquina, no 14º andar de
um edifício quase colado ao Teatro Municipal, oferece a rara
oportunidade de se apreciar detalhes das esculturas apoiadas no telhado
da casa de espetáculos. Do mesmo ponto, aparece outro marco histórico, o
Viaduto do Chá, ao lado do prédio da Prefeitura. Mas não é a paisagem
cartão postal que ocupa a atenção do secretário. Com o olhar fixo em
duas faixas duplas, na rua, ele prenuncia: está na hora de proibir a
circulação de carros no Viaduto do Chá.
"Eu vejo
que no futuro a pessoa que anda de carro na cidade será vista como um
fumante", diz Tatto. Protagonista no modelo de transporte do país nos
últimos 60 anos, o automóvel foi repentinamente renegado não só nos
planos de gestão de cidades sufocadas pelo trânsito, como nos programas
do PAC da Mobilidade, que distribuiu recursos públicos por todo o
território nacional.
Corredores
de ônibus começam a ocupar faixas por onde antes automóveis circulavam
e, segundo os discursos dos governantes e análise de especialistas, os
carros tendem a ficar cada vez mais espremidos. Ninguém sabe prever
quanto tempo levará para o usuário do carro saltar para o transporte
coletivo, se é que essa migração de fato vai ocorrer, como esperam os
governantes.
Seja como
for, como as atenções estão agora todas voltadas para o transporte
coletivo sobrou pouco para o planejamento de tráfego. Em princípio, o
trânsito ficará ainda mais caótico por pelo menos mais dois ou três
anos, segundo preveem especialistas, até que a reorganização do
transporte coletivo de fato provoque mudança de hábitos.
Primeiro,
porque o mercado dos zero-quilômetro não para de crescer. O volume anual
de vendas de veículos em Minas Gerais é maior do que na Áustria ou
Suiça. Além disso, seria impossível, de uma hora para outra, fazer
desaparecer das ruas uma frota tão gigante. Belo Horizonte, Campinas,
Curitiba, Goiânia e São Paulo têm menos de dois habitantes por veículo -
taxas que se aproximam das médias do Japão e Alemanha.
"O tráfego tende a ser controlado muito mais por tecnologia do que por pessoas", diz o secretário Jilmar Tatto
Esses dois
países são também bem servidos por transporte público. Mas, enquanto o
Brasil se apressa para tentar igualar seu sistema de transporte coletivo
aos das nações desenvolvidas, o fluxo do trânsito nas grandes cidades
continua a expor os problemas do modelo que agora se rejeita. Por isso,
em muitas região surgirão situações antagônicas.
Referência
no transporte coletivo, Curitiba é também o município que tem a menor
relação habitantes/veículo do país. Um total de 48% da população
economicamente ativa usa ônibus e o sistema integrado de coletivos
carrega 2,3 milhões de passageiros por dia. Ao mesmo tempo, a cidade tem
1,57 habitante por veículo se a conta for feita apenas com automóveis e
utilitários leves. Se somados outros veículos, como motocicletas, o
número cai para 1,2.
"As redes
de transporte de todas as cidades brasileiras estão em construção e
enquanto essa integração não estiver reforçada haverá vazios a serem
ocupados por carros. O aumento da frota, estimulada pelos incentivos de
redução do IPI, se transformou no maior desafio para o gestor público",
diz José Álvaro Twardowski, engenheiro de trânsito e transporte do
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC), uma
autarquia municipal.
Para
Twardowski, com o aumento das faixas para os coletivos, a redução da
capacidade para demais veículos tem de ser tratada com tecnologia.
Também para o secretário de São Paulo, Jilmar Tatto, que também preside a
Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) no município, daqui para a
frente, o tráfego tende a ser controlado muito mais por tecnologia do
que por pessoas. Daí a necessidade de investimentos em equipamentos.
Tatto
promete investimentos em uma série de soluções tecnológicas, como a
modernização dos semáforos de 4,8 mil dos 6 mil cruzamentos de São
Paulo. Em 1996 foi a última vez em que São Paulo ganhou 1,5 mil unidades
dos chamados semáforos inteligentes, que permitem programar, numa
central, a troca de luzes de acordo com o fluxo do tráfego. Já as placas
indicativas - que segundo um boletim técnico da Companhia de Engenharia
de Tráfego (CET), seguem as mesmas características desde 1979 -
precisam, segundo Tatto, é de uma boa lavagem.
Semáforos
inteligentes podem melhorar o trânsito, "mas não fazem milagre", diz o
especialista em engenharia de tráfego, Adauto Martinez Filho. Para ele,
em grandes centros, no horário de pico, os dois lados de um cruzamento
são prioridade. "Numa esquina como a das avenidas Paulista com
Brigadeiro Luis Antônio, onde deixo o verde mais tempo"? Para Martinez, a
situação do trânsito está tão caótica que sistemas semafóricos
inteligentes só funcionam bem em cidades com até um milhão de
habitantes.
Algumas
soluções podem ser mais simples do que parecem. Um trabalho desenvolvido
pela empresa do inglês Alan Cannell, engenheiro de transporte urbano
que vive no Brasil há 40 anos, mostrou que uma obra simples, que ampliou
a visibilidade em um cruzamento, resolveria o drama do motorista que
gastava até dez minutos para entrar num bairro em Curitiba. "O problema
todo estava no semáforo que funcionava como o planejado há mais de 30
anos", diz. Rotatórias também servem, às vezes, para "distribuir o
trânsito porque respondem melhor às flutuações", diz Cannell.
E por que
não pedir sugestão ao usuário? Numa pesquisa com 5 mil motoristas de
ônibus de Curitiba, a mesma empresa do especialista inglês, a
Transcrast, mostrou tubos de embarque em posições que exigiam voltas
desnecessárias.
Aplicativos
também podem ser um auxílio cada vez mais necessário no trânsito. A
Secretaria de Transportes de São Paulo está prestes a lançar um edital
para convocação de "hackers" com o objetivo de fornecer dados sobre o
trânsito para aplicativos.
Bolsões de
estacionamento para estimular o uso do transporte coletivo e medidas
emergenciais para desafogar áreas centrais, como rodízio e pedágio
urbano, são questões que ainda dividem opiniões. "Se a ideia é reduzir o
numero de viagens é preciso criar estacionamentos em pontos
estratégicos. Porque toda viagem de veículo tem um início e um fim, seja
carro, ônibus ou metrô, que também têm seus pátios. Isso foi esquecido
nas políticas públicas integradas", diz a arquiteta urbanista Maria da
Penha Pereira Nobre. Já o engenheiro de tráfego Adauto Martinez Filho
defende estacionamento zero em áreas já saturadas. Para ele, isso vale
também para as ruas: "A via pública foi feita para circular e não para
estacionar. Ao invés de abrir vaga, temos de mudar a cultura".
A
alternativa do rodízio, para os especialistas, é reflexo de que o modelo
viário já se esgotou. O mesmo serve para pedágio urbano, alternativa
ainda não adotada em nenhuma cidade brasileira. "Ficar parado no
trânsito já é um pedágio indireto", diz Martinez. Os altos preços dos
estacionamentos particulares fazem a mesma função, segundo o secretário
de mobilidade urbana de Porto Alegre, Vanderlei Cappellari.
Na capital
do Rio Grande do Sul, há hoje 14 obras voltadas para preparar a malha
viária para a Copa do Mundo. "Nunca se fez uma quantidade tão grande.
Somente a partir da Copa veremos a realidade da cidade", diz o
secretário, que também é presidente da Empresa Pública de Transporte e
Circulação (EPTC).
O Rio de
Janeiro já passou por um bom teste de trânsito na recente visita do
papa. "Mas temos que levar em conta que o feriado [ criado para a
ocasião] amenizou", destaca Paulo Cezar Ribeiro, professor de engenharia
de transportes da Coppe, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Mesmo assim, por algum misterioso descuido, o papa Francisco acabou
preso num engarrafamento.
Numa esquina como a das avenidas Paulista com Brigadeiro Luis Antônio, onde deixar o verde mais tempo?
E o que
fazer diante dos congestionamentos que começam dentro da própria garagem
de um edifício ou de um shopping? "Qualquer projeto prevê um estudo de
impacto de tráfego; por isso, o ideal é que o órgão de trânsito tivesse o
poder de veto em determinados projetos de construções em áreas de
grande adensamento, como é hoje o bairro [paulistano] da Vila Olímpia",
diz Martinez.
Os taxistas
também são favoráveis aos projetos que tiram os carros (dos outros) das
ruas. "Muita gente se queixa por não encontrar taxi. Mas, é muito comum
o motorista não conseguir chegar até o passageiro por causa do
trânsito", diz Ricardo Auriemma, presidente da Associação das Empresas
de Táxis de São Paulo (Adetax). Auriemma faz parte do conselho municipal
de transportes e já encaminhou às autoridades paulistanas o pedido para
que taxistas sejam autorizados a trafegar não só por corredores como
também pelas novas faixas exclusivas para ônibus.
A rotina
vai também mudar para o agente de trânsito. "O agente tem de parar de
olhar só para o carro e prestar atenção na cidade como um todo", diz a
urbanista Maria da Penha Nobre, que também dirige cursos de formação. O
mesmo vale para o engenheiro de tráfego, segundo o superintendente da
Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), Luiz Carlos
Mantovani Néspoli. "Na visão antiga, a avenida 23 de Maio teria que ser
alargada para receber mais carros. Mas a gestão de mobilidade tira a
faixa do carro porque o novo papel da engenharia de tráfego é tomar
providências para pessoas e não mais para veículos" diz.
Mas o
trânsito só vai mesmo melhorar, concordam especialistas e gestores, no
dia em que o transporte público conseguir concorrer com o automóvel.
Para o secretário Jilmar Tatto, falta, ainda, modernizar os ônibus, com
itens como computador de bordo, tecnologia embarcada, além de
equipamentos de GPS aperfeiçoados para garantir precisão de horário. É
preciso, ainda, diz, melhorar a informação, com painéis nos pontos de
ônibus e oferecer facilidades como carregar o bilhete único por meio do
telefone celular.
Todos
concordam, porém, que, por ora, circular em ônibus não é atraente. "O
sujeito pode até se arriscar a deixar o carro na garagem. Mas quando
começa andar em calçadas mal conservadas e chega no ponto e não vê
nenhuma informação, ele não pensa duas vezes; volta correndo para casa
para buscar o carro. Porque esse conforto é inegável", diz Néspoli, da
ANTP.
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