Especialista adverte que, além de
controlar a saúde privada no Brasil, a UnitedHealth vai vender planos baratos
mas com cobertura restrita, empurrando para o
SUS os tratamentos mais caros
Publicado em
14/10/2012, 11:00
Última atualização
em 24/10/2012, 19:02
Americanos deverão explorar o mercado
de planos baratos, com cobertura limitada. Procedimentos complexos serão mandados ao SUS(Elza Fiúza/ABr)
São Paulo – A Agência Nacional de Saúde
Suplementar (ANS) deverá anunciar nos próximos 15 dias se aprova a venda da
Amil, maior operadora de planos de saúde no Brasil, para a UnitedHealth Group,
gigante do setor nos Estados Unidos. A transação, que já vinha sendo estudada
há alguns meses, foi anunciada nesta terça-feira (9). O negócio envolve a venda
de 90% da Amil para a United pela quantia de US$ 4,3 bilhões. A legislação
brasileira proíbe a participação de capital estrangeiro em hospitais
brasileiros, mas não impede em operadoras de planos de saúde. Representantes de
usuários de planos de saúde já manifestaram temores. Toda vez que há fusões ou
vendas eles são afetados principalmente com mudanças na rede credenciada.
A preocupação é maior agora, quando se
trata do controle do sistema de saúde brasileiro por uma empresa estrangeira.
Se o negócio for aprovado, os 22 hospitais próprios da Amil também serão
administrados pela empresa estrangeira. Conforme o grupo americano já
anunciou, seu interesse está no crescente mercado brasileiro. A transação é
interessante também para os controladores brasileiros da Amil, que ficam com os
US$ 4,3 bilhões, comos 10% das ações e o comando as operações. Já o
sistema de saúde brasileiro não tem o que comemorar. “A venda sinaliza um
caminho que pode ser sem volta. Não é só a possibilidade de outras empresas
estrangeiras da saúde virem para cá. É a lógica do crescimento do setor privado
que preocupa”, analisa o presidente do Grupo Pela Vidda-SP, Mario Scheffer,
também conselheiro do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes) e membro do
conselho diretor do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor
(Idec). Na entrevista a seguir, ele analisa as implicações da venda da Amil
para o sistema de saúde do país.
Como você analisa a venda da Amil?
A entrada agressiva no mercado
brasileiro da empresa norte-americana, que é uma das maiores operadores de
planos de saúde do mundo, tem o objetivo explícito de obter aqui os lucros que
não obtém mais no mercado americano. Isso mostra que a gente pode caminhar para
a ‘americanização’ da saúde no Brasil, uma amostra do que virou esse mercado
nos Estados Unidos. É o que esse perfil de capital estrangeiro quer implementar
no Brasil aocomprar 90% da Amil. Ou seja, amostra do principal fracasso dos
Estados Unidos ao não conseguir universalizar o atendimento público com equidade.
Tanto a Amil como a United tem destacado a grande oportunidade de negócio
para esse capital estrangeiro. É nesse momento de franco crescimento do mercado
brasileiro que o negócio é feto. O mesmo crescimento econômico que possibilitou
novos empregos, renda e consumo também alimentou a demanda por planos de saúde
privados.
O interesse dos americanos está nessa
classe média emergente?
Pelas declarações que estão sendo
feitas, esse capital estrangeiro está interessado justamente no mercado de
planos populares, baratos. O problema é que a franca expansão desse mercado
ocorre de maneira totalmente desordenada, até artificial eu diria. Hoje, 80%
dos planos de saúde privados no Brasil são ofertados pelos empregadores. São os
planos coletivos, que se tornaram prioridade de sindicatos em sua pauta de
reivindicações e o desejo de grande parte das famílias, dos indivíduos que
estão ascendendo no mercado de consumo. Isso acontece por desilusão, pelo descrédito
no sistema público, no Sistema Único de Saúde (SUS), que em parte há uma certa
razão. Com o subfinanciamento público do sistema não é possível
oferecer um atendimento de melhor qualidade. Mas por outro lado as pessoas
desconhecem a importância e o papel imenso que o SUS tem hoje. Comisso há
o desejo de consumir planos privados. E o mercado que está crescendo mais é o
dos planos populares, mais baratos, que oferecem uma cobertura medíocre. O
problema é que tudo isso acontece com a conivência da Agência
Nacional de Saúde Suplementar (ANS), órgão constituído para regular o setor e
que não regula.
Também há filas na saúde privada...
Parte desse apagão na saúde
suplementar, com a rede lotada, filas de espera semelhantes às do
serviço público, dificuldade para marcar consulta, demora na internação
eletiva. Isso ocorre em grande parte por esse crescimento desordenado. A
agência reguladora foi capturada pelo mercado que ela deveria regular. No
momento a agência estaria renovando seus quadros, que durante muito tempo
tiveram em sua maioria representantes do setor. O atual presidente [Maurício
Ceschin], que foi presidente do Grupo Qualicorp, uma grande corretora
brasileira que vende planos de todas as operadoras. Com uma regulação
frouxa, incompetente, tem-se um crescimento desordenado.
A situação tende a piorar?
A coisa tende a piorar com a
ampliação que pode vir com essa aquisição. E isso tem de ser
debatido. Que sistema de saúde nós queremos? Essa cobertura privada centrada em
poucas mãos, que nunca vai ser uniforme e continuada. Muitos se esquecem de que
há diferenças muito grandes entre os vários produtos comercializados.
Muitos acham os planos de saúde são produtos homogêneos. E não é. Cobrem e dão
atendimento conforme a capacidade de pagamento das pessoas. Quanto mais barato,
mais popular, pior. Depois, se a pessoa sai do emprego, fica descoberta porque
a maioria dos planos são coletivos. E tem ainda a chamada exclusão pecuniária,
que é a expulsão dos idosos dos planos individuais. Entre os coletivos há
também uma epidemia que chamo de falsos coletivos. São planos para duas, três,
quatro pessoas que podem ser feitos por microempresários. Basta o CNPJ
[Cadastro Nacional da Pessoa Jurídica]. Em geral o índice de reajuste desse
plano foge da regulação. A operadora tem a prerrogativa de aumentar por
sinistralidade, ou seja, quando os beneficiários passam a usar muito a rede
credenciada. Fica tão caro que a pessoa tem de romper o contrato porque não vai
mais conseguir pagar. Nocomeço, chegam a custar 40% menos e depois chegam a ter
mais de 100% de aumento. Trata-se de um setor em expansão que não garante
o que se espera de um plano de saúde. Eles florescem justamente num momento em
que as despesas com saúde estão subfinanciadas. Na saúde privada, que
atende ¼ da população brasileira, circulam 53% de todos os recursos. E apenas
47% circulam no SUS para dar todo o atendimento, promoção da saúde, prevenção
de doenças, vigilância sanitária, atendimento a doenças complexas, como
cirurgias de grande porte, transplantes, tudo o que o SUS faz. Enquanto houver
essa equação vamos acirrar o problema. Vão mais recursos para atender a menor
parte da população. A dificuldade de acesso e a baixa qualidade estão ligadas
diretamente a isso.
E o subsídio público para a saúde
privada?
A saúde privada recebe subsídios
públicos diretos e indiretos. Essa é uma questão que precisa ser discutida em
praça pública por toda a sociedade. A população não tem noção de que os planos
de saúde são financiados por empregadores públicos e privados, que embutem esse
custo no preço dos produtos e serviços que toda a sociedade consome. É a
sociedade que paga esse benefício que os empregadores dão aos seus
trabalhadores. E tem o subsídio fiscal, em que pessoa física e jurídica abatem
seus gastos com saúde no imposto de renda. São recursos que o estado
poderia arrecadar e não arrecada. O plano de saúde ganha com isso
porque se tornam mais atrativos. E o governo gasta também com planos
particulares para os servidores. No ano passado foram gastos R$ 3 bilhões. Além
disso, algumas operadoras, cooperativas e outras têm isenções de impostos. Há
também uma forma de subsídio que é a cobertura de tudo que os planos não cobrem
mas que o SUS atende.
O beneficiário dos planos pode ser prejudicado?
O Idec [Instituto Brasileiro de Defesa
do Consumidor], no qual integro o conselho diretor, e outras instituições têm
se manifestado para que o governo, antes de aprovar a venda, avalie o real
impacto da transação, a maior concentração do mercado. É a maior operadora do
país que está sendo vendida. Essa concentração é ruim ao monopolizar mais redes
credenciadas. Pode, por exemplo, impor pagamentos irrisórios para os
prestadores. Isso pode significar a piora na qualidade. Fora o impacto na política
de saúde. Trata-se de um sinal de que pode haver um crescimento desse mercado.
O que estou dizendo aqui é que o Brasil pode estar trilhando um caminho sem
volta. Não é só a possibilidade de outras empresas virem para cá. É a lógica do
crescimento do setor privado com a injeção adicional de recursos
nesse mercado. O Brasil está numa encruzilhada. Precisa discutir se quer o
predomínio dos planos privados incompatíveis com o sistema de saúde
universal, comprometido com a promoção da saúde, se quer
favorecer e permitir a ascensão desse mercado fragmentado em que as pessoas têm
acesso não pelas necessidades de saúde mas conforme a sua capacidade de
pagamento. Ou se quer investir nossa riqueza coletiva no financiamento de um
sistema público que hoje é subfinanciado, universal, e ser capaz de atender
adequadamente a população. É uma discussão que tem que ser feita.
O setor privado argumenta que desafoga
o SUS...
O crescimento do privado, com a
injeção de recursos estrangeiros, não desafoga o sistema público. Pelo
contrário, reduz a disponibilidade de recursos humanos no sistema público,
transfere a capacidade de produção para o privado, não reduz as filas. E as
restrições, as negativas de atendimento, empurram para o SUS os idosos, os
enfermos com problemas de alta complexidade. Mais gasto com a
saúde privada significa fragmentar o sistema de saúde e reduzir aquela
característica distributiva, dos sistemas universais. Quanto mais recursos da
saúde concentrados em grupos particulares como Amil, menor é a capacidade
do poder público de regular. Corremos o sério risco de ver, em curto prazo, a
hegemonia do setor privado, na contramão do sistema universalizado preconizado
na Constituição e na contramão de vários países, inclusive Estados Unidos.
Afinal, a reforma do Obama é fruto do fracasso americano na saúde. Precisamos
ver também que esse crescimento desordenado, artificial, casa com o
discurso de que o SUS é inviável. A lógica é velha. Transfere as obrigações
para o cidadão que pode pagar e empobrece a oferta àqueles que só podem contar com o
público. Essa negociação é realmente preocupante.
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