20/12/2012
Carta Maior
- Economia -
As
políticas de austeridade levadas a
cabo pelos Estados estimularam uma
enorme concentração dos rendimentos.
As elites econômicas aumentaram os
seus lucros à custa do bem estar da
maioria das populações, exemplo claro
no caso de Espanha. Essas políticas
têm como objetivo beneficiar os
interesses do capital financeiro ao
privatizar as transferências públicas
e os serviços públicos do Estado, a
fim de facilitar a intervenção de
capital financeiro nestes setores e
debilitar a proteção social e com isso
a classe trabalhadora e as classes
médias. O artigo é de Vincenç Navarro.
Vincenç Navarro
(*)
Este artigo
identifica as causas que originaram a
crise econômica e financeira atual nos
dois lados do Atlântico, causas
enraizadas nas políticas levadas a
cabo pelos Estados que estimularam uma
enorme concentração dos rendimentos,
criando um enorme problema de procura
de bens e serviços, por um lado, e um
capitalismo baseado na especulação,
por outro.
O artigo
assinala que, em consequência disso,
as elites financeiras e econômicas
aumentaram os seus lucros à custa do
bem estar da maioria das populações,
exemplo claro no caso de Espanha. As
políticas de austeridade têm como
objetivo beneficiar os interesses do
capital financeiro ao privatizar as
transferências públicas e os serviços
públicos do Estado, a fim de facilitar
a intervenção de capital financeiro
nestes setores e debilitar a proteção
social e com isso a classe
trabalhadora e as classes médias.
Num artigo
recente, indiquei que as medidas que
se estão a tomar para racionalizar o
sistema financeiro na União Europeia
não estão a ter um impacto na
resolução da Grande Recessão que a
União Europeia está a provar. Segundo
o Fundo Monetário Internacional (FMI),
a economia espanhola descerá 1,5% do
PIB, a italiana 2,3%, a portuguesa 3%,
a grega 5,2%, a britânica 0,6%, a
alemã 0,9% e a francesa 0,1%. Para a
média da União Europeia, as previsões
de crescimento econômico são nulas,
como assinala a Comissão Europeia.
Na realidade,
calcula-se que a descida da economia
europeia seja de 0,4% do seu PIB. Um
mal presente e um futuro pior. As
reformas financeiras parecem não estar
a melhorar a situação. Antes pelo
contrário, muitas das medidas que se
estão a tomar para melhorar o sistema
financeiro, estão a piorar, em vez de
melhorar, a situação econômica. O
ênfase do Banco Central Europeu (BCE)
e da Comissão Europeia em continuar as
políticas de austeridade é um claro
exemplo disso. Argumenta-se que a
disciplina fiscal (reduzir o déficit
público dos Estados) é a chave para
recuperar a confiança dos mercados
financeiros. Daí que, e como
consequência, se fazem mais e mais
cortes nas transferências e nos
serviços públicos do Estado.
A maioria dos
trabalhos científicos credíveis
mostram o profundo erro dessas
políticas. Na realidade, estas
políticas de austeridade são
responsáveis para que se vá caindo
mais e mais nesta Grande Recessão. E a
causa de que isto seja assim não é
nada difícil de entender. A grande
descida dos rendimentos do trabalho na
maioria dos países do mundo ocidental
(e muito em especial na América do
Norte e na Europa ocidental) criou um
enorme problema de escassez de
procura, que ainda quando foi paliada,
em parte, devido ao enorme
endividamento da população
(endividamento que beneficiou a
banca), chegou a um limite que
paralisou o crescimento econômico. Mas
a diminuição dos rendimentos do
trabalho foi feita à custa do enorme
crescimento dos rendimentos do capital
e da sua concentração em sectores
enormemente minoritários da população
(o famoso 1% do movimento Occupy Wall
Street).
Encontramo-nos
assim com o aparente paradoxo que
vemos: um enorme crescimento da
quantidade de dinheiro existente nas
mãos de uns poucos, uma grande
escassez de dinheiro para que a
maioria da população possa pagar os
bens e serviços de que necessita para
manter o seu nível de vida. Na
realidade, a pobreza está a alcançar
dimensões epidêmicas, atingindo grupos
e classes sociais que se tinham sempre
considerado imunes à tal escassez de
recursos.
O que deveria ser
feito e não se faz
Pareceria que o
mais lógico seria repartir a enorme
concentração de dinheiro e se
transferisse para a população, em
geral, permitindo-lhe comprar e
atender às suas necessidades,
recuperando assim a economia.
A solução para
esta recessão é extraordinariamente
fácil de desenhar, se o conhecimento
científico fosse o que motivara as
decisões políticas. De novo, toda a
evidência científica credível
existente assinala que a concentração
dos rendimentos está a dificultar a
resolução da crise. E a forma de
corrigir essa concentração é a
redistribuição desse dinheiro. Só nos
EUA, o dinheiro acumulado (pela elite
econômica) durante estes anos de crise
é de 2 trilhões de dólares. Não há,
pois, falta de dinheiro. A sua
redistribuição para as classes
populares resolveria rapidamente o
problema da falta de procura nos EUA.
Que isso não se
faça, deve-se ao enorme poder que tem
1% da população em cada país e das
alianças que se estabelecem entre eles
em vários países. Os argumentos que
constantemente se dão, inclusivamente
por autores de esquerda, para explicar
porque não se faz essa redistribuição
e se estimule a procura, é que os
economistas que dirigem ou aconselham
estas políticas de austeridade são
incompetentes ou ignorantes,
argumentos que não são credíveis.
Outro argumento que se utilizou é que
esses economistas estão imbuídos de
uma ideologia, a ideologia neoliberal
que praticam e promovem com uma fé
falhada de base empírica que a
sustente. Mas esse argumento ignora
que a fé sempre se reproduz porque
beneficia os que a promovem e a
sustentam. Há interesses muito
poderosos – para os quais esses
economistas trabalham - que apoiam
austeridade. Um deles é o capital
financeiro, pois a expansão econômica,
que resultaria das políticas
redistributivas, afetaria a inflação.
O inimigo número
um da banca é sempre a inflação. Se o
leitor tiver 100 euros e a inflação
anual for de 10%, no final do ano, a
sua nota de 100 euros tem unicamente
um valor de 90 euros em comparação com
o valor inicial. E a banca tem
trilhões de euros. Isso significa que
ligeiras variações da inflação podem
ter impactos sumamente negativos para
o capital financeiro. Daí que as
políticas de austeridade que estão a
ser impostas na Eurozona (e utilizo a
expressão impostas, porque em nenhum
dos países onde essas políticas estão
a ser levadas a cabo, constavam dos
programas eleitorais dos partidos
governantes), e que estão a destruir o
bem-estar da maioria da população,
tenham sido escolhidas pelo sistema de
governo do euro (o Banco Central
Europeu e também a Comissão Europeia),
enormemente influenciado pelo capital
financeiro europeu (e, muito em
especial, o alemão). Estas políticas
tiveram muito êxito para esse capital
financeiro. A inflação média da
Eurozona foi cerca de 2% por ano: o
objetivo que se desenhou quando se
estabeleceu o euro (em novembro foi
2,2%).
Outras causas das
políticas de austeridade
Mas existe outra
razão pela qual continuam as políticas
de austeridade. É que a enorme
quantidade de dinheiro que está a ser
utilizada, por parte da banca, em
práticas especulativas, tem também os
seus elevados riscos, como a banca bem
o sabe. Daí o seu desejo de procurar
novas áreas de investimento, que não
sejam especulativas, tais como a
Segurança Social e os serviços
públicos do Estado. São necessárias,
pois, medidas de austeridade que
empobreçam as transferências públicas
(como as pensões) e os serviços (como
a saúde ou a educação), e que
estimulem a sua privatização. Isso
oferece novas possibilidades para a
banca e para as companhias de seguro
de modo a conseguir amplos lucros em
atividades menos arriscadas que as
especulativas.
Esta é a
explicação das medidas de austeridade.
E se não acreditar, veja quem está a
beneficiar com as privatizações da
saúde na Catalunha, na Comunidade
Autonômica de Madrid, onde essas
políticas de privatização foram mais
acentuadas. Entre muitos interesses
financeiros, existem investimentos de
alto risco, companhias de seguro,
consultorias para capital financeiro e
um longo etcetera. É a “americanização
da saúde”.
Quer dizer, a
extensão do modelo de saúde
norte-americano gerido pelas
companhias financeiras com o afã de
lucro, que determinaram o sistema de
saúde mais caro, mais ineficiente e
mais impopular dos sistemas de saúde
existentes. Nos EUA o setor da saúde é
um campo de expansão do capital
financeiro. E este é o objetivo das
políticas de austeridade na Europa
(ver o meu livro “Medicine under
Capitalism” para analisar as
consequências deste sistema de
financiamento da saúde).
Outra causa da
persistência dessas políticas de
austeridade é debilitar o mundo do
trabalho e os sindicatos. O caso
espanhol é claro. Pela primeira vez
numa época democrática, os rendimentos
do capital superam os rendimentos do
trabalho. A enorme influência do
capital financeiro junto do patronato
e do poder político governante, faz e
explica que, apesar da descida da
procura e do escasso crescimento
económico, os rendimentos do capital
continuem a crescer, ajudados pelas
políticas fiscais que garantem os seus
amplos benefícios. A aliança do
capital com o Estado garante a
prioridade de umas políticas que,
enquanto beneficiam uma minoria da
população, destroem enormemente o
bem-estar da maioria.
Não é só 1%
Quando escrevo
uma minoria não me refiro só a 1%, tal
como o movimento Occupy Wall Street
faz referência. Este 1% (proprietários
e controladores do grande capital) tem
um poder decisivo e determinante. Na
realidade, a sua percentagem sobre a
população, tanto nos EUA, como em
Espanha, é muito menor que 1%. Mas
este grupo controla os meios que
configuram o que um dos analistas mais
agudos das sociedades capitalistas,
Gramsci definiu como hegemonia
ideológica, que inclui desde as
escolas e academias até aos meios de
informação e persuasão, e determina a
sabedoria convencional do país, que
inclusivamente hoje, depois de tanta
dor e danos causados à população,
continua a dominar: o neoliberalismo.
Toda uma bateria
de fundações, centros de estudos ou
projetos de investigação são
financiados pelo capital e muito, em
particular, pelo capital financeiro.
Os maiores bancos do país têm centros
de estudos, organizam conferências,
financiam jornais e revistas chamadas
científicas, onde o dogma se reproduz
e se promove através de amplas caixas
de ressonância, meios radiofónicos e
televisivos, ou imprensa escrita, por
sua vez endividada e dócil para com
esses poderes. Este 1% para poder
mandar necessita do aparelho
ideológico que o sustente. E daí que,
apesar dos danos que tais políticas
estão a causar, elas continuam a ser
promovidas.
(*) Vicenç Navarro – Foi Catedrático de Economia Aplicada na Universidade de Barcelona e Professor de Políticas Públicas na Universidade Johns Hopkins (Baltimore, EUA). Dirige o Observatório Social de Espanha.
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